Cena de Bom Dia, Eternidade, encenação apresentada na Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba (Foto: Humberto Araujo)
CURITIBA – Em Bom Dia, Eternidade, encenação de Luiz Fernando Marques (Lubi) que reúne uma banda composta por músicos idosos e atores do grupo O Bonde, diferentes camadas de tempo se entrelaçam. Essa articulação se manifesta por meio da conjugação entre passado e presente (ainda que o título do espetáculo aponte para a transcendência de períodos delimitados), tanto no campo temático quanto na conexão entre teatro e cinema.
Na esfera do tema, a interação entre tempos distintos está na base da história, centrada na abrupta e violenta remoção de uma família negra que mora na periferia de São Paulo, em 1964, e o reencontro dos irmãos, nos dias de hoje, ao conquistarem o direito de recuperar a terra roubada.
No que diz respeito ao cinema e ao teatro, um jogo de oposição se estabelece. O primeiro é destacado como forma artística atada ao passado, na medida em que consiste na reexibição de material já gravado (apesar do espetáculo mesclar sequências pré-gravadas com cenas registradas e projetadas no instante da apresentação), e o segundo como vinculado ao presente, por acontecer no aqui/agora, diante do espectador.
Luiz Fernando Marques, em sintonia com a dramaturgia de Jhonny Salaberg, proporciona uma contracena dos tempos. Há um constante espelhamento entre atores e músicos de idades variadas – com os mais jovens reproduzindo gestos e externando as vivências dos mais idosos e, ocasionalmente, dando vazão a números de dança.
Mas algo não se mistura na estrutura do espetáculo: a natureza poética da dramaturgia burilada e a concretude dos depoimentos dos músicos, projetados nas cortinas estampadas da cenografia. Mesmo que a realidade esteja entranhada na proposta dramatúrgica, há diversos momentos em que ficção e documentário surgem como linguagens divorciadas.
Por mais contundentes e oportunos que sejam os depoimentos – que trazem à tona as jornadas pessoais e profissionais dos músicos, os obstáculos enfrentados em decorrência do preconceito racial e da sexualidade –, o impacto da montagem reside na evocação de lembranças familiares, com a casa e a figura da mãe como personagens fundamentais, como elementos ausentes, mas onipresentes.
A mãe aparece nos permanentes relatos dos filhos a partir de um quadro com sua imagem. E a casa é representada principalmente pelo espaço do quintal, símbolo da união de uma família que, obrigada a se separar com a remoção, fortalece os laços após a morte da mãe. Um espaço que não é materializado diante do público, e sim sugerido por meio de objetos afetivos (animal de cerâmica, vestido, rádio, pano de prato e, em especial, as cortinas rendadas e estampadas) que integram a cenografia do próprio Luiz Fernando Marques. As cortinas não são posicionadas no fundo do palco do Teatro da Reitoria, mas dividem o espaço da cena e o da banda.
A cenografia é não só expressiva como sintética, preocupação que também transparece no trabalho de direção, a exemplo da representação das árvores do quintal nos corpos dos músicos, dispostos, em breves passagens, de costas para a plateia. A concepção cênica é favorecida pela iluminação de Matheus Brant, que oscila entre as cores intensas que inundam a cena e tonalidades crepusculares.
O elenco do grupo O Bonde (Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves) demonstra habilidade com o texto e no manejo dos objetos. Os músicos Cacau Batera, Luiz Alfredo Xavier, Maria Inês e Roberto Mendes Barbosa emocionam o público com a exposição de seus percursos atravessados pela superação de adversidades.
Bom Dia, Eternidade é um espetáculo que se alonga além do necessário e que nem sempre promove o entrosamento entre linguagens (ficção e documentário). O espectador, porém, tende a sair sensibilizado com a revelação das trajetórias dos músicos e com o brilho de uma dramaturgia que aborda as calorosas vivências nos quintais familiares.
Reynaldo Gianecchini e Tainá Müller em Brilho Eterno (Foto: Annelize Tozetto)
CURITIBA – Jorge Farjalla é um diretor que procura imprimir assinatura autoral na transposição dos textos para a cena. Não por acaso, costuma classificar seus espetáculos como versões a partir de originais dramatúrgicos. A determinação em frisar uma marca própria vem norteando as montagens de peças heterogêneas, como Doroteia, que ocupa lugar singular dentro da obra de Nelson Rodrigues, e O Mistério de Irma Vap, exemplar do humor nonsense de Charles Ludlam que serve de veículo de atuação para intérpretes com pleno domínio do jogo da comicidade histriônica.
Em Brilho Eterno, encenação apresentada no Teatro Guaíra, Farjalla confirma a disposição em interferir nos textos que monta. Apesar de não ter se debruçado sobre uma peça, e sim sobre um filme – Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), de Michel Gondry –, a postura dessacralizada em relação às obras de origem se mantém. Tanto que produziu, em parceria com André Magalhães, uma dramaturgia que parte do filme, dialogando com ele, ao invés de “simplesmente” transportá-lo para o palco.
A apropriação criativa de Farjalla se manifesta na concepção visual imponente (mesmo que as contribuições artísticas sejam de profissionais distintos, há um entrosamento com a visão do diretor), na inclusão de referências diversas que ambicionam aproximar o público do espetáculo e na quebra de uma cena ilusionista por meio de procedimentos que sublinham o fato de se estar frente a um acontecimento teatral, como a movimentação do cenário a cargo dos atores e o uso de blusas com o título da montagem e o sobrenome de cada integrante do elenco no verso (figurinos de Farjalla).
Mas a necessidade de fixar uma identidade artística pessoal carece de consistência. Os elementos diferenciais de um espetáculo como Brilho Eterno não parecem decorrer de um estudo verticalizado da obra de base. A inventividade fica mais concentrada no plano da forma – através do investimento numa estética de impacto – e da intrincada estruturação da cena – por meio das implicações temporais na interação dos protagonistas e das intervenções de um coro profano, de reduzido resultado cômico. Há uma menor valorização da questão principal da história: a urgência em apagar as lembranças como modo de apaziguar o sofrimento lancinante e a constatação de que as boas memórias também serão deletadas. A encenação não aproveita o potencial dolorosamente romântico que se poderia extrair do vínculo entre os personagens.
Diante de uma certa frieza no manejo dos conteúdos, o público tende a acessar a montagem a partir das criações visuais, cabendo destacar a integração entre a proposta cenográfica (de Rogério Falcão) – uma espécie de cubo desdobrado em ambientes, com expressivo contraste entre preto e branco – e a iluminação (de Cesar Pivetti) – que “rasga” a cena em tom igualmente neutro, padrão cromático relativizado pela protagonista feminina, que insere cores mais vibrantes. As proposições estéticas se sobrepõem, em algum grau, aos trabalhos dos atores. Reynaldo Gianecchini e Tainá Müller trilham caminhos interpretativos opostos: enquanto ele envereda por desenho de atuação mais estilizado, intencionalmente artificial, buscando, nas entonações, a estranheza, ela aposta em registro mais naturalista, próximo ao cotidiano. Wilson de Santos, Renata Brás, Fábio Ventura e Tom Karabachian demonstram sintonia com a linha do espetáculo.
Com apreciáveis qualidades individuais, Brilho Eterno, porém, é uma montagem em que o desejo de Jorge Farjalla de afirmar sua originalidade não surge amparado por uma leitura aprofundada do filme, lacuna que limita o ansiado voo artístico independente.
Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé em 3 Obás de Xangô: Prêmio do público (Foto: Divulgação)
A Mostra de Tiradentes vem afirmando uma identidade artística ligada a um cinema autoral, sem concessões, que desafia o público. Dessa 28ª edição, encerrada no último domingo sob a coordenação de Raquel Hallak d’Angelo, Fernanda Hallak d’Angelo e Quintino Vargas Neto, diretores da Universo Produção, saíram vencedores os longas-metragens Deuses da Peste (2024), de Tiago Mata Machado e Gabriela Luíza (Mostra Olhos Livres), Parque de Diversões (2024), de Ricardo Alves Jr. (Mostra Autorias), Um Minuto é uma Eternidade para quem está Sofrendo (2025), de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro (Mostra Aurora), e 3 Obás de Xangô (2024), de Sérgio Machado (Júri Popular).
O importante, porém, não é “tão-somente” informar o resultado. No início da Mostra, durante a apresentação da programação pelos curadores, uma inquietação fundamental surgiu na plateia: “onde vão parar os filmes exibidos na Mostra de Tiradentes?”, perguntaram. Afinal, a maioria das produções não chega ao circuito comercial ou, caso chegue, dificilmente alcança repercussão junto ao público. “Os filmes vão parar no HD. E, às vezes, o diretor perde o HD e o filme deixa de existir. Talvez muitos dos filmes exibidos na Mostra Aurora nem existam mais”, respondeu Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial e integrante da curadoria de longas-metragens (ao lado de Juliana Costa e Juliano Gomes), acerca da parte do festival, que, antes destinada a trabalhos de cineastas que tivessem realizado até três longas, agora ficou concentrada em filmes de estreia. Como se pode notar, a Mostra de Tiradentes representa um estímulo heroico a um cinema que não é abraçado pelo mercado exibidor. “Alguns diretores fazem seus filmes com dinheiro próprio. Como garantir a continuidade deles? A história do cinema brasileiro é feita de interrupções”, constatou Francis.
Esse convite ao debate desponta num instante favorável para o cinema brasileiro, celebrado pelo sucesso de Ainda Estou Aqui (2024), filme de Walter Salles que já levou quatro milhões de espectadores ao cinema e recebeu três indicações ao Oscar nas categorias filme, filme internacional e atriz (Fernanda Torres). Outra produção recente que fez bonito na bilheteria foi O Auto da Compadecida 2 (2024), de Guel Arraes e Flavia Lacerda. A receptividade a esses filmes é uma excelente notícia. Mas será que sinalizam uma retomada do prestígio do cinema brasileiro junto ao público? Ou são aclamações específicas decorrentes da repercussão internacional e do elo afetivo com um dado universo? Perguntas parecidas se estendem à produção estrangeira. Será que a boa ocupação das salas nas exibições de filmes como Conclave (2024), de Edward Berger, A Semente do Fruto Sagrado (2024), de Mouhammad Rasoulof, e A Substância (2024), de Coralie Fargeat, significa um retorno do espectador aos cinemas após a pandemia, quando muitos se acostumaram a consumir material audiovisual dentro de casa? Ou se trata “apenas” de um favorável momento pontual motivado pelo frisson do Oscar?
Historicamente, o cinema brasileiro viveu períodos de grande adesão de público, valendo lembrar das chanchadas da Atlântida, das pornochanchadas da Boca do Lixo e das aventuras de Os Trapalhões. Pela via da comédia ou do apelo erótico, tais produções, gestadas em décadas diferentes, atraíam enorme quantidade de espectadores. Mas, à medida que o tempo passou, o cinema deixou de ser uma diversão popular. Os preços dos ingressos subiram cada vez mais, o contexto político se revelou extremamente adverso (governo Collor, marcado pela extinção da Embrafilme) e apareceram novas formas de entretenimento impondo dura concorrência. Nos últimos anos, poucas produções conseguiram furar tantos obstáculos – basicamente os filmes protagonizados por Paulo Gustavo e por um grupo restrito de comediantes.
Mas há ainda um outro dado que não diz respeito a épocas particulares: a reduzida conexão entre um cinema investigativo ou de experimentação, como o priorizado na Mostra de Tiradentes, e uma faixa mais abrangente de público. Por isso, o investimento num evento cinematográfico com um recorte artístico ousado é bastante louvável. Ao invés de mirar numa aposta “segura” a partir de determinados indicativos de mercado, a Mostra procura, ao contrário, jogar luz sobre uma produção que não costuma ser valorizada nem pelo circuito exibidor, nem por uma plateia mais ampla.
Cena de Parque de Diversões, filme de Ricardo Alves Jr. vencedor da Mostra Autorias em Tiradentes (Foto: Caio Thielmann)
Ricardo Alves Jr. abre mão, em Parque de Diversões, de contar uma história ao espectador, que “tão-somente” acompanha personagens em suas incursões sexuais noturnas no Parque Municipal de Belo Horizonte. Não significa, porém, que a proposta seja solta ou abstrata. Há, no roteiro de Germano Melo, uma ordenação dos acontecimentos, de certa forma, tradicional.
Exibido na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o filme começa com figuras anônimas caminhando nas proximidades do parque, onde entram e transitam isoladamente até estabelecerem as primeiras interações sexuais que, à medida que a projeção avança, se tornam cada vez mais explícitas. O diretor também investe uma espécie de apanhado de fetiches eróticos, como se ambicionasse reunir um mix dos mais conhecidos.
Mas a priorização de uma estrutura algo convencional – que contrasta com a ousadia da realização – não determina o resultado. Bem mais importante é a dramaturgia do corpo num filme que quase não utiliza a palavra – talvez a não abdicação total sinalize uma insegurança do cineasta. Seja como for, a força das imagens se impõe logo nos minutos iniciais, com a abertura furiosa das grades do parque, gesto que evidencia o desejo não domesticado.
Os trajetos individuais pelo parque sugerem uma experiência repleta de libido e um pouco sinistra. No entanto, apesar do frisson ligado ao sexo descompromissado em espaço público (cruising), o diretor não aborda esse universo como ameaçador ou violento.
O protagonismo do corpo não se manifesta apenas na exposição dos atos sexuais. Reside no modo como o corpo é mostrado. Símbolo do voyeurismo, o olho impera num filme em que a vontade de observar não inibe a participação. E o destaque à visão vem à tona através da ausência dela. Um dos personagens é cego e, numa cena, escuta a descrição do encontro sexual que supostamente se desenrola na sua frente. Esse encontro não é revelado. Nem ele e nem a plateia sabem se, de fato, a narrativa corresponde à ação. Num filme tão explícito, Ricardo Alves Jr. não deixa de valorizar o implícito, a camada sonora ao invés da mera sucessão de imagens de choque.
Ainda em relação ao corpo, muitos fragmentos são registrados em close. Em dados momentos, o diretor apresenta, em separado, corpos e rostos, como se não houvesse uma integração entre ambos. Mas tanto uns quanto outros surgem na tela como expressões cruas e latentes do desejo. Essas possibilidades de associação são mais instigantes do que a oposição entre os brinquedos infantis do parque de diversões diurno e as práticas sexuais noturnas.
Parque de Diversões não alcança o impacto de um filme centrado na volúpia como O Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues. Ricardo Alves Jr. mantém apego a escolhas habituais, a exemplo da previsível evolução da intensidade física e da preservação, mesmo que restrita, da palavra. Mas o cineasta orquestra uma mobilizadora dança de corpos ardentes.
A memória do teatro vive em permanente risco. Mesmo nos dias de hoje, quando a preocupação com o registro dos espetáculos é notadamente maior que em décadas anteriores, não há como reter o acontecimento teatral. Uma apresentação é sempre diferente da outra. E, por mais longeva que seja a carreira de determinada montagem, a última noite inevitavelmente chegará.
Os melhores registros não reproduzem o momento imediato de conexão entre ator e espectador. Mas são fundamentais, ainda mais numa época em que a quantidade de programas impressos é cada vez menor. Um livro como Festival de Teatro de Curitiba (Edições Sesc São Paulo), que traz uma seleção de fotos de espetáculos captados por Lenise Pinheiro ao longo de 30 anos – 1992 a 2022, excetuado 2021 por causa da pandemia – de cobertura do evento, é, sem dúvida, um feito muito importante. Reúne preciosos instantâneos de cenas de montagens emblemáticas. Depois do lançamento na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba, o livro ganha hoje nova sessão de autógrafos, no Sesc Pompeia, em São Paulo, acrescida de conversa entre Lenise e a dramaturga Luh Maza, com mediação de Gabriela Melão.
Se no monumental Fotografia de Palco, publicação dedicada ao ator e fotógrafo Fredi Kleemann, Lenise dividiu a vasta seleção de fotos em capítulos voltados para recortes das encenações (figurinos, cenários, iluminação), em Festival de Teatro de Curitiba o destaque recai sobre os rostos dos intérpretes, em close, apesar de várias fotografias evidenciarem as cenas de maneira ampla, panorâmica.
A trajetória de Lenise no Festival de Curitiba já tinha rendido, em 2022, uma exposição, intitulada Viva! 30 Anos, disposta no vão livre do Museu Oscar Niemeyer. Vale lembrar que Lenise também lançou um livro em homenagem ao Teatro Oficina (Fotografias – Teatro Oficina), no qual documentou os espetáculos desde a reabertura da companhia, rebatizada de Uzina Uzona – de As Boas a Cacilda!!!. Em relação a Festival de Teatro de Curitiba, livro intercalado com depoimentos de artistas e da própria Lenise, não há como mencionar todos os espetáculos representados por meio das fotos, mas cabe ressaltar alguns, ano a ano:
1992
Sonhos de uma Noite de Verão
Direção: Cacá Rosset
Elenco: Grupo Ornitorrinco
As Boas
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Elenco: Teatro Oficina/Uzyna Uzona. Ator convidado: Raul Cortez
Miriam Virna, Cleani Marques e Catarina Acioly em Ir e Vir, parte do projeto Felizes para Sempre, dos Irmãos Guimarães (Foto: Lenise Pinheiro)
2004
O que Diz Molero
Direção: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Chico Diaz, Augusto Madeira, Orã Figueiredo, Raquel Iantas.
Agreste
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: Joca Andreazza e Paulo Marcello
2005
Foi Carmem
Direção: Antunes Filho
Elenco: Centro de Pesquisa Teatral (CPT)
Hysteria
Direção: Luiz Fernando Marques
Elenco: Grupo XIX de Teatro
Baque
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Deborah Evelyn. Emílio de Mello, Carlos Evelyn
2006
A Descoberta das Américas
Direção: Alessandra Vanucci
Elenco: Julio Adrião
Otelo da Mangueira
Direção: Gustavo Gasparani
Elenco: Marcelo Capobiango, Claudia Ventura, Susana Ribeiro, Gustavo Gasparani, Ana Carbati, Patrícia Costa, Jorge Medina, Juliana Clara, Lilian Valeska, Sheila Mattos, Pedro Lima, Marcelo Vianna, Erika Riba, Sueli Guerra, Anderson Mello, Aldri Anunciação, Rodrigo França, Jurema da Mata, Jorge Maya
2007
A Alma Imoral
Direção: Amir Haddad
Elenco: Clarice Niskier
A Hora e a Vez de Augusto Matraga
Direção: André Paes leme
Elenco: Vladimir Brichta, Fábio Lago, Jackson Costa, Ernani Moraes, Pedro Gracindo, Georgiana Góes, Marcelo Flores, Adriano Saboya, Cyda Morenyx, Francisco Salgado
Besouro Cordão de Ouro
Direção: João das Neves
Elenco: Alan Rocha, Ana Paula Black, Cridemar Aquino, Gilberto Santos da Silva Laborio, Iléa Ferraz, Leticia Soares, Mauricio Tizumba, Nívea Magno, Raphael Garcia, Sergio Pererê, Valéria Monã, Victor Alvim Lobisomem, William de Paula, Wilson Rabello
2008
Aqueles Dois
Direção e atuação: Cia. Luna Lunera
2009
Rainhas
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Georgette Fadel e Isabel Teixeira
O Estrangeiro
Direção: Vera Holtz
Elenco: Guilherme Leme Garcia
A Mulher que Escreveu a Bíblia
Direção: Guilherme Piva
Elenco: Inez Viana
2010
Till, a Saga do Herói Torto
Direção: Júlio Maciel
Elenco: Grupo Galpão
In On It
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras
Memória da Cana
Direção: Newton Moreno
Elenco: Os Fofos Encenam
Simplesmente Eu, Clarice Lispector
Direção: Amir Haddad
Elenco: Beth Goulart
Vida
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
2011
Inverno da Luz Vermelha
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Marjorie Estiano, Rafael Primot, André Frateschi
Sonhos para Vestir
Direção: Vera Holtz
Elenco: Sara Antunes
Oxigênio
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Sua Incelença, Ricardo III
Direção: Gabriel Villela
Elenco: Clowns de Shakespeare
2012
Julia
Direção: Christiane Jatahy
Elenco: Julia Bernat, Rodrigo dos Santos
De Verdade (Ou a Mulher Certa)
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Kika Kalache e Guilherme Piva
Palácio do Fim
Direção: José Wilker
Elenco: Vera Holtz, Camila Morgado e Antônio Petrin
O Idiota: Uma Novela Teatral
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Mundana Companhia de Teatro
A Peça do Casamento
Direção: Pedro Brício
Elenco: Guida Vianna e Dudu Sandroni
O Jardim
Direção: Leonardo Moreira
Elenco: Cia. Hiato
Estamira – Beira do Mundo
Direção: Beatriz Sayad
Elenco: Dani Barros
Ato de Comunhão
Direção e atuação: Gilberto Gawronski
Luis Antonio-Gabriela
Direção: Nelson Baskerville
Elenco: Cia. Mungunzá de Teatro
Gilberto Gawronski em Ato de Comunhão (Foto: Lenise Pinheiro)
2013
Esta Criança
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Pólvora e Poesia
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: João Vitti e Leopoldo Pacheco
2014
Contrações
Direção: Grace Passô
Elenco: Debora Falabella e Yara de Novaes
Cais ou Da Indiferença das Embarcações
Direção: Kiko Marques
Elenco: Velha Companhia
Quem tem Medo de Virginia Woolf?
Direção: Victor Garcia Peralta
Elenco: Zezé Polessa, Daniel Dantas, Erom Cordeiro e Ana Kutner
BR Trans
Direção e atuação:Silvero Pereira
2015
Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Luciano Chirolli, Gilda Nomacce, Nana Yazbek, Felipe Aidar
2016
Um Bonde Chamado Desejo
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virginia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabrício Licursi, Fernanda Castello Branco e Matheus Martins
Urinal
Direção: Zé Henrique de Paula
Elenco: Núcleo Experimental
Caranguejo Overdrive
Direção: Marco André Nunes
Elenco: Aquela Companhia
2017
Antígona
Direção: Amir Haddad
Elenco: Andréa Beltrão
A Casa dos Budas Ditosos
Direção: Domingos Oliveira
Elenco: Fernanda Torres
2018
A Ira de Narciso
Direção: Yara de Novaes
Elenco: Gilberto Gawronski
Tom na Fazenda
Direção: Rodrigo Portella
Elenco: Armando Babaioff, Gustavo Vaz, Kelzy Ecard e Camila Nhary
Grande Sertão: Veredas
Direção: Bia Lessa
Elenco: Caio Blat, Luisa Arraes, Luiza Lemmertz, Leon Góes, Daniel Passi, Leonardo Miggiorin, Balbino de Paula.
Cena de Sonho de uma Noite de Verão, encenação da Trupe Ave Lola (Foto: Maringas Maciel)
Reproduzir no palco a natureza esplendorosa minuciosamente descrita por William Shakespeare nas páginas de Sonho de uma Noite de Verão é uma tarefa quase impossível. Ana Rosa Genari Tezza, à frente da Trupe Ave Lola e dessa montagem do grupo (atração do Fringe na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba), não procura reconstituir tais imagens. Ao contrário, investe na síntese. É justamente a construção da cena a partir de elementos reduzidos que acentua a teatralidade desse trabalho.
Na contramão dos aparatos tecnológicos, essa encenação busca estimular a imaginação do espectador por meio de recursos restritos – basicamente lençóis e praticáveis. Há pouco mais na ambientação cenográfica de Daniel Pinha, como a cortina de tiras vermelhas, cor também escolhida para o chão. Mesmo com o impacto do vermelho, a concepção estética é marcada pelo predomínio do branco e do preto dos figurinos de Ana Rosa Genari Tezza e Helena Tezza, com destaque para transparências.
A percepção de que a arte teatral independe de um acúmulo de objetos surge manifestada na própria peça de Shakespeare. Como afirma o carpinteiro Pedro Cunha, um dos integrantes da representação preparada para a cerimônia de casamento de Teseu e Hipólita, “essa nesga de grama será nosso palco”.
Personagens reais e fantásticos se mesclam nessa peça, ambientada, em boa parte, num bosque nas proximidades de Atenas. Nessa fantasia amorosa, oscilante entre sonho e realidade, jovens, confrontados com a intolerância dos mais velhos, simbolizada por Egeu, fogem para não se separarem. Os quiproquós emocionais incluem Hérmia, Helena, Lisandro e Demétrio, que têm seus sentimentos momentaneamente alterados por uma espécie de poção mágica pingada nos olhos pelo irrequieto duende Bute.
Os trabalhadores, que experimentam o ofício da atuação nos mencionados ensaios para a representação, acabam sendo inseridos numa teia de enganos que agita esse suave exemplar da dramaturgia de Shakespeare. Ao ensaiarem o interlúdio, os trabalhadores se conscientizam da distância entre ator e personagem. Falam sobre a importância de alertar o público para o fato de que não estão se fundindo, se amalgamando, aos personagens, mas que permanecem descolados deles, apesar de portarem as identidades ficcionais durante a apresentação.
Ainda que envolva o leitor/espectador na atmosfera de um mundo delirante e febril (como a paixão), Shakespeare rompe com a ilusão ao frisar o teatro como fingimento, como artifício. Em sintonia com essa perspectiva, o elenco da Trupe Ave Lola – formado por Cesar Matheus, Helena de Jorge Portela, Helena Tezza, Kauê Persona, Larissa de Lima, Marcelo Rodrigues, Pedro Ramires, Wenry Bueno e Willa Thomas – não encarna os personagens, não some por trás deles, mas se dedica a um registro em que a interpretação intencionalmente aparece, assim como a qualidade no dizer o texto.
A opção por Sonho de uma Noite de Verão é coerente com a trajetória da Trupe Ave Lola, que costuma se afastar do realismo e enveredar pela trilha do onírico. A conexão do público com o espetáculo é favorecida pelo espaço de apresentação – uma tenda, erguida na sede da companhia – que realça o caráter lúdico da empreitada.
Leandro Knopfholz e Fabíula Bona Passini dividem a direção do Festival de Curitiba (Foto: Annelize Tozetto)
Ao chegar à 32ª edição, o Festival de Curitiba evidencia preocupação com a preservação de suas características centrais, mas sem ceder à acomodação. Permanecem a programação dividida entre mostra oficial (rebatizada de Mostra Lucia Camargo, em homenagem a uma das curadoras do festival, que morreu em 2020) e Fringe. Dentro disso, porém, diversas propostas despontaram ao longo do tempo. A mais recente é a Mostra Surda de Teatro, voltada para montagens concebidas em torno do protagonismo de artistas surdos.
No que se refere à programação oficial, os grupos de curadores têm mudado. Já estiveram nessa função os críticos Alberto Guzik, Macksen Luiz e Tania Brandão, os jornalistas João Cândido Galvão e Celso Curi, a gestora cultural Lucia Camargo, o diretor Marcio Abreu e o ator Guilherme Weber. No momento, a curadoria é assinada pela produtora Daniele Sampaio, pela atriz Giovana Soar e pelo crítico Patrick Pessoa.
O Fringe, que surgiu em 1998 seguindo o modelo do Festival de Edimburgo, foi criado com o objetivo de apresentar ao público um apanhado da cena brasileira através da oferta de espetáculos reunidos por inscrição e não por seleção. Depois o Fringe passou a contar com mostras internas que, de alguma maneira, localizam o espectador em meio à variedade de atrações.
As alterações que vêm marcando o festival também estão ligadas à troca ou da inclusão de nomes na direção do evento. Em 1992, o festival era capitaneado por Carlos Eduardo Bittencourt, Cássio Chameki, César Heli Oliveira, Leandro Knopfholz e Victor Aronis. Aos poucos, os sócios migraram para outros projetos. Leandro e Cássio, por exemplo, foram trabalhar na prefeitura de Curitiba. A condução do festival ficou a cargo, entre 2001 e 2007, de Victor, que se distanciou para se dedicar ao Festival de Dança de Joinville. Hoje Leandro se encontra à frente do festival juntamente com Fabíula Bona Passini, que, no decorrer do tempo, exerceu funções diferentes dentro do festival: apoio na bilheteria, recepcionista, produtora e, agora, diretora. O festival, felizmente, está com as próximas edições garantidas, graças ao patrocínio trienal da Petrobras.
Entrevista / Leandro Knopfholz
Como era a estrutura de programação nos primeiros anos do festival?
O festival começou em 1992. Mas o primeiro Fringe aconteceu em 1998. Desde o início havia a Programação Associada, que reunia os espetáculos em cartaz em Curitiba. Em 1997 conheci o Fringe no Festival de Edimburgo. Sugeri que fizéssemos aqui também. Mapeamos mais de 100 possíveis salas de apresentação em Curitiba, mas poucas se encontravam em estado de utilidade. Equipamos minimamente as salas e inauguramos o Fringe. Oferecíamos, além da sala, som, luz e um profissional. O Fringe ganhou projeção. Também seguindo o exemplo de Edimburgo, onde o Fringe é uma grande feira, comecei a convidar programadores.
O Fringe se propõe a ser um espaço democrático, que reúne centenas de espetáculos por inscrição. Mas em que medida essa democratização é possível quando, por questões econômicas, a maior parte dos espetáculos que participa do festival é do Sudeste?
Sempre quis ter espetáculos de todos os estados do Brasil. Em determinado momento achamos que o Fringe ficou confuso e passamos a organizar mostras internas.
Como surgiram essas mostras?
Em 2003, Diogo Portugal nos procurou e propôs uma mostra de stand-up. Assim surgiu o Risorama. Depois, inspirado no Taste, realizado em Edimburgo, criamos o Gastronomix. Não inventei nada; copiei. Mas fui o primeiro a copiar. Também fizemos a mostra XXX, voltada para espetáculos eróticos, e outras: MishMash, Mostra dos Excluídos.
A partir da sua memória emotiva, quais os espetáculos que você destacaria ao longo dessas 32 edições do festival?
Sonho de uma Noite de Verão, com direção do Cacá Rosset, A Bao a Qu, da Companhia dos Atores, As Boas, do Teatro Oficina, A Vida é Sonho, assinado por Gabriel Villela, The Flash and Crash Days, espetáculo do Gerald Thomas, Corra enquanto é Tempo, A Farsa da Esposa Muda, A Rua da Amargura – esses três do Grupo Galpão –, Nova Velha História, encenação do Antunes Filho, Roberto Zucco, montagem de Nehle Franke, Angeli, d’Os Parlapatões, a Trilogia Bíblica (Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse 1,11) concebida por Antonio Araujo no grupo Teatro da Vertigem, A Máquina, espetáculo de João Falcão, 25 Homens, com direção de François Kahn, e Needles and Opium, assinado por Robert Lepage. Apesar de Curitiba ser considerada uma cidade careta, tivemos apoio para trazer espetáculos polêmicos, como O Melhor do Homem, encenação do Ulysses Cruz que foi cancelada em São Paulo por causa da temática gay, e os mencionados Sonho de uma Noite de Verão e as encenações da Trilogia Bíblica. A questão da inclusão veio depois. Nesse sentido, outro trabalho que integrou a programação foi BR Trans, solo de Silvero Pereira.
Como se dá a divisão de tarefas entre você e Fabíula na direção do festival?
Fico com a parte de patrocínio e orçamento. Aliás, graças ao patrocínio trienal da Petrobras – a primeira vez que conseguimos –, as edições de 2025 e 2026 já estão garantidas. Fabíula fica voltada para produção e programação. Mas pretendo me afastar. Estou cansado. Tenho aceitado “não” como resposta muito rápido e isso não é bom.
Entrevista / Fabíula Bona Passini
Como começou a sua ligação com o Festival de Curitiba?
Sou de Xanxerê, município de Santa Catarina. Comecei a fazer teatro aos 11 anos. Vim para Curitiba cursar faculdade de teatro já por causa do festival. Queria muito trabalhar no festival. Em 2009 abriu uma vaga de apoio na bilheteria. Naquela época, os ingressos não eram vendidos online – só fisicamente. O meu trabalho consistia em conversar com as pessoas na fila para que quando chegasse a hora de comprar já soubessem o espetáculo que iriam assistir. Em 2010 abriu uma vaga de recepcionista. Consegui a vaga. Depois comecei a me envolver com produção executiva e a vontade de ser atriz foi diminuindo. Em determinado momento fiz a direção de produção do festival. Em 2019, Leandro me chamou para a direção do festival. Mas o evento foi cancelado em 2020 por causa da pandemia.
O festival vem mudando os curadores nos últimos anos. Essas mudanças refletem, de alguma maneira, alterações no perfil da programação?
Peguei o momento de passagem da curadoria de Celso Curi, Lucia Camargo e Tania Brandão para Guilherme Weber e Marcio Abreu. Agora a curadoria é assinada por Daniele Sampaio, Giovana Soar e Patrick Pessoa. Estabelecemos que cada grupo de curador deve permanecer no festival durante dois anos. Acho que Daniele, Giovana e Patrick continuam, de certa maneira, o trabalho de Guilherme e Marcio, no que se refere à preparação de um público para o teatro alternativo. Hoje a curadoria se preocupa em convidar artistas e grupos que nunca vieram ao festival. Em todo caso, diversidade é fundamental. Precisamos ter comédias como Duetos e trabalhos identitários como Manifesto Transpofágico. Em alguns casos, o festival convida diretamente espetáculos, como foi o caso de O que nos mantém Vivos?, mas a curadoria abraça essa escolha.
No decorrer do tempo, o Fringe vem passando por alterações, não? Essa parte do festival, destinada à reunião de espetáculos por ordem de inscrição e não a partir de uma seleção, começou a contar com mostras internas.
Depois da pandemia, pensei: ou o Fringe muda ou termina. Não adiantava mais abrirmos um cadastro e fornecermos um espaço. Muitos espetáculos vinham enfrentando problema de falta de público. Também havia a questão da troca incessante de cenários em espaços que abrigavam várias montagens. Criamos um sistema de inscrições de mostras e, a partir daí, selecionamos 10. Cada mostra recebe R$ 5 mil, o espaço e a hospedagem. Estabelecemos que cada companhia deve apresentar quatro espetáculos e uma ação formativa. Além disso, criamos a rodada de negociações: programadores de espaços de diversas cidades vêm assistir aos espetáculos. Isso deu muita vida ao Fringe.
A escolha dessas mostras implica numa curadoria?
Não propriamente. Não olhamos para os espetáculos individualmente, e sim para as propostas das mostras.
O Festival de Curitiba é fundamentalmente destinado à produção teatral brasileira, com raras aberturas para espetáculos internacionais. Há intenção de incluir montagens estrangeiras ou prevalece o desejo de manter o perfil nacional? Na mostra oficial (Lucia Camargo) costumamos ter um espetáculo internacional. Esse ano teríamos três. Mas, por questões econômicas, precisamos tirá-los. Não tínhamos confirmação de patrocinador. Ano que vem queremos fazer uma Mostra Latina.
Lista de Desejos para Superagüi, filme de Pedro Giongo: melhor filme da Mostra Aurora (Foto: Divulgação)
A Mostra de Cinema de Tiradentes vem se desenvolvendo sem perder de vista a sua característica de base: a valorização de um cinema contemporâneo autoral, inventivo e eventualmente experimental, desconectado da reedição dos ingredientes conhecidos normalmente encontrados nas produções comerciais.
É surpreendente que a Mostra chegue à 27ª edição mantendo-se, até certo ponto, desconectada das pressões do mercado. Consegue, a cada ano, levantar uma estrutura considerável – perceptível na organização do evento –, oferecida gratuitamente ao público. A Mostra se tornou símbolo de preservação de um cinema que luta para existir. Reúne filmes que, por suas características específicas, muitas vezes não chegam ao circuito exibidor. Se por um lado garantir a existência desse cinema é fundamental, por outro louvar a caminhada à margem do sistema pode gerar certa preocupação num momento em que o cinema brasileiro luta para trazer os espectadores às salas.
Em pontos específicos da sua programação, a Mostra se abre a um diálogo mais direto com a plateia. Foi o caso, na recém-encerrada edição, da inclusão de Mussum – O Filmis, de Silvio Guindane, produção centrada no lendário integrante do grupo Os Trapalhões. O filme foi mostrado na praça de Tiradentes – e a própria realização de sessões ao ar livre, no coração da cidade, indica um desejo de evocação de um cinema de formato popular, valendo ressaltar que também não há cobrança de ingressos para as produções exibidas em espaços fechados.
Se existe algum obstáculo em termos de acesso aos filmes, este não é de ordem econômica; os possíveis obstáculos dizem respeito aos desafios que os filmes lançam ao público, que precisa empreender movimentos de abertura para se relacionar com eles. É evidente que a disponibilidade – ou a ausência dela – não está atrelada à classe econômica do espectador, mas talvez a um contato prévio com uma linguagem cinematográfica menos padronizada, ainda que não se possa dizer que os apreciadores “virgens” não têm com ser afetados pelo contato com filmes desconcertantes, árduos ou que não forneçam quaisquer auxílios no estabelecimento de conexões. Mas é fato que a possibilidade de alcance desses trabalhos fora do circuito protegido do festival tende a ser restrita.
A principal parte da programação da Mostra de Tiradentes é a Aurora, destinada a filmes de realizadores em início de trajetória. Esse ano, o júri oficial – composto por Affonso Uchoa, Aline Motta, Juliana Costa, Lia Bahia e Uirá dos Reis – concedeu o prêmio ao longa-metragem Lista de Desejos para Superagüi, de Pedro Giongo, e uma menção honrosa a Maçãs no Escuro, de Tiago A. Neves. Ao longo do tempo, o evento tem crescido e ganhado novas mostras paralelas, que, em todo caso, confirmam a proposta central, no que diz respeito ao destaque a filmes de assinatura marcante, sejam os realizados por diretores iniciantes, sejam por veteranos (caso de Julio Bressane, representado, nessa edição, por Leme do Destino) que permanecem desatrelados das amarras de um cinema atado a convenções. Essa característica é perceptível no próprio nome de determinadas mostras: Olhos Livres, Autorias, Deslumbramento, Invenção, Olhares e Formação.
Parte considerável das mostras do evento é destinada à exibição de curtas-metragens, formato que dificilmente encontra espaço no circuito e normalmente exibido em festivais, mas não com o mesmo destaque que em Tiradentes. A realização de curtas permanece envolta por um preconceito: costuma ser vista como etapa de amadurecimento do cineasta rumo à concepção de um longa-metragem, e não como obra em si. Tiradentes também reúne, mesmo que em menor quantidade, médias-metragens, parcela de produção que sofre ainda mais diante da falta de inserção não apenas no circuito como na programação dos festivais. A pulsação do evento pode ser constatada não “só” nas sessões dos filmes, mas nos consistentes debates realizados nos dias seguintes às exibições.
Saíram premiados dessa edição os curtas Eu fui Assistente do Eduardo Coutinho, de Allan Ribeiro (escolhido pelo júri oficial e pelo júri do Canal Brasil), e Soneca e Jupa, de Rodrigo R. Meireles. O júri oficial também contemplou Kerexu Martim, diretora do curta Aguyjevete Araxi’l com o Prêmio Helena Ignez. Já o Júri Jovem destinou o Troféu Carlos Reichenbach ao longa Aquele que viu o Abismo, de Negro Léo e Gregório Gananian. Entre as novidades dessa última edição esteve a presença de um júri de críticos da Abraccine – formado por Francisco Carbone, Rafael Carvalho e Viviane Pistache –, que avaliou os filmes da Mostra Autorias e premiou Estranho Caminho, de Guto Parente.
O crítico viajou a convite da organização do festival
André Novais Oliveira, um dos homenageados na 27ª edição da Mostra de Tiradentes (Foto: Leo Lara)
Homenageado na Mostra de Tiradentes, ao lado da atriz Barbara Colen, o cineasta André Novais Oliveira teve sua produção de curtas e longas-metragens apresentada no evento, parte presencialmente, parte virtualmente. Integraram a programação filmes como o aclamado e premiado Ela Volta na Quinta (2014) e o ainda inédito O Dia que te Conheci, mas os trabalhos escolhidos para a noite de abertura foram o curta Roubar um Plano e o média Quando Aqui, ambas criações recentes.
Roubar um Plano, dirigido por André Novais em parceria com Lincoln Péricles, mostra dois trabalhadores que abandonam uma obra e vagam pelo Capão Redondo. Novais apresenta um pouco da geografia da região por meio do trajeto dos personagens – a valorização da travessia é uma das características do seu cinema – e destaca duas periferias: a paulistana, por meio do Capão, mais dura e implacável, e a mineira, por meio de Contagem, mais familiar. De certo modo, Roubar um Plano é um filme sobre a volta para casa e a busca por reconexões pessoais. Vale dizer que Contagem, vizinha a Belo Horizonte, é mais do que uma ambientação nos filmes de Novais. É sua região de origem, personagem fundamental de seu cinema.
Um cinema que prioriza flagrantes do cotidiano de personagens comuns em detrimento de tramas com reviravoltas. Reúne, com frequência, atores não profissionais (muitas vezes, integrantes da própria família do diretor) que costumam transmitir apreciável espontaneidade na contramão do artificial tom de representação. Mas o naturalismo refinado, uma das marcas encontradas nos filmes de André Novais (ainda que esse registro seja eventualmente colocado em suspensão por meio de situações fantásticas), não foi alcançado nas atuações de Roubar um Plano.
Já Quando Aqui se distancia do presente normalmente retratado nos filmes do diretor para abarcar um extensíssimo arco temporal, do passado remoto ao futuro, de modo a destacar o acúmulo de memórias e vivências de diferentes indivíduos que viveram numa mesma casa – ou num mesmo território. Um acúmulo sintetizado nas imagens da sobreposição de tintas numa parede, depositária de todas as camadas. André Novais transita por todos esses tempos, mas sem propor ambientações fidedignas em relação ao passado ou projeções estéticas de futuro. O diretor também aproxima a questão da justaposição de tempos de seu cinema ao incluir, no decorrer desse média-metragem, trechos de seus filmes anteriores, a exemplo do curta Quintal (2015). Nesse sentido, André Novais olha em perspectiva a própria obra.
Vale dizer que o trabalho de André Novais de Oliveira é resultado direto das atividades da produtora mineira Filmes de Plástico – composta, além dele, por Gabriel Martins, Maurílio Martins e Thiago Macêdo Soares – que conquistou espaço sólido no panorama do cinema brasileiro contemporâneo por meio da realização de filmes elogiados e premiados em festivais diversos.
O crítico viajou a convite da organização do festival
Fredericco Restori em Hamlet, filme de Zeca Brito. (Foto: Edison Vara)
Zeca Brito propõe uma articulação entre a turbulenta realidade brasileira que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e Hamlet, a tragédia de William Shakespeare. O elemento de conexão mais evidente é a rebeldia, comum ao protagonista da célebre peça e ao líder estudantil interpretado, no filme, por Fredericco Restori.
O Hamlet de Fredericco não é a única voz corajosa que passa pela tela ao longo da projeção. Na verdade, todos os jovens despontam com rostos inflamados e discursos contundentes, destemidos na ocupação das escolas em oposição ao governo de Michel Temer. O vilão – na peça, o Rei Claudio, que mata o irmão, pai de Hamlet – tem mais de uma feição no filme. São os envolvidos na disputa pelo poder, os que possuem cargos públicos, mas não atendem às demandas dos menos abastados. É, numa abordagem mais ampla, o sistema.
Nesse filme de ação, os jovens, aconselhados por mestres como o professor Jean-Claude Bernardet, não hesitam em externar suas reivindicações por meio de atos. A câmera é intencionalmente instável, de modo a transmitir para o espectador uma sensação de calor do momento, autenticidade realçada na opção pelo preto e branco. Há muito espaço para o conflito – não apenas entre os jovens e o governo, mas entre os estudantes, que nem sempre concordam em relação à maneira como a ocupação nas escolas está sendo realizada.
Nos embates, a certeza parece imperar. É o que move o Hamlet de Shakespeare, que, informado pelo fantasma do pai, se vale do teatro para denunciar o crime do tio. Tom igualmente assertivo atravessa o Hamlet de Fredericco, que também recorre ao próprio pai (o ator Marcelo Restori). No entanto, o personagem da peça e o do filme perdem o controle e enveredam pela desestabilização emocional, ainda que, no caso do segundo, em escala reduzida, marcadamente quando surge atormentado por vozes internas.
O fato é que, apesar de toda a (aparente?) certeza, há uma grande dúvida ou incógnita: o futuro. Os jovens clamam por um futuro com mais oportunidades e condições justas que não sabem se conseguirão usufruir ou se só será vivenciado pelas gerações seguintes. Nesse sentido, lutam pelos que virão depois, perspectiva que remete ao final da peça Tio Vanya, de Anton Tchekhov.
Esse Hamlet radiografa o espírito desbravador da juventude, registrado com seus skates e cadarços desamarrados, distante de estereótipos nos campos da sexualidade e do comportamento, mesmo que essa questão apareça sintetizada numa única (e, por isso, deslocada) indagação: “Por que só mulher pode usar maquiagem?”. Comprometido, como os jovens que filmou, Zeca Brito mostra o rosto, num breve instante, quando discute com uma repórter de televisão.
O resultado saiu consagrado do Festival de Gramado com os Kikitos de melhor, filme, direção, ator (Fredericco Restori), fotografia (Bruno Polidoro, Joba Migliorin, Lívia Pasqual e Zeca Brito) e montagem (Jardel Machado Hermes).