“Eu vivo meu corpo”, diz Viviane de Cassia Ferreira, atriz/personagem apresentada por João Dumans em As Linhas da minha Mão, filme consagrado pelo júri oficial como vencedor da Mostra Aurora da última edição da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que tomou conta da histórica cidade mineira durante parte do mês de janeiro. Seguindo um dos princípios da performance, manifestação artística exercida por Viviane, o diretor realça a conexão entre arte e vida. Fornece ao público um retrato transparente – ainda que a presença da câmera determine um nível de atuação em quem está sendo filmado, o que, por si só, inviabiliza uma total transparência – de Viviane, revelada aos poucos diante do espectador.
Dificilmente a plateia conseguirá desvendar Viviane já na cena inicial, marcada por uma conversa sobre graus de consciência em meio a citações de Nietzsche. O desenho dela vai ficando mais nítido ao longo da projeção, à medida em que fala sobre o seu transtorno psíquico, lembra da doença da mãe e comenta sobre os relacionamentos com homens (chamando atenção para a alta voltagem sexual desses encontros) – tudo exposto enquanto fuma um cigarro atrás do outro. É emblemática a sequência em que ela, diante das mazelas de uma pessoa à sua frente, passa de ouvinte a depoente, descortinando sua desestabilização emocional.
Apesar de mostrar eventuais interlocutores, a câmera permanece, com frequência, fechada no rosto de uma autocentrada Viviane. Como os flashes do cotidiano – destacados, no decorrer da sessão, por meio de fotos – ela está em constante movimento, o que não significa necessariamente em mudança contínua. As Linhas da minha Mão traz à tona, ao longe, outra produção sobre uma mulher real, também intensa e passional: Laura (2013), de Fellipe Barbosa. Talvez a maior diferença resida no fato de que Barbosa aparece mais inserido dentro do filme devido ao seu comprometimento com a personagem-título.
As Linhas da minha Mão se inscreve numa corrente bastante valorizada, tanto no cinema quanto no teatro contemporâneo: a do trabalho confessional, no qual o artista relata, em primeira pessoa, experiências particulares, em geral dramáticas (muitas vezes, trágicas). Nesse filme de Dumans, diretor do elogiado Arábia (2017), o autodesnudamento de Viviane transcende a esfera das palavras e se dá em sua própria fisicalidade, no modo como se expressa diante do outro e do mundo.
Apesar da distância no tempo e no espaço, Cerca Viva, texto de Rafael Souza-Ribeiro em cartaz no Teatro Firjan/Sesi, remete, em alguma medida, às dramaturgias do norueguês Henrik Ibsen e do russo Anton Tchekhov – em particular, suas peças Casa de Bonecas e As Três Irmãs.
Como o original de Ibsen – escrito nas últimas décadas do século XIX –, o texto de Rafael – produção recente, mas com história ambientada nos anos 1950 – destaca o processo de libertação de uma personagem feminina protegida numa espécie de redoma, em especial no que diz respeito à estrutura estável do casamento. Tanto a Nora, de Ibsen, quanto a Lúcia, de Rafael, cumprem, pelo menos até dado momento, as funções destinadas a uma esposa nos moldes tradicionais, ainda que a primeira tome iniciativas ocultas e que a segunda manifeste, na esfera conjugal, a insatisfação com um cotidiano quase imposto.
Os pontos de ligação entre os textos não excluem, logicamente, as diferenças. A questão da maternidade é um elemento em comum, que, porém, ganha desdobramentos distintos em cada peça. No polêmico final de Casa de Bonecas, Nora rompe não só com o casamento, mas com o convívio com os filhos, como necessidade de proclamar a sua independência e encontrar um lugar no mundo. Em Cerca Viva, a perspectiva da gravidez interfere na postura de Lúcia. Outro tópico de aproximação: o contexto econômico dos dois casais (Nora-Helmer/Lúcia-Luiz). Contudo, a situação financeira de Nora é mais sólida que a de Lúcia, levada a se mudar para uma cidade do interior, mesmo que com determinada projeção (Volta Redonda), devido às oportunidades profissionais do marido.
Cerca Viva também lembra As Três Irmãs, peça sobre personagens que não conseguem concretizar os próprios planos, como o ansiado retorno a Moscou, No texto de Rafael, Lúcia é uma mulher sufocada na província que sonha com a volta para a capital, status que o Rio de Janeiro portava na década de 1950. No interior chegam ecos da cidade cosmopolita (a rivalidade entre Emilinha Borba e Marlene) e do país (uma anunciada vinda do presidente da República), que geram frisson, mas insuficiente para apaziguar as expectativas.
Como nas peças de Tchekhov, o público se depara com existências frustradas, projetos abortados, vidas em suspenso. Regina é uma atriz retirada há anos do ofício. Lúcia se vê impossibilitada de exercer a profissão de professora de francês. Engenheiro, Luiz, o marido, fica decepcionado com o resultado do seu trabalho num instante fundamental. Talvez a nuance em relação às peças do autor russo resida no fato de que em Cerca Viva os personagens partem para a ação, mesmo que lentamente. De certo modo, Lúcia e Luiz caminham em sentidos opostos, mas ambos rumo ao desconhecido – ela ao desejar a autonomia na cidade grande, ele ao avançar para um Brasil cada vez mais remoto.
Se Ibsen e Tchekhov são autores apressadamente classificados como realistas, a montagem dirigida por Cesar Augusto coloca o realismo em tensão. Esse estranhamento se dá na cenografia de Elsa Romero e Luiz Henrique Sá, que traz a estrutura externa de uma casa, a moldura destituída de preenchimento, um pouco como a estabilidade ilusória dos anos 1950. E o afastamento do realismo ocorre ainda no registro interpretativo do elenco, estabelecido na construção da peça, que faz os atores transitarem entre a narração e a vivência das personagens, oscilação praticada com considerável fluência. Camila Nhary projeta, com contundência, o crescente descontentamento de Lúcia, mas sem reduzi-la a uma nota única, desprovida de variação. Angela Rebello, com apreciável timming, conserva na voz o glamour de atriz de Regina, resquício de uma época que não volta mais. Gabriel Albuquerque desenha, com precisão, o marido vinculado a tradições. Sávio Moll concilia, na composição de Valcir, trabalhador da região, o acento de humor com o peso de uma mentalidade reacionária.
Por meio desse último personagem, o autor parece buscar um elo com os dias de hoje, apesar de não haver, nesse texto, articulações diretas com a atualidade e de o pensamento retrógrado não ser exclusividade de um período específico. Cerca Viva é uma peça que transcende – sem diminuir a importância – a sua localização histórica, suscitando associações com um passado mais distante e com o presente. São características do texto devidamente valorizadas na montagem.
Cerca Viva – Texto de Rafael Souza-Ribeiro. Direção de Cesar Augusto. Com Camila Nhary, Angela Rebello, Gabriel Albuquerque e Sávio Moll. Teatro Firjan/Sesi (Av. Graça Aranha, 1). Seg. e ter. às 19h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada).
Sem perder de vista o elo com os dias de hoje, Leci Brandão – Na Palma da Mão – espetáculo dirigido por Luiz Antonio Pilar, em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc – transporta o público para um outro tempo, particularmente no que se refere ao Rio de Janeiro, cidade onde a cantora e compositora homenageada nasceu e cresceu. Os personagens surgem inseridos em ambiente que sugere um terreiro – de modo a destacar a conexão de Leci com a religiosidade afro-brasileira – ou um quintal – símbolo de um subúrbio amoroso e aprazível duramente abalado pela escalada da violência nas últimas décadas -, de acordo com a concepção cenográfica de Lorena Lima.
Apesar da evocação do passado, a montagem estimula associações com a atualidade, especialmente no que diz respeito ao engajamento de Leci com questões que permanecem em discussão, como justas reivindicações. Um exemplo é a defasagem de oportunidades para homens e mulheres, evidenciada na cena em que ela enfrenta preconceito ao ingressar na ala de compositores da Mangueira, escola do seu coração (conforme realçado nos figurinos de Rute Alves).
Musical de porte reduzido, Leci Brandão – Na Palma da Mão procura abraçar a extensão da trajetória da artista. Busca filiação na vertente biográfica, mas concilia a abordagem panorâmica com um recorte definido, centrado na relação entre Leci e a mulher que garantiu sua sustentação afetiva e apoio profissional – a mãe, Lecy. Esse vínculo atravessa o texto fluente de Leonardo Bruno (com adaptação dramatúrgica de Lorena Lima, Luiz Antonio Pilar e Luiza Loroza), que transita pelos principais estágios da jornada de Leci: a religiosidade, o breve contato com o pai que morreu precocemente, os passos iniciais na atividade artística que a fizeram romper com um lugar feminino tradicional, a consolidação da carreira, o período de ostracismo decorrente do desentendimento com a gravadora poderosa, o comprometimento com as pautas sociais e ideológicas e a adesão à militância política.
Luiz Antonio Pilar se vale do formato de musical intimista como estímulo para instigantes propostas cênicas. O chão repleto de folhas secas rende, pelo menos, um momento de impacto: aquele em que Leci, sem perspectivas de trabalho, sucumbe e é soterrada pelas folhas. O diretor, inclusive, poderia ter aproveitado um pouco mais as possibilidades das folhas para a criação de imagens não literais, o que reforçaria a teatralidade do espetáculo. Em todo caso, a montagem surpreende com a interação entre os atores, valorizando uma certa individualização corporal sem abrir mão da necessária sintonia entre eles (direção de movimento a cargo de Luiza Loroza). Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sergio Kauffmann formam o afinado elenco: a primeira imprime credibilidade a uma Leci sanguínea e destemida, a segunda interpreta a mãe a partir de uma fisicalidade expansiva, notadamente emocional, e o terceiro acumula personagens, revelando segurança em cada composição e nas marcações de conjunto. Também cabe elogiar a integração dos músicos – Thainara Castro, Matheus Camará, Pedro Ivo e Rodrigo Pirikito -, sob a direção musical de Arifan Júnior.
Leci Brandão – Na Palma da Mão é um musical que, independentemente do efeito de uma eventual quebra da quarta parede para produzir uma proximidade ainda maior com o público, contagia de maneira genuína e demonstra habilidade na articulação entre passado e presente, abrangência e foco, objetividade e uma dose de abstração.
Leci Brandão – Na Palma da Mão – Texto de Leonardo Bruno. Direção de Luiz Antonio Pilar. Com Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sergio Kauffmann. Mezanino do Sesc Copacabana (R. Domingos Ferreira, 160). De qui. A dom., às 20h30. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada), R$ 7,50 (associados do Sesc).
Em A Hora do Boi, montagem em cartaz no Teatro Poeirinha, há movimentos que estimulam a aproximação e o distanciamento do espectador. Por um lado, os realizadores procuram fazer com que o público estabeleça um envolvimento com a história, centrada no vínculo afetivo entre um capataz e um boi – vínculo ameaçado pelos interesses do patrão. Por outro, essa adesão emocional é dosada por meio de momentos de suspensão, nos quais o ator/personagem quebra a quarta parede e fala diretamente com a plateia, e por citações diversas e explícitas a escritores (Guimarães Rosa, Euclides da Cunha) e músicas (Cálice, Admirável Gado Novo).
Há, como se pode notar, uma ambição considerável movendo esse trabalho conciso. Na esfera temática sobressai o que deve estar na origem desse projeto, nascido de argumento do próprio ator, Vandré Silveira, e elaborado por Daniela Pereira de Carvalho, autora do texto: a conexão extracotidiana, a possibilidade de um elo lancinante entre um homem e um animal, transcendendo as limitações de uma realidade pragmática. O público acompanha a jornada de um homem em duelo interior, confrontado com uma estrutura de funcionamento perversa e mobilizado por um sentimento imperativo, incompreensível no universo que o rodeia.
As referências estão ligadas a esses conteúdos descortinados ao longo do texto. Não foram introduzidas de modo postiço na dramaturgia. A crueza de uma geografia singular remete a Os Sertões, de Euclides da Cunha. E o embate do homem consigo mesmo, o assombro frente ao impacto provocado pelo outro, evoca o monumental Grande Sertão: Veredas. Há mais elementos próximos da obra de Rosa, em especial a apresentação do ato de revelação de um homem através da desconstrução de sua couraça com o intuito de radiografar sua interioridade (sua alma?), perspectiva reforçada pela cenografia de Carlos Alberto Nunes, composta por carcaças de animais. Um homem mostrado ao avesso, conforme sugerido no figurino, a cargo de Nunes.
A maneira como as canções são inseridas na dramaturgia – ditas ao invés de cantadas – faz com que soem como um texto interno do capataz, perplexo diante do que sente. Mas, apesar de pertencente a um mundo duro e cruel, ele não permite que esse estado de estranhamento reprima suas ações, norteadas pela natureza visceral da comunicação com o boi, passionalidade realçada nos tons quentes da iluminação de Renato Machado e Anderson Ratto. A organicidade alcançada na encenação de André Paes Leme, refletida na integração entre as criações artísticas, contrasta com uma intencional artificialidade, evidenciada na determinação em descolar, em algum grau, o espectador da história, em lembrá-lo de seu lugar dentro de um acontecimento teatral que se assume como tal.
Esses diferentes planos lançados no texto e destacados na encenação – o dentro e o fora da história – também se materializam na interpretação de Vandré Silveira, que transita entre personagens distintos (ainda que não por todos, na medida em que a opressão do patrão surge simbolizada, em off, na voz de Claudio Gabriel) sem enveredar pelo exercício exibicionista do virtuosismo. Aliados importantes da atuação, a direção de movimento de Toni Rodrigues e Paula Aguas, marcante na parte final, e a preparação vocal de Claudia Elizeu.
A Hora do Boi é uma montagem que, sem se valer de procedimentos interativos, ativa a presença do espectador. Investe no envolvimento, mas evita que o trabalho seja acessado de forma inteiramente ilusionista.
A Hora do Boi – Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de André Paes Leme. Com Vandré Silveira. Teatro Poeirinha (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb., às 21h, dom. às 19h. Ingressos: R$ 60,00, R$ 30,00 (meia-entrada).
BELO HORIZONTE – A programação da recém-encerrada 15 edição do Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte, que contou com curadoria de Andreia Duarte, Marcos Alexandre e Yara de Novaes, aponta para direcionamentos bem perceptíveis. Os trabalhos selecionados evidenciam a preocupação com a representatividade por meio de espetáculos com artistas e temática indígena, negra e LGBTQIA+ e o destaque a uma produção autoral e experimental, quase sempre distante dos princípios do teatro de mercado.
Considerando a vasta gama de espetáculos apresentados – mais de 30, de diversos estados brasileiros e internacionais (Argentina, Chile e México) –, é difícil estabelecer tendências. Condensado em menos de uma semana, o festival ofereceu aos espectadores uma intensa grade de atrações. Como não há como conferir a totalidade dos trabalhos, uma análise inevitavelmente resulta de um recorte em relação ao todo.
Além disso, a identificação de tendências não se limita às encenações que integraram o festival. Pode sinalizar vertentes em vigor na cena contemporânea. É o que se observa em Manifesto Transpofágico, solo de Renata Carvalho, e Museu Nacional (Todas as Vozes do Fogo), espetáculo da Cia. Barca dos Corações Partidos, ambos com dramaturgia inédita. São realizações de tamanhos e naturezas distintas, conforme sugerido nos espaços que ocuparam durante o festival – respectivamente, o Galpão Cine Horto e o Sesc Palladium. No entanto, os dois se encontram, mesmo que em graus variados, na adesão a um teatro que informa, instrui e ensina o espectador, orientação que vem norteando algumas produções nos últimos tempos.
Trata-se de um teatro que tem se colocado diante do público como uma escola de valores – diga-se de passagem, valores bastante pertinentes, ligados à inclusão numa sociedade que, com frequência, age com extrema violência frente às diferenças raciais e sexuais. Mas, por melhor que seja a lição, esse teatro educativo reforça uma postura hierárquica do artista em relação ao espectador. Por mais que muitas propostas cênicas procurem desconstruir a hierarquia por meio de uma conexão informal entre atores e espectadores, esta é, em si, inerente ao ato teatral. Afinal, o artista, mesmo lidando com o acaso, com as circunstâncias específicas de cada sessão, domina o desenrolar dos acontecimentos descortinados no palco, ao passo que a plateia está entrando em contato com eles pela primeira vez. A essa hierarquia “inevitável” foi acrescentada uma outra, exercida por um artista-professor que normalmente se refere ao espectador como alguém que precisa aprimorar o seu posicionamento e a sua atuação no mundo.
Renata Carvalho rompe com a separação palco/plateia e passa boa parte de Manifesto Transpofágico, trabalho dirigido por Luiz Fernando Marques, circulando pelo espaço destinado ao público, onde estabelece interação direta com os espectadores. Após trazer à tona a sua trajetória emocional, marcada pela exclusão diante da revelação da identidade sexual, ela incentiva aqueles que, até então, “apenas” assistem ao trabalho a relatarem vivências relacionadas à sexualidade e ao processo de rejeição ou aceitação dos mais próximos, geralmente parentes. A performer demonstra preocupação em deixar os espectadores à vontade, em não julgá-los caso façam perguntas ou declarações pouco sintonizadas com os avanços nos debates sobre gênero. Renata procura imprimir uma atmosfera de compreensão e troca de experiências, de intercâmbio entre iguais. Mas, mesmo caminhando na contramão de um tom autoritário, a artista fala do lugar de quem vive a existência travesti, de quem conhece na pele e, portanto, se encontra apta a aconselhar e a corrigir eventuais formulações equivocadas. Ela ocupa, nesse sentido, posição de superioridade.
De certo modo, Renata Carvalho se coloca como uma mestra cujo método reside na desconstrução da tradicional autoridade própria da relação professor-aluno. Ela estimula a participação dos espectadores numa inte(g)ração que se torna esgarçada dentro da estrutura do trabalho. Entretanto, a partir do instante em que se desloca do espaço do palco para o da plateia – por onde transita e se mistura, mas sem se dissolver -, Renata afirma e ilumina sua identidade. Também joga luz sobre alguns espectadores ao retirá-los do anonimato, permitindo-lhes ecoar suas vozes, suas especificidades. Os depoimentos, contudo, tendem à repetição, no que diz respeito à exposição de sofridas histórias atravessadas pela incompreensão e pelo litígio familiar e ocasionais possibilidades de pertencimento. Por meio de uma explanação didática, Renata lembra, na primeira metade do espetáculo, que, como tantos outros, sua identidade foi apagada, banalizada, resumida (e de maneira preconceituosa) à condição de travesti destituída de complexidade. O depoimento sobre esse corpo-travesti, corpo sem rosto, é reiterado pela forma como sua imagem desponta em cena, com o corpo recortado pela luz e o rosto invisibilizado. A imagem ilustra o texto, sublinhando ao invés de propor articulação com aquilo que é dito.
Fincada em sua jornada, Renata Carvalho procura ampliar o foco. Além de reunir depoimentos dos espectadores, flertar com o documental por meio de projeções com declarações que expõem uma marginalização imposta àqueles que não se enquadram em sexualidades padronizadas. A iniciativa é, sem dúvida, importante, mas há relativamente pouco espaço para contribuições não tão difundidas (a exemplo da relevância da travesti Brenda Lee, citada em rápido momento). A falta de ineditismo não inviabiliza o destaque a dados fundamentais como os apresentados ao longo de Manifesto Transpofágico, mas o didatismo de Renata teria mais sentido diante de uma plateia menos conectada com essa dura realidade. Seja como for, o teatro, como expressão artística, provavelmente ganharia mais força se os fatos surgissem inseridos dentro de uma concepção dramatúrgica menos evidente.
Assim como Manifesto Transpofágico, Museu Nacional, que conta com dramaturgia e direção de Vinicius Calderoni, parte do real. Se o primeiro espetáculo aborda a realidade de uma pessoa específica (Renata Carvalho) e transcende ao mostrá-la como símbolo do preconceito e da violência enfrentados por tantos que portam sexualidades que não se encaixam em classificações obsoletas, o segundo se debruça sobre a tragédia que acometeu uma instituição, que, devido ao descaso, foi consumida em incêndio de grandes proporções, no Rio de Janeiro, em 2018. Um patrimônio histórico valiosíssimo se perdeu em meio às chamas. A partir dessa catástrofe, a Cia. Barca dos Corações Partidos entrelaça diferentes camadas temporais para perguntar “que museu nos representa no Brasil de 2022?”
Diante do apagamento provocado pelo incêndio, os artistas evocam o passado escravocrata e propõem “fazer uma nova história”, reconstruindo o museu a partir da perspectiva inclusiva reivindicada nos dias de hoje, principalmente em relação aos índios e negros. Em determinado momento, a atriz indígena Rosa Peixoto se dirige ao centro do palco e, de frente para o público, constata: “isso não é uma cena porque vocês não me veem, não reagem quando uma aldeia é dizimada e índios são assassinados”. A atribuição de responsabilidade é reforçada pela luz lançada em direção à plateia, que, nesse instante, ganha o papel de elite branca, abastada e alienada, ainda que aqueles que costumam frequentar um festival como o FIT/BH tendam a ser mais conscientes e engajados que a referida classe. A acusação não se restringe aos que assistem a uma dada apresentação do espetáculo – até porque a cena será feita a cada noite diante de um coletivo distinto –, mas o público não é percebido como soma de subjetividades, de individualidades heterogêneas, e sim como bloco único.
Os demais atores de descendência negra e/ou indígena mostram que o lamentável reacionarismo da elite, apesar de continuar existindo atualmente, virou ou em breve se tornará peça de museu. Os artistas se colocam como porta-vozes do futuro, como aqueles que estão à frente, em plano acima dos espectadores, que, como foi dito, são vistos como integrantes de um grupo não suficientemente comprometido com a luta pelos excluídos e/ou exterminados.
Essa análise de Manifesto Transpofágico e Museu Nacional nasce de um recorte e não da ambição em abarcar esses espetáculos em todos os elementos que os constituem. Haveria muito o que falar sobre as linhas de direção e os registros interpretativos adotados, com destaque para a contundência cênica de Renata Carvalho em Manifesto Transpofágico e o domínio da palavra de Felipe Frazão e Ana Carbatti em Museu Nacional. A filiação a um teatro educativo não se limita a essas encenações, nem se impõe como nota única na programação do FIT/BH. As características comuns a grande parte das montagens selecionadas são as assinaturas autorais, o teor politicamente engajado e as concepções artísticas resultantes de trabalhos em grupo. Montagens que não buscam uma aproximação com o mercado (Museu Nacional, até certo ponto, é uma exceção) e colocam em primeiro plano as vozes de seus realizadores, cada vez menos escondidos por trás da ficção de uma personagem. A partir desses critérios, as escolhas se revelaram cuidadosas, proporcionando aos frequentadores do festival contato com espetáculos de qualidade, como Alegria de Náufragos, do grupo Ser Tão Teatro, e Negra Palavra Solano Trindade, do Coletivo Preto e da Companhia de Teatro Íntimo.
Há uma sobreposição de tempos e espaços em A Lista, montagem do texto de Gustavo Pinheiro em cartaz no Teatro dos Quatro. As personagens, duas vizinhas de gerações diferentes, lidam de maneiras distintas com o presente. A professora aposentada Laurita evoca o passado com saudade e expressa decepção com o aqui/agora. Lamenta a degradação de Copacabana e traz à tona uma época luminosa, quando o bairro contava com numerosos cinemas de rua e boates agitadas, como a Regine´s. Já Amanda, além de não ter vivido durante a fase mais efervescente de Copacabana, evidencia uma personalidade menos fatalista e preserva olhar de encanto diante do mundo, percepção que, aos poucos, contamina Laurita.
Na primeira parte da peça, as personagens interagem no apartamento de Laurita. Apesar do ambiente fechado, há referências ao espaço externo. Recolhida dentro de casa devido à pandemia do coronavírus, Laurita recebe as compras de supermercado graças à gentileza da vizinha, Amanda, que é a personagem que circula pelas ruas e se mostra em movimento constante. O claustrofóbico apartamento de Laurita é arejado pelo piso que reproduz o desenho sinuoso das pedras da orla, como se o dentro e o fora convivessem, de modo sugestivo (e conflituoso, a julgar pelos embates entre as personagens), no mesmo espaço, de acordo com a proposta cenográfica de J.C. Serroni. Na segunda parte, marcada por uma transição emocional na jornada de Laurita, ambas aparecem à beira mar e animadas com as perspectivas de mudança.
A Lista reúne algumas instâncias temporais. O passado de décadas, simbolizado por uma Copacabana exuberante, mas sem esquecer de eventuais tragédias que abalaram o país (o confisco das poupanças pela então ministra Zélia Cardoso de Mello durante a presidência de Fernando Collor de Mello, ainda que esse fato surja ligado a uma história inventada por Laurita). Há o passado recente, localizado no auge da pandemia – momento em que essa peça de Gustavo Pinheiro foi gestada e começou a ser apresentada em meio virtual -, bem refletido no confinamento de Laurita na primeira metade do texto. E finalmente o presente (ou uma projeção de futuro), com as personagens na praia.
Copacabana, descortinada diante do público e elevada ao status de personagem nessa peça, é o conhecido bairro carioca, com as suas características específicas, e, ao mesmo tempo, símbolo de transformações culturais e comportamentais contundentes que não se restringem às delimitações geográficas da região. Seja como for, a abordagem de Copacabana remete longinquamente a A Partilha, peça de Miguel Falabella, em especial nos minutos iniciais, quando Laurita comenta sobre o seu apartamento, que quase não é banhado pelo sol. No texto de Falabella, as personagens mencionam o reduzido acesso à natureza – devido a visão limitada do mar pela janela do imóvel.
Desenvolvida ao longo da pandemia, A Lista ganhou com o desdobramento das situações, ausentes da versão virtual. Mas determinadas fragilidades no âmbito da dramaturgia permanecem. Amanda desponta como uma personagem não muito crível em sua postura sempre solidária e positiva da vida, tendo em vista a quantidade de percalços, de adversidades, enumerados em seu percurso. O autor também se vale de certas repetições – a exemplo da frequência com que Laurita reitera que os bairros do Rio de Janeiro, com exceção de Copacabana, alagam. Esse recurso, inserido para provocar resposta imediata na plateia, enfraquece o resultado.
Guilherme Piva procura imprimir uma interação fluente entre as personagens, valorizando o texto e o trabalho das atrizes. O diretor investe em climas emocionais diversos, demarcados na iluminação de Wagner Antônio. Em alguns instantes, esses climas variados (realçados por uma trilha sonora eclética) são bruscamente interrompidos antes de serem instalados de modo mais sólido na cena. O provável intuito é surpreender o público. Mas há uma perda importante: o delicado equilíbrio da atmosfera doce-amarga, entre a esperança e a melancolia, não se instaura no palco. Em todo caso, Lilia Cabral domina essa dinâmica ao transitar, com agilidade, entre os lances de humor e sofrimento de uma personagem ressentida. Giulia Bertolli, mesmo enfrentando o desafio de interpretar uma personagem cujo estado de espírito não soa completamente verossímil, estabelece uma contracena segura.
A Lista demonstra filiação à tradição do teatro de mercado, com potencial para atrair uma ampla faixa de espectadores. Considerando o crescente afastamento do público das salas nas últimas décadas, esse espetáculo – dotado de méritos artísticos, em que pesem as restrições – cumpre uma função relevante.
A Lista – Texto de Gustavo Pinheiro. Direção de Guilherme Piva. Com Lilia Cabral e Giulia Bertolli. Teatro dos Quatro (R. Marquês de São Vicente, 52/Shopping da Gávea). Sex. e sáb. às 20h e dom. às 19h. Ingressos: R$ 120,00, R$ 60,00 (meia-entrada).
A dramaturgia de As Cangaceiras – Guerreiras do Sertão, assinada por Newton Moreno, oscila entre o derramamento do melodrama e a concentração da tragédia. Como no melodrama, as personagens manifestam emoções pungentes em jornadas marcadas pelo sofrimento. São mães sacrificadas – uma em busca do filho de quem foi abruptamente separada após o parto, outra na determinação em defender a filha do perigo ao redor e mais uma decidida a vingar a violência do incesto. Os homens surgem, na maioria das vezes, como algozes, como figuras ameaçadoras que, apesar de ocasionalmente dotadas de uma parcela de humanidade, não hesitam em subjugar as mulheres em atos comandados por instintos selvagens. Para completar, a filiação ao melodrama se traduz na súbita revelação de laços familiares entre opressor e oprimido. Já em relação à tragédia, o acontecimento fundamental nas vidas das personagens ocorreu previamente – a separação do filho, o permanente abuso dos homens – e o espectador é informado dos fatos. Não há uma curvatura dramática tradicional, uma apresentação das situações rumo ao clímax, com exceção da cena do reencontro de uma das personagens com o filho, ao final do espetáculo.
Em cartaz até domingo no Teatro Riachuelo, a montagem de As Cangaceiras, dirigida por Sergio Módena, transita por mais gêneros: a comédia, no modo como as personagens – às vezes criadas em registro histriônico – se expressam no cotidiano, ainda que sempre confrontadas com uma dura realidade, e o musical, que atravessa a encenação pontuando tanto as passagens mais extremadas quanto as de certo respiro pela via do humor (direção musical de Fernanda Maia e canções originais de Maia e Moreno). A habilidade em percorrer gêneros variados se reflete no percurso de Newton Moreno, que experimentou a comédia (por meio do singular As Centenárias e do comunicativo Maria do Caritó) e o drama (o estado de perplexidade flagrante em Agreste, a radicalidade do desejo em A Refeição).
Além da diversidade de gêneros, As Cangaceiras traz momentos de quebra, nos quais os personagens falam de frente para a plateia, sugerindo influência brechtiana. A referência a Mãe Coragem e seus Filhos vem à tona, ao longe, principalmente na imagem da mulher que precisa continuar gritando, mesmo sem ter como emitir som. Nesses instantes de quebra se estabelece, de maneira mais explícita, a conexão entre o período histórico do texto e os dias de hoje. Newton Moreno se volta ao passado para sublinhar a luta das mulheres, tiranizadas pelos homens. O cangaço é um símbolo do tratamento inferiorizado relegado a elas, mas o discurso da peça transcende esse contexto. Foi concebido para reverberar no público contemporâneo. Esse movimento do particular para o geral fica evidente num texto que realça as trajetórias de personagens específicas e, por outro lado, voa acima de qualquer individualização ao estimular um elo entre as mulheres de antes e de agora em suas justas reivindicações por liberdade. Moreno também é fiel ao mundo nordestino – como se pode perceber na cenografia (de Marcio Medina) que, sem aderir à reprodução realista, sintetiza, através dos nichos dispostos no palco, a paisagem árida do sertão, e nos figurinos estilizados (de Fabio Namatame), quase todos seguindo um padrão cromático, mas nem por isso destituídos de variações – e, sem abrir mão desse vínculo, ultrapassa fronteiras na abordagem de questões universais.
Em As Cangaceiras, o domínio do autor se soma ao do diretor. Sergio Módena conduz a encenação num fluxo ininterrupto e conta com interpretações de um elenco afinado. Entre os integrantes, Amanda Acosta empresta, à mulher em busca do filho, uma voltagem abertamente emocional, mas sem incorrer em excessos, Luciana Lyra projeta de forma expressiva o descontrole da viúva, Milton Filho envereda por divertida linha caricatural e Vera Zimmermann – destaque do conjunto na primeira metade do espetáculo, quando sua personagem tem mais espaço – imprime contundência à mãe, firme na proteção da filha. Cabe apenas fazer restrição à falta de clareza com que muitas falas ditas pelos atores chegam aos espectadores.
Marcelo Drummond e Guilherme Calzavara em Esperando Godot (Foto: Jennifer Glass)
José Celso Martinez Corrêa apresenta dois trabalhos no terreno do audiovisual: Esperando Godot, em que ocupa o lugar de encenador, função dividida com Monique Gardenberg e que vem exercendo primordialmente no teatro e de modo pontual no cinema, a exemplo de 25 (1975), realizado no período de seu exílio, e O Rei da Vela (1982), dirigido com Noilton Nunes; e Fédro, em que surge diante das câmeras ao lado de Reynaldo Gianecchini, numa posição, de ator, também frequente em sua carreira, considerando sua constante presença em cena nos espetáculos que assina.
Esperando Godot, peça de Samuel Beckett, é particularmente próxima de Zé Celso, que a encenou em 2001, em montagem produzida por Gardenberg (à frente da Dueto Produções). Além disso, o texto marcou a última aparição de Cacilda Becker, no espetáculo de 1969 dirigido por Flavio Rangel. No intervalo entre os atos da peça, numa das apresentações, Cacilda sofreu um derrame e foi levada para o hospital, onde permaneceu pouco menos de 40 dias em coma antes de morrer. Zé Celso escreveu e montou textos sobre Cacilda como forma de homenageá-la.
Zé Celso e Gardenberg filmam Esperando Godot no palco-passarela do Teatro Oficina, espaço amplamente aproveitado, e propõem uma espécie de paradoxo em relação ao texto original: se na peça de Beckett, os protagonistas, Vladimir e Estragon, são reféns da espera por alguém (Godot) que nunca chega – situação que sugere estagnação –, na encenação/filmagem eles têm a possibilidade de se locomoverem livremente – as portas do teatro, tanto na parte da frente quanto na de trás, e as telas da parede envidraçada ficam abertas.
Essa abertura para o espaço externo parece um modo de sublinhar que, na prática, Vladimir e Estragon podem ir embora. A exibição, ao fundo, da movimentação da São Paulo de hoje contrasta, em certa medida, com a estrutura circular, confinada, de uma peça em que no segundo ato os mesmos personagens retornam para continuar esperando Godot, ainda que não consigam se lembrar exatamente de estarem desde antes envolvidos nessa tarefa.
O destaque à configuração atual do Oficina realça a conexão com o aqui/agora buscada pelos diretores. Esse elemento se manifesta em referências ao momento presente – a chegada de Estragon usando máscara, a entrada de Lucky com mochila de iFood, a associação entre o autoritarismo de Pozzo e o comportamento do presidente Jair Bolsonaro. A aproximação com a contemporaneidade também sobressai na tradução coloquial (de Catherine Hirsch e Verônica Tamaoki), que dessacraliza o texto de Beckett.
Mas esse Esperando Godot não se restringe ao instante imediato. Ao longo da apresentação/projeção, os diretores investem numa conjugação entre passado e presente. A própria valorização da arquitetura peculiar remete ao projeto concebido por Lina Bo Bardi e Edson Elito nos anos 1980. A caracterização de Vladimir e Estragon como maltrapilhos – vestindo roupas rasgadas, rotas, esfarrapadas – traz à tona um elo com a realidade sintetizado numa fala de Vladimir – “Ninguém reconhece mesmo a gente” – que pode ser interpretada como uma alusão aos invisibilizados da sociedade, aos relegados ao lugar de pária, extrato abraçado na cena inclusiva do Oficina, em especial nos espetáculos a partir de Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Outras citações atravessam Esperando Godot: ao edifício Martinelli, construção histórica e emblemática de São Paulo, a comediantes recentes (Paulo Gustavo) e lendários (Grande Otelo), a uma peça célebre (Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, autor que influenciou o dramaturgo Nelson Rodrigues, que prestou inestimável contribuição ao teatro brasileiro, também lembrado).
Além das articulações entre espaço interno/externo e entre passado/presente, Zé Celso e Gardenberg fundem realidade e artifício. Sugerem vínculos com o panorama político e social ao mesmo tempo em que potencializam o postiço por meio da peruca de Lucky, do uso que Pozzo faz do colírio para produção de lágrimas e da decisão de expor a realização do trabalho através da imagem da equipe de filmagem no intervalo entre os atos da peça.
Esse jogo de contrários se estende ao campo da atuação. Guilherme Calzavara (destaque do elenco) e Marcelo Drummond, intérpretes de Vladimir e Estragon, enveredam por registro menos empostado, mais próximo da concretude da palavra, distante do tradicional virtuosismo do clownesco contido nos personagens. Pascoal da Conceição e Danilo Grangheia apresentam atuações mais expandidas, nas quais as manifestações físicas são mais explicitadas, seja através de uma voz de comando, seja da evidenciação de fluidos corpóreos. E o menino Raphael Moreira é o mensageiro, acentuando o contraponto entre a força catártica de Exu e a padronização das respostas em inglês.
José Celso Martinez Corrêa e Reynaldo Gianecchini em Fédro (Foto: Divulgação)
Em Fédro, Zé Celso, que não está atrás das câmeras nesse filme dirigido por Marcelo Sebá, também recorre a um texto – o diálogo, escrito por Platão, entre Sócrates e o jovem Fédro. Mas não há, como em Esperando Godot, atores interpretando personagens da ficção – por mais que, nesse filme, a separação entre os atores e as figuras de Beckett não seja rígida. Aqui, Zé Celso e Reynaldo Gianecchini surgem como eles mesmos num ansiado reencontro. Há 20 anos Gianecchini participou da montagem de Boca de Ouro, peça de Nelson Rodrigues, no Teatro Oficina, fase imediatamente anterior ao seu ingresso na televisão. Durante todo esse tempo não voltou ao Oficina e nem reviu Zé Celso.
Zé Celso e Gianecchini interagem através de uma leitura de Fédro. Não dependem, porém, por completo do texto, que funciona como pouco mais que um gatilho para falarem sobre autoexposição, corpo e passagem do tempo. Ambos afirmam que chegaram ao dia da filmagem sem qualquer planejamento prévio, mas claro que houve uma concepção anterior a esse momento, tanto em relação à escolha do texto de Platão quanto à preparação do espaço – um apartamento – onde os dois se reencontram.
Esse reencontro é marcado, até certo ponto, por uma dificuldade de ambos em estabelecer sintonia. Fica a sensação de que os dois, apesar de reunidos num único espaço, pertencem a planos distintos. Zé Celso externa a sua libertária visão de mundo por meio de um discurso que parece estar sendo dito a um interlocutor indefinido. Portador de uma fala reconhecível pelos que têm contato com o seu trabalho e acompanham a sua trajetória, Zé Celso dá a impressão de que poderia estar dizendo aquelas palavras a qualquer pessoa e não a um indivíduo específico. Inevitavelmente influenciado pelos dias de hoje, não se debruça, porém, sobre um determinado contexto; ao contrário, transcende tempos históricos. Já Gianecchini faz observações decorrentes de percepções de agora. Procura se colocar em estado de disponibilidade diante de Zé Celso, mas revela um grau de desconforto, uma presença algo ameaçada, defendida. O texto de Platão é estruturado como diálogo; essa dinâmica, contudo, é justamente o que não se estabelece entre Zé Celso e Gianecchini.
No entanto, aos poucos, um elo se firma entre ambos. Constantemente Zé Celso assinala que Gianecchini precisa relaxar (“você é muito amarrado”, “você ainda está muito tenso”). À medida que a projeção avança, o veterano diretor radiografa, com apuro crescente, o estado, principalmente corporal, do ator. Afirma que Gianecchini teme a aproximação física, a entrega. Zé Celso, numa conversa cada vez mais centrada na importância da autoexposição do indivíduo, seja ele artista ou não, defende a nudez do corpo, mas dimensiona o autodesnudamento como instância de revelação para além de um despir literal. “Vou ter que olhar nos seus olhos nus”, diz, em dado momento, para Gianecchini, que adquire um grau de espontaneidade na interação com Zé Celso.
O corpo impera em Fédro. Essa percepção vale tanto para as passagens mais expressivas – quando os corpos contrastantes de Zé Celso e Gianecchini se tocam suavemente na cama – quanto para a evocação do violentíssimo assassinato de Luís Antonio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso, em 1987. A articulação entre corpo e morte também vem à tona nas breves lembranças do câncer enfrentado por Gianecchini e da tortura sofrida por Zé Celso durante a ditadura.
Fédro coloca o espectador diante da vulnerabilidade do artista – estado bem mais visível em Gianecchini do que em Zé Celso – que tende a aumentar quando não existe personagem no sentido convencional do termo. Numa proposta como a desse filme não há como se esconder atrás de uma identidade fictícia. Os atores representam, na medida em que estão diante de uma câmera, só que a si mesmos. É como se as personagens continuassem existindo, mas como biombos transparentes que não permitem ocultar, pelo menos não significativamente, os atores. A atmosfera de intimidade do encontro dos dois no apartamento é, inclusive, quebrada com frequência pela menção à profissionais da equipe (que ajustam microfones e a iluminação) e pela imagem do cinegrafista no reflexo da janela.
Há a intenção de frisar que eles não estão sozinhos, que aquela conversa personalizada serve a um trabalho. A construção do filme transparece na montagem de Alessandro Danielli, que mescla vários instantes do encontro: ambos jantando, conversando, ensaiando, na cama e fora dela. Mas a noção de tempo não se restringe a esse reencontro ocorrido numa noite de junho de 2019, em São Paulo. Zé Celso traz à tona outras épocas – sua sempre referida encenação de O Rei da Vela, em 1967, em que apresentou o texto, até então inédito, de Oswald de Andrade, promovendo uma guinada no percurso do Teatro Oficina, e espetáculos posteriores, casos de Mistérios Gozosos e As Bacantes. Há, nesse sentido, uma condensação de tempos nesse reencontro no apartamento, incluindo ainda um apontamento para o que, porventura, possa vir a acontecer. “Hoje começa o caminho de uma futura peça chamada Fédro”, sugere Zé Celso.
O acúmulo de tempos contido, em especial, nas referências, a relevância destinada aos espaços, a não ocultação das equipes de filmagens e a realização de reencontros afetivos para Zé Celso (com um texto que já montou e um ator que já dirigiu) são alguns dos elementos comuns aos dois trabalhos. E se Esperando Godot bate na tela como uma apropriação livre, mas sem explodir com a sua construção estrutural, da peça de Samuel Beckett, Fédro pode fazer o público lembrar, ainda que longinquamente, de Anton Tchekhov. Um autor que abordou a falta de interação entre personagens reunidos num mesmo plano histórico e geográfico. E que concebeu personagens que extravasam as bordas das peças não só ao mostrá-los com vidas que extrapolam o fragmento de tempo descortinado diante do leitor/espectador como ao destacá-los realizando projeções para o futuro, quando não estarão mais vivos.
Angela Leite Lopes em Dusefonia (Foto: Divulgação)
A atriz italiana Eleonora Duse (1858-1924) demonstrou adesão ao discurso antigo e à prática moderna do teatro. Por um lado, considerava o ator não mais que um elemento de ligação entre o texto do autor e o espectador, posicionamento que realçava a tradição textocentrista baseada numa superioridade da obra do dramaturgo em relação aos demais componentes da cena. Por outro, revolucionou o entendimento sobre o trabalho do ator ao evidenciar, em suas interpretações, uma doação sem reservas na encarnação das personagens. Ao procurar ocultar a própria presença para que o texto dramático sobressaísse, o contrário acontecia: Duse acabava monopolizando a atenção do público por meio de um registro interiorizado, filigranado, contido.
Esse paradoxo, destacado pela teórica Beti Rabetti no texto Eleonora Duse por Silvio D’Amico: a Interpretação que se Esconde, é abordado em Dusefonia, experimento concebido por Angela Leite Lopes e Miguel Vellinho. “Tirar do meu ventre, das minhas entranhas, aquele suspiro fatal”, afirma, em dado momento, Duse, que, norteada pelo princípio da autoexposição, da revelação de um ator desmascarado, acreditava que “não se emula, nem representa”.
A mencionada determinação de Duse a imprimir uma presença discreta, em nada impositiva, decorria de uma percepção do ofício como “a arte de desaparecer”. Talvez houvesse a consciência do caráter efêmero do ato teatral, que se dissolve assim que a apresentação termina e nunca mais será repetido de maneira idêntica – mesmo um eventual registro audiovisual modifica a apreciação do trabalho. O espetáculo teatral (e, claro, o desempenho do ator) permanece vivo na subjetividade do espectador, mas, concretamente, esfumaça, morre.
Por força do período em que viveu – e lembrando ainda que se viu obrigada a interromper a carreira durante uma fase devido a um esgotamento emocional gerado pela forma visceral com que exerceu a profissão -, Duse construiu seu percurso no teatro e, por isso, a inestimável importância de sua contribuição artística vem à tona mais por meio de pesquisas e referências do que efetivamente de flagrantes de atuação. Exceção: sua aparição no filme Cenere (1916), de Febo Mari e Arturo Ambrosio, encerrando Dusefonia.
A morte também se insinua por meio do boneco, objeto inerte que ganha vida a partir da interação estabelecida pelo intérprete. É o que faz Angela Leite Lopes em Dusefonia, ao “contracenar” com boneco que evoca a Margarida Gautier de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas. O boneco, possivelmente um duplo de Duse, remete à supermarionete de Gordon Craig – encenador do qual a atriz se aproximou na montagem de Rosmersholm, de Henrik Ibsen -, conceito que aponta para a utopia da perfeição. Manipulável, o boneco é plenamente controlado e proporciona, nesse sentido, uma chance de libertação das inconstâncias e imprecisões humanas que, para Craig, inviabilizariam o status de obra de arte absoluta. Duse, porém, compreendia a perfeição como um amálgama entre domínio técnico e alma. Saudosa do teatro de bonecos da infância, Duse surge mobilizada por memórias do passado que não podem mais ser reconstituídas. A abrangente temática da morte sugere algum elo com o encenador polonês Tadeusz Kantor, frisado em Dusefonia.
A dramaturgia, composta por cartas e episódios da trajetória de Eleonora Duse, tem estrutura fragmentada, assim como as partes de corpo expostas aos poucos aos espectadores. Atravessada pela atuação suave de Angela Leite Lopes, que não tenta “reproduzir” Duse, esse experimento cênico/audiovisual conecta o público brasileiro com a lendária atriz europeia, que, inclusive, já esteve se apresentando aqui. Uma atriz que se tornou marco de interpretação moderna, em especial no que diz respeito ao modo como se fundiu nas personagens de Ibsen.
Onde ver: No canal YouTube do CEAK (Centro de Estudos Ana Kfouri)
Ziembinski, encenador e ator retratado por Joel Pizzini no documentário Zimba (Foto: Divulgação)
Nos minutos iniciais de Zimba – documentário exibido no Festival É Tudo Verdade que acaba de desembarcar nos cinemas -, o público se depara com imagens da morte do encenador e ator Zbigniew Ziembinski (1908-1978). Joel Pizzini apresenta um exercício imaginativo (um argumento original de Ziembinski) sobre um ator consagrado que forja a própria morte para dimensionar a sua relevância no mundo e, ao notar seu crescente esquecimento, anseia por revelar a todos que está vivo. Já perto do término da projeção, Ziembinski fala sobre seus primeiros anos na Polônia natal – o nascimento, a perda precoce do pai. Nas lembranças do começo de sua existência, a morte se mantém presente. Pela boca de um de seus personagens, Ziembinski constata que “só depois de morto me fizeram ver o quão importante é a vida”. Há uma estrutura coerente, redonda, que conecta os pontos extremos desse filme, conjugando transcendência e impotência diante da vida.
Essa trajetória intensa, ao contrário do que possa parecer, não surge disposta em ordem cronologicamente inversa. Na montagem, Idê Lacreta rompe de maneira mais complexa com uma tradicional linha do tempo. Promove um instigante embaralhamento. Não ambiciona expor todas as contribuições de Ziembinski, mas não abre mão de fornecer ao espectador uma perspectiva panorâmica dos principais feitos do artista: os trabalhos realizados ainda na Polônia, a vinda para o Brasil em 1941, o encontro com o grupo amador Os Comediantes -, fez a iluminação da remontagem de A Verdade de Cada Um, de Pirandello, dirigiu espetáculos, atingindo o ápice na revolucionária encenação de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues, marcada pela sintonia com o cenógrafo Santa Rosa -, o ingresso no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) – onde estabeleceu elo inquebrantável com a atriz Cacilda Becker – e a sua tendência, como ator, a investir em composições físicas e vocais dos personagens, a exemplo de sua atuação na novela O Bofe, de Braulio Pedroso, em 1972. “Eu aprendi a ver o brasileiro através das caricaturas de Ziembinski”, disse Antunes Filho, que, em 1974, dirigiu, no programa Teatro Dois, da TV Cultura, uma versão de Vestido de Noiva.
Ao longo de quase todo o filme não há uma correspondência direta entre texto e imagem. A exceção é o momento em que, diante da evocação da montagem de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues, pelo grupo Os Comediantes, sob a direção de Ziembinski, em 1943, aparecem imagens externas e internas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, palco onde o espetáculo aconteceu. Essa conexão, porém, não se reduz a em mero didatismo e o filme permanece estimulando o espectador a traçar articulações a partir do material que bate na tela.
Seja como for, o acúmulo de tempos que atravessa Zimba não se restringe à montagem. Está na gênese do projeto, a julgar pelo entrelaçamento de passado e presente concretizado por Pizzini. As imagens de arquivo trazem à tona flagrantes de uma Europa destruída durante a Segunda Guerra Mundial, depoimentos de atores e atrizes (Fernanda Montenegro, Walmor Chagas, Paulo José, Domingos Oliveira) sobre Ziembinski e o registro de Nelson Rodrigues caminhando por Copacabana. Atrizes emblemáticas realçam facetas fundamentais da jornada do artista. Nathalia Timberg, que interpretou Madame Clessi na mencionada versão de Vestido de Noiva, a cargo de Antunes Filho, e foi dirigida por Ziembinski na novela A Rainha Louca, de Glória Magadan, em 1967, resgata informações sobre os passos profissionais do encenador, na Polônia. A atriz, que cursou Belas Artes, frisa como Ziembinski canalizou o dom da pintura para a prática teatral. Nicette Bruno rememora, em particular, a montagem de Ziembinski, no Teatro Popular de Arte (TPA), para Anjo Negro, uma das peças míticas de Nelson Rodrigues, em que integrou o elenco no papel da jovem Ana Maria. Foi uma escolha dramatúrgica ousada para os padrões do ano de 1948, apesar do protagonista, Ismael, não ter sido interpretado por Abdias do Nascimento, conforme o desejo de Nelson, e sim por Orlando Guy, ator branco que pintou a própria pele. Camilla Amado, que participou, como Alaíde, de outra versão de Vestido de Noiva, assinada por Ziembinski, em 1976, dá vazão a percepções significativas do texto e do contato com o encenador.
Essas impressões preciosas são compartilhadas com um elenco jovem (Bárbara Vida, Ana Paula Quevedo, Fernanda Huffel, Jack Berraquero) numa espécie de contracena entre o presente e diferentes camadas de passado, considerando os espetáculos concebidos a partir da peça de Nelson Rodrigues. Uma proposta de Pizzini relacionada ao jogo temporal do filme. O resultado soa algo artificial. Mas não diminui o valor desse novo mergulho do cineasta no universo artístico – e, particularmente, no teatral – depois de Glauces – Estudo de um Rosto (2001), curta-metragem em que comprovou a multiplicidade da atriz Glauce Rocha por meio de uma colagem de suas atuações em diversos trabalhos, com recorte, como o título indica, na expressão facial. O rosto de Ziembinski também é abordado em Zimba como uma fisionomia de traços determinantes – contrariados, contudo, através de caracterizações surpreendentes para os personagens que interpretou. Uma evidência da versatilidade de um artista que, aqui, recebe um retrato abrangente, mas nem por isso disperso.