Fredericco Restori em Hamlet, filme de Zeca Brito. (Foto: Edison Vara)
Zeca Brito propõe uma articulação entre a turbulenta realidade brasileira que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e Hamlet, a tragédia de William Shakespeare. O elemento de conexão mais evidente é a rebeldia, comum ao protagonista da célebre peça e ao líder estudantil interpretado, no filme, por Fredericco Restori.
O Hamlet de Fredericco não é a única voz corajosa que passa pela tela ao longo da projeção. Na verdade, todos os jovens despontam com rostos inflamados e discursos contundentes, destemidos na ocupação das escolas em oposição ao governo de Michel Temer. O vilão – na peça, o Rei Claudio, que mata o irmão, pai de Hamlet – tem mais de uma feição no filme. São os envolvidos na disputa pelo poder, os que possuem cargos públicos, mas não atendem às demandas dos menos abastados. É, numa abordagem mais ampla, o sistema.
Nesse filme de ação, os jovens, aconselhados por mestres como o professor Jean-Claude Bernardet, não hesitam em externar suas reivindicações por meio de atos. A câmera é intencionalmente instável, de modo a transmitir para o espectador uma sensação de calor do momento, autenticidade realçada na opção pelo preto e branco. Há muito espaço para o conflito – não apenas entre os jovens e o governo, mas entre os estudantes, que nem sempre concordam em relação à maneira como a ocupação nas escolas está sendo realizada.
Nos embates, a certeza parece imperar. É o que move o Hamlet de Shakespeare, que, informado pelo fantasma do pai, se vale do teatro para denunciar o crime do tio. Tom igualmente assertivo atravessa o Hamlet de Fredericco, que também recorre ao próprio pai (o ator Marcelo Restori). No entanto, o personagem da peça e o do filme perdem o controle e enveredam pela desestabilização emocional, ainda que, no caso do segundo, em escala reduzida, marcadamente quando surge atormentado por vozes internas.
O fato é que, apesar de toda a (aparente?) certeza, há uma grande dúvida ou incógnita: o futuro. Os jovens clamam por um futuro com mais oportunidades e condições justas que não sabem se conseguirão usufruir ou se só será vivenciado pelas gerações seguintes. Nesse sentido, lutam pelos que virão depois, perspectiva que remete ao final da peça Tio Vanya, de Anton Tchekhov.
Esse Hamlet radiografa o espírito desbravador da juventude, registrado com seus skates e cadarços desamarrados, distante de estereótipos nos campos da sexualidade e do comportamento, mesmo que essa questão apareça sintetizada numa única (e, por isso, deslocada) indagação: “Por que só mulher pode usar maquiagem?”. Comprometido, como os jovens que filmou, Zeca Brito mostra o rosto, num breve instante, quando discute com uma repórter de televisão.
O resultado saiu consagrado do Festival de Gramado com os Kikitos de melhor, filme, direção, ator (Fredericco Restori), fotografia (Bruno Polidoro, Joba Migliorin, Lívia Pasqual e Zeca Brito) e montagem (Jardel Machado Hermes).
Henrique Bulhões e Ayla Gabriela em Pássaro-Memória, curta-metragem de Leonardo Martinelli (Foto: Divulgação)
Leonardo Martinelli transita entre a exposição e a suspensão do real. No curta-metragem Pássaro-Memória, exibido no Festival de Gramado, essa oscilação se manifesta por meio do registro do cotidiano no Rio de Janeiro e do modo como sequências de dança são inseridas nesse cotidiano. “Eu não gosto do realismo”, afirma Lua (Ayla Gabriela), dona do pássaro Memória, que, diferentemente de outras vezes, saiu pela cidade e não voltou para casa.
Lua e Memória adoram musicais. Aparentemente não aqueles superproduzidos, e sim os que nascem do dia a dia, sem maiores preparações ou avisos prévios. Nesse filme de Martinelli, os atores começam a cantar e dançar, surpreendendo o público tanto pela passagem abrupta do diálogo prosaico para as cenas coreografadas quanto pela preservação da naturalidade das vozes, sem qualquer espetacularização. As referências podem ser as mais diversas, de O Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy, a Todos Dizem Eu Te Amo (1996), de Woody Allen.
O musical ainda desponta como elemento de fantasia fundamental em meio a uma realidade dura. É o que se percebe nas relações de trabalho com as quais Lua tem que lidar em sua rotina como atendente de um bar. E na luta enfrentada por todos os portadores de corpos trans, frequentemente vitimados pela violência – corpos presentes nesse curta, mesmo que o diretor não aborde de maneira explícita essa problemática.
Seja como for, a interface entre o cinema e as artes cênicas não se dá apenas nos instantes de dança. Desde o início da projeção, o espectador é colocado diante de uma rua-palco. A primeira sequência, marcada pela saída de Memória, mostra o amanhecer na cidade, com a rua sendo lentamente ocupada, com os transeuntes surgindo, pouco a pouco, numa dinâmica cênica.
A partir daí, Lua sai em busca de Memória. Há uma evidente conexão entre o nome do pássaro e a priorização de espaços do centro histórico do Rio de Janeiro. Ocasionalmente irrompem falas didáticas, como “parece que Memória esqueceu como voltar para casa” e “quem sabe Memória não encontra outra forma de pertencer à cidade”. Uma restrição, porém, que não torna o resultado menos instigante.
Pássaro-Memória guarda muitos pontos de ligação com Fantasma Neon (2021), também de Martinelli, curta exibido nos cinemas juntamente com Fogo-Fátuo (2022), longa de João Pedro Rodrigues. Como em Pássaro-Memória, no filme anterior a plateia se deparava com o contraste entre uma realidade implacável (a dos entregadores de aplicativo) e breves e imaginários momentos de escape (através da dança e de uma discreta dose de romantismo), com figuras invisibilizadas (os entregadores) e confrontadas com a violência (os corpos negros, não por acaso com rostos em destaque). A escolha das locações se afastava igualmente dos habituais cartões postais do Rio de Janeiro.
Ana Beatriz Nogueira e Kika Kalache em Sra. Klein, montagem em cartaz no Teatro Prudential até o próximo domingo (Foto: Cris Almeida)
Numa época como a de hoje, em que parte considerável da produção teatral está voltada para a afirmação de posturas identitárias diante da justa necessidade de protestar contra toda forma de exclusão perpetuada ao longo do tempo, um espetáculo como Sra. Klein, centrado na valorização de uma dramaturgia não diretamente atrelada à pessoalidade dos atores, se tornou quase raro. Nesse sentido, essa montagem preenche uma certa lacuna no panorama atual (pelo menos, no que diz respeito à cena do Rio de Janeiro), além de significar um investimento naquilo que passou a ser percebido como árido no acelerado mundo contemporâneo: “confrontar” o espectador com a experiência da escuta de um texto, de uma intensa dialogação sustentada pelas presenças dos intérpretes e não por uma visualidade sedutora.
A peça de Nicholas Wright – encenada (mais de uma vez) por Eduardo Tolentino de Araújo – destaca relações atravessadas por dependência e dominação entre três mulheres: a célebre Melanie Klein, sua filha, Melita, e sua assistente Paula. Há ainda um quarto personagem, invisível, mas onipresente – o outro filho de Melanie, Hans, que morreu. Melanie, que não hesitou em romper barreiras ao se colocar como analista dos próprios filhos, desqualifica profissionalmente Melita, também psicanalista, que procura se posicionar de maneira passional diante da mãe. Estabelece-se entre elas um embate sanguíneo que remete, ao longe, ao conflito entre Arkádina e Treplev, personagens de A Gaivota, de Anton Tchekhov. Já Paula intermedia as disputas entre mãe e filha, com um distanciamento lúcido, ao mesmo tempo em que ambiciona ter Melanie como analista.
Victor Garcia Peralta, que retoma a peça de Wright após uma montagem que dirigiu na Argentina, quebra com a dinâmica realista do texto e propõe numa cena sintética, que tem, como elementos principais, um conjunto de cadeiras simples. Há pouco mais no palco do Teatro Prudential – como o trem de brinquedo simbolizando a infância, em referência tanto ao passado evocado no decorrer da peça quanto, eventualmente, à atividade de Klein como psicanalista –, que vai sendo poluído por outros objetos durante a apresentação. Não se trata, porém, de uma concepção apenas funcional. Existe uma integração entre a cenografia (de Dina Salém Levy) e a iluminação (de Bernardo Lorga), que, pela estrutura rebaixada, sugere ambientação algo opressiva. A luz oscila entre o tom frio – que realça a crise entre mãe e filha – e a especificidade do recorte intimista – que potencializa a interioridade de Melanie Klein. Nos figurinos (de Karen Brusttolin) sobressaem expressivas criações com predomínio da cor preta.
A ausência de elementos dispersivos na montagem ajuda a fazer com que as atenções se concentrem na contracena entre as atrizes. Ana Beatriz Nogueira, que anteriormente interpretou outra personagem real do universo psicanalítico – Sibylle, filha de Jacques Lacan –, surge como uma Melanie Klein que representa diante dos que estão ao seu redor. Uma diva quase sempre defendida, que conserva evidente comportamento hierárquico. Essa personagem que atua durante todo o tempo não se torna, no trabalho de Ana Beatriz Nogueira, uma figura artificial, afetada. Magnetizante, a atriz domina, à perfeição, o desenho emocional de uma Melanie Klein que destila tiradas sarcásticas e irônicas, sem, com isso, perder sua humanidade, manifestada em instantes de desestabilização. Natália Lage escapa do risco da linearidade ao imprimir apreciáveis variações às constantes divergências entre Melita e Melanie. Kika Kalache enfrenta a dificuldade de uma personagem mais focada na escuta, que existe em plano mais discreto, e dosa a contenção com o extravasamento na parte final.
A verborragia de uma peça como Sra. Klein se constitui como um desafio ao público de hoje. No entanto, aqueles que se disponibilizarem encontrarão, além do prazer do texto (em tradução de Thereza Falcão), uma interpretação excepcional de Ana Beatriz Nogueira e uma cena firmada sob base minimalista e eficiente.
Sra. Klein – Texto de Nicholas Wright. Direção de Victor Garcia Peralta. Com Ana Beatriz Nogueira, Natália Lage e Kika Kalache. Teatro Prudential (R. do Russell, 804). De qui. a sáb. às 20h e dom. às 17h. Ingressos: R$ 100,00 (qui. e sex.) e R$ 120,00 (sáb. e dom.). Ingressos promocionais a R$ 35,00 na Plateia B nas sessões de quinta.
Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar
Siba
Zaratustra, Camila Moura, Jefferson Melo, Natalia Brambila, Ramires Rodrigues e Anderson Oli em Nem Todo Filho Vinga, montagem que será apresentada no Museu da Maré na quinta, sexta e sábado dessa semana (Foto:Thiago Santos)
Viviane da Soledade
Se no Brasil nem todo filho vinga desde os primórdios do período colonial, a resistência sempre foi a maior vingança contra o racismo. Desde então é sabido de quem o filho não vinga. A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1852-1936) tornou-se uma referência imagética do embranquecimento das pessoas negras no Brasil por ter sido apresentada no I Congresso Universal das Raças, em Londres, pelo cientista João Batista de Lacerda em 1911, então diretor do Museu Nacional[1]. Essa é uma evidência de que a arte sempre flertou com o projeto eugenista de embranquecimento da população brasileira. Como essa pintura, muito foi produzido nas artes para implantar o imaginário racista de extermínio da população negra, um projeto que não vingou.
Se por um lado o projeto de liquidação dos negros no Brasil não se efetivou, tendo em vista que mais de 54% da população se autodeclara como negra, por outro a tentativa de genocídio negro vai se sofisticando. Conforme dados do IBGE, em 2014, 76% das pessoas mais empobrecidas no Brasil são negros e negras. A pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça[2] anunciou a diferença entre negros e brancos, especialmente no que diz respeito aos domicílios localizados em assentamentos “subnormais”[3] como favelas em comunidades vulneráveis. Apesar de todas as adversidades socioeconômicas e raciais,a Cia. Cria do Beco estreou o espetáculo Nem Todo Filho Vinga, dirigido por Renata Tavares, em 2022, no Museu da Maré. Em 2019, a companhia teatral foi o primeiro grupo favelado a ganhar o Festival de Teatro Universitário (FESTU), com o prêmio de melhor esquete em 2019. A cena curta tornou-se um espetáculo que estreou no Museu da Maré, origem do grupoformado por jovens artistas negros, universitários e moradores do Complexo de Favelas da Maré. Além disso, o Museu da Maré é responsável pelo fomento do importante projeto Entre Lugares, voltado para o ensino de teatro para jovens do Morro do Timbau. Não é à toa que o espetáculo tem como cenário a Maré, um dos mais importantes complexos de favelas do Rio de Janeiro devido à sua extensão territorial, alto quantitativo de moradores, diversidade cultural e articulação comunitária extremamente sofisticada.
Nem Todo Filho Vinga é um texto inédito de Pedro Emanuel em colaboração com a Cia. Cria do Beco que tem como ponto de partida a obra Pai Contra Mãe, de Machado de Assis, com inúmeras citações autorais que se confundem com a realidade do grupo. O espetáculo aborda, principalmente, os desafios de ser negro e favelado no Rio de Janeiro. As dramaturgias são também exercícios epistemológicos e agenciadoras de poder. Quando são produzidas para a manutenção da hegemonia, dificilmente darão conta dos interesses da sociedade periférica social, econômica, racial e geograficamente. Então, a disputa é também por narrativas que deem cada vez mais subsídios para a criação de cenas que abordem as questões de interesses da sociedade à margem dos privilégios sociais. Logo, a reincidente produção de textos originais de coletivos periféricos tem sido relevante para a formulação de mais cenas capazes de projetar outros corpos que apresentem outros registros de interpretação.
A defesa e a garantia do direito à cultura podem parecer redundantes, se a cultura é entendida como produção espontânea. No entanto, quando essa cultura se torna intencionalmente estética, por isso artística, a sua fomentação e difusão não está garantida para todos, todas e todes. A oportunidade de criação e fruição não é democrática como querem fazer parecer. A criação artística nesse país, a produção e fruição cultural são privilégios brancos. No entanto, muitos coletivos menos abastados da cidade vêm trabalhando criativa e insistentemente para diminuir as desigualdades. As relações que se estabeleceram com a cultura também foram assimiladas pelo mercado e, nesse sentido, o poder aquisitivo impera. Por essa razão, a Cia. Cria do Beco parece ter como perspectiva o trabalho incansável de formação do seu público para juntos alterarem a dinâmica de poder estabelecida. Essa companhia teatralé atravessada pela identidade como disparador de elaboração estética, na busca por ser representado, na ocupação de outros espaços de cultura da cidade e no desenvolvimento econômico para si e seus territórios.
O espetáculo elucida a questão do genocídio, tendo Maicon como personagem disparador dessa tônica, interpretado pelo ator Jefferson Melo, que apresenta o conflito de um jovem favelado ao acessar o curso de Direito da universidade pública por questionar a noção de justiça estabelecida no país que parece não levar em consideração as questões sociais e raciais de sua comunidade. É apresentada uma ficção crítica às recorrentes injustiças ocorridas na favela que dialogam com dados estatísticos informativos de que ao menos cinco pessoas negras são mortas pela polícia todos os dias[4]. Segundo a Rede Observatórios de Segurança, a cada quatro horas um negro é morto pela polícia no Brasil. Das mais de 2.600 mortes em ações policiais em 2020, 82,7% das pessoas eram negras. Só na capital fluminense, 90% dos mortos são negros. E onde estão os negros das grandes cidades? A meu ver, o espetáculo se vale dessas estatísticas sobre constantes violências aos quais os corpos negros e favelados estão submetidos no Rio de Janeiro para forjar a sua dramaturgia como delação. No entanto, tão importante quanto as inúmeras denúncias apresentadas é a possibilidade de reconhecer na favela o seu poder de criação.
A montagem da Cia. Cria do Beco, dirigida por Renata Tavares, foi vitoriosa nos prêmios APTR e Shell (Foto: Thiago Santos)
O enredo central do espetáculo apresenta um jovem favelado em conflito ético entre o que está sendo estudado e a realidade em que vive, evidenciando a distância das universidades da vida cotidiana da população. De alguma maneira, a ascensão social do jovem Maicon altera a dinâmica da universidade, espaço majoritariamente branco e elitista, ao mesmo tempo em que desestabiliza as suas relações na favela com os amigos interpretados pelos atores Anderson Oli, Camila Moura, Natália Brambila, Ramires Rodrigues e Zaratustra. O jovem se vê no conflito entre a oportunidade de melhores condições de vida, ao mesmo tempo em que se torna mais crítico ao amigo, traficante da favela. Há na trajetória de Maicon, ao adentrar a universidade, a primeira noção de deslocamento que será tão cara ao espetáculo. Esse deslocamento inicialmente territorial ao qual Maicon e muitos jovens periféricos estão submetidos ao ocupar outros espaços da cidade não habituais estabelecem desafios simbólicos e emocionais que vão se consolidando na dramaturgia. Mas é também outro movimento que está em jogo, a possível e tão desejada ascensão social. Essa é uma realidade que tem modificado com as políticas públicas afirmativas, mas que exige coragem das pessoas negras e periféricas para lidarem com as hostilidades mais recorrentes fora da sua comunidade. Nesse caso, há um dentro e fora da comunidade que vai se materializando no espetáculo.
No espetáculo Nem Todo Filho Vinga, para além da sua dramaturgia e do significado que os corpos negros e favelados têm em cena, a direção dá pistas importantes para os espectadores constituírem experiências de deslocamento análogas aos moradores de favela, no âmbito geográfico, mas também simbólico. Numa perspectiva da favela e do urbanismo, os deslocamentos nas grandes cidades têm sido recorrentemente discutidos no âmbito do direito à cidade. Esse deslocamento do espectador, induzido pela direção de Renata Tavares, provoca a experiência sensível da dinâmica da favela. E desse modo o espetáculo e seu público vão sendo constantemente transferidos de lugar pelos atores. Essa mobilidade é viabilizada pela concepção cenográfica de Flávio Vidaurre e a precisa iluminação cênica de João Gioia, Lucas da Silva e Raimundo Pedro. O espetáculo inicia com a configuração tradicional de palco e plateia, tendo no palco como cenário a laje, um dos mais importantes lugares das casas de favela por propiciar os encontros e festejos. Ao longo do espetáculo, a frontalidade vai sendo corrompida com as cenas entre a plateia de maneira a provocar o seu deslocamento para a formação de outras configurações espaciais semelhantes à geografia da favela. O deslocamento é também semântico, por meio da dramaturgia e da oferta de outros pontos de vista ao espectador. Além de sugerir um convite à plateia da mobilidade necessária para ver diferente a dinâmica da favela, também estabelece corporalmente uma ocupação dos espaços favelados. Desse modo, mantendo a laje como referência central da cena, propõem-se na plateia espaços cênicos, tais como becos, ruelas, pontos de encontro. Os nomes das ruas são evocados como uma cartografia da Maré. Cada lugar citado vai dando a dimensão afetiva dessa espacialidade não só para os personagens, mas para os atores que lá residem em sua maioria. Algumas outras referências culturais da favela vão dando materialidade ao trabalho por meio da trilha sonora de Renata Tavares e Zaratustra, do figurino de Tiago Ribeiro, da dramaturgia e dos próprios corpos dos atores numa grande ode à favela para dar conta do orgulho e pertencimento comunitário que superam as dificuldades encenadas dada a possibilidade de mobilidade, dinâmica e vibração experienciada por seus espectadores ao longo do espetáculo.
Com a ascensão de grupos de teatro periféricos na cena teatral do Rio de Janeiro, a noção de territorialidade dentro e fora de cena tem estado em voga, provocando inúmeras reflexões sobre a interseccionalidade de raça, classe e gênero. As produções das localidades que extrapolam o eixo central da capital têm raízes profundas nos seus territórios. Ao mesmo tempo que têm convocado o público morador da Zona Sul e Zona Central da cidade a acompanharem a produção das favelas, do subúrbio e da Baixada Fluminense in loco, esses grupos também têm demandado a ocupação dos espaços de cultura hegemônicos como direito.A produção da Cia. Cria do Beco, bem como as de outros grupos periféricos, são fundamentais para a ampliação das referências de produção cultural do Rio de Janeiro, para a desarticulação da noção hegemônica de arte e para a reformulação da ideia de quem tem direito à produção artística nessa cidade.
Depois de temporada no Museu da Maré, a Cia. Cria do Becojá se apresentouno Teatro Ipanema, no Teatro Café Pequeno, no Leblon, no Espaço Sergio Porto, no Humaitá, no Polo Educacional Sesc, em Jacarepaguá, integrou a programação do Festival Midrash[5] e conquistou a premiação de melhor direção teatral do 33º Prêmio Shell de Teatro e do 17º Prêmio APTR Nacional, além da indicação da Cria do Beco ao Prêmio Shell na nova categoria Energia que Vem da Gente, que visa reconhecer a criatividade dos artistas e seu impacto positivo na sociedade brasileira. O 33º Prêmio Shell de Teatro contemplou a primeira mulher negra indicada na categoria, Renata Tavares, que em seu discurso na cerimônia de premiação narrou o episódio de racismo sofrido por um integrante do grupo por estar em cartaz no Teatro Café Pequeno, localizado no bairro com o IPTU mais caro da cidade do Rio de Janeiro. Este prêmio de teatro, de grande importância para a classe artística, indicou esse ano um quantitativo expressivo de produções de artistas negros, periféricos e transsexuais em comparação às edições anteriores. Os jurados apontaram para uma cena teatral que vem sendo negligenciada há anos no teatro brasileiro, mas que ainda assim vinga. As premiações da diretora Renata Tavares e indicações da Cia. Cria do Beco apontam para as possíveis mudanças de lugar, a urgência de movimentos no campo das artes para efetivas desarticulações da hegemonia, tal como uma analogia às provocações artísticas estabelecidas no espetáculo Nem Todo Filho Vinga.
Edição e revisão do texto: Daniele Avila Small
[1] LOTIERZO, Tatiana H. P. e SCHWARCZ, Lilia K. M. Raça, gênero e projeto branqueador: “A redenção de Cam”, de Modesto Brocos. 2013. p. 02. Acesso em: 12 jul. 2020.
[2] Realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2011.
[3] Nomenclatura pejorativa utilizada pelo IBGE para moradias faveladas.
Nem Todo Filho Vinga – Texto de Pedro Emanuel. Direção de Renata Tavares. Com Anderson Oli, Camila Moura, Edson Martins, Jefferson Melo, Natália Brambila, Ramires Rodrigues, Yuri Domingues e Zaratustra. Museu da Maré (Av. Guilherme Maxwell, 26). Quinta, sexta e sábado, às 20h. Entrada gratuita.
Danilo Maia e Gabriel Flores em Latitudes dos Cavalos (Foto: Clarissa Ribeiro)
Autor de Latitudes dos Cavalos, peça em cartaz até essa quarta-feira no Teatro Glaucio Gill, Gabriel Flores se mostra mais interessado na estruturação da cena do que propriamente no conteúdo do texto. Por meio de seus personagens, procura prestar uma homenagem ao teatro e, em particular, ao ator.
Há, desde o começo, uma valorização do desenho, da forma, de um externo que não se traduz como embalagem vazia, através de uma sucessão de movimentos físicos frenéticos, abruptos e breves, realizados em ritmo bastante acelerado. Apesar do elo entre o enredo, centrado na relação entre dois desconhecidos, e o dia a dia, essa proposta de linguagem afasta a montagem da representação do cotidiano.
Além disso, o modo como a situação-base é exposta não tende a gerar no público uma identificação imediata com uma realidade familiar. Existem elementos pouco críveis, uma falha talvez intencional de Gabriel Flores como autor com o intuito de produzir um nível de estranhamento no espectador, que fica impossibilitado de estabelecer uma apreciação tão-somente passiva com o que acontece no palco. É improvável que dois homens se conheçam num cinema pornô e iniciem uma conexão calcada na troca de informações acerca de suas experiências conjugais sem que o apelo sexual do ambiente norteie essa interação.
Seja como for, o objetivo principal do autor não é falar sobre as agruras emocionais de ambos – nas tentativas de retomar o vínculo amoroso ou de encerrá-lo –, mas destacar os papéis que exercem num jogo teatral, algo evidenciado quando um deles “encarna” a esposa do outro e, mais adiante, quando se firma uma dinâmica ator/diretor entre eles. A construção do ato teatral se impõe no texto – e no espetáculo – a partir do momento em que passam a ensaiar, evocando as mulheres mencionadas, e, especificamente, no instante em que um dos atores comenta sobre uma tonalidade da iluminação da cena.
O tributo ao teatro se manifesta ainda na concepção de uma cena quase que inteiramente destituída de recursos cenográficos (apenas quatro cadeiras remetendo ao espaço do cinema). Essa ausência de adereços sinaliza um desejo de apostar no texto e nos atores. Danilo Maia imprime notável colorido à interpretação, tanto no que se refere à variedade de intenções ao longo do texto quanto à integração entre o manejo da palavra e o desenho corporal (cabe elogiar a supervisão de movimento a cargo de Soraya Bastos) em atuação que não cai na armadilha do preciosismo estéril. Gabriel Flores trabalha em voltagem mais discreta, cumprindo, com disciplinado empenho, os desafios lançados em sua dramaturgia.
Em Latitudes dos Cavalos, Gabriel Flores demonstra um prazer pela arquitetura do texto e pelo jogo entre os personagens. Não escapa, contudo, do risco de esgotamento de sua proposta. Os personagens funcionam como representantes de funções artísticas no processo teatral, mas também poderiam existir de maneira mais plena como indivíduos autônomos, portadores de subjetividades. Esse preenchimento não inviabilizaria o apego à estrutura nos planos da dramaturgia e da encenação. A percepção panorâmica do espetáculo é dificultada pelo acúmulo de tarefas assumido por Gabriel Flores (autor, diretor e, agora, ator, substituindo Willean Reis). Restrições à parte, o resultado se mantém instigante, qualidade realçada numa insinuada articulação entre vida e teatro, instâncias fincadas no presente absoluto, sem chance de recuperação do passado.
Latitudes dos Cavalos – Texto e direção de Gabriel Flores. Com Danilo Maia e Gabriel Flores. Teatro Glaucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/n). Quarta, às 20h. Ingressos: R$ 40,00 e R$ 20,00 (meia-entrada).
Blackyva (sentada), Jessica Barbosa, Muato, Izak Dahora, Hugo Germano e Diego Ávila (com a câmera): interface entre teatro e audiovisual (Foto: Ligia Jardim)
Viviane da Soledade
Saudade é uma palavra difundida pelo mundo como única no vocabulário brasileiro para exprimir o sentimento de falta, ausência, perda e distância daqueles ou daquilo que amamos. Chega de Saudade é uma canção de Vinícius de Moraes e Tom Jobim lançada na década de 1950 na voz de Elizeth Cardoso, uma das maiores intérpretes do Brasil. Mas a música se torna referência da Bossa Nova somente na voz de João Gilberto, ícone do movimento musical que forjou o imaginário cultural sobre certa noção de brasilidade projetada para o mundo. Uma versão possível para a escolha do nome que cunhou o estilo musical tem a ver com a citação à música São Coisas Nossas, de Noel Rosa, de 1931, que relaciona o samba e “outras bossas” à noção de pertencimento brasileiro. A palavra “bossa” era uma gíria carioca para nomear um jeito, maneira ou modo original e específico de ser brasileiro. A Bossa Nova foi criada como um movimento cultural de superação desse jeito brasileiro popular e acabou por fundamentar uma crítica ao contexto popular ao qual o samba estava inserido como “coisa de preto”, “marginal” e “favelado”.
O espetáculo Chega de Saudade!, d’Aquela Companhia, estreou em São Paulo em 2022 e agora faz uma nova temporada no Teatro Prudential, no Rio de Janeiro, cidade de origem do grupo e da Bossa Nova. Esse é um espetáculo-manifesto que tem como principal premissa dar um basta na apropriação cultural afro-diaspórica para constituir um certo tipo de brasilidade branca à qual insistem em nos definir enquanto brasileiros. Na dramaturgia de Pedro Kosovski, com colaboração e interlocução de Rodrigo de Arruda, a Bossa Nova é o principal mote para estruturar essa crítica social. A dramaturgia dá subsídios fundamentais para a direção de Marco André Nunes apresentar inúmeros procedimentos cênicos que materializem um gradativo basta à melancolia dos tempos remotos de crença na democracia racial que foram tão prejudiciais à luta antirracista. Muitos processos culturais em nome da democracia racial, inclusive, foram ainda mais racistas. Algo digno de atenção em tempos em que o fascismo toma grandiosas proporções no mundo e no Brasil com o recente governo de Jair Bolsonaro. Para estabelecerem uma conexão desse tempo passado com a atual ideologia fascista os personagens fazem menção aos filhos do ex-presidente e se apresentam como o segundo comando da Bossa Nova talvez, até mesmo numa ironia ao álbum musical João Gilberto – O Mito, de 1988, como possível analogia à forma como eleitores de Jair Bolsonaro o chamam. Tudo isso para fazer o espectador entender a conexão possível entre arte e política, além da necessidade de desconfiar dos “mitos”.
Após a abolição da escravatura, a elite branca brasileira criou um elaborado mecanismo racista que ora evidenciava a distinção de raça e ora apagava essa mesma distinção para dar conta do seu projeto civilizatório branco, previsto para o país. Diante de um Brasil que se pretendeu purista, a operação de apagamento histórico e assimilação cultural se tornou uma estratégia para o convencimento da pretensa democracia racial. A época da criação da Bossa Nova se propagava o mito da democracia racial para edificar o projeto modernista de país desenvolvido. Durante anos, grupos de artistas, como o Teatro Experimental do Negro, assumiram a causa prioritária de desconstrução dessa premissa que só enfraquecia as lutas raciais por políticas públicas de reparação histórica. Se “a pretendida democracia racial realmente é uma ficção ideológica”[1] era preciso fabular outras ideologias a favor do movimento negro. Para isso, a questão da visibilidade para os negros e negras é de extrema importância, pois quem não é visto não existe. Saber-se pessoa negra é carregar consigo a responsabilidade de dar a ver as desigualdades sociais para garantir a existência. Há um compromisso ético no campo da visibilidade de não reprodução de determinadas violências para o rompimento do fluxo de exclusão. Para mim o espetáculo Chega de Saudade! é fundamentalmente sobre isso.
A crítica à Bossa Nova estruturada cenicamente neste trabalho, é, a meu ver, principalmente sobre o processo de embranquecimento ao qual fomos submetidos e à apropriação cultural negra como um procedimento para a efetivação desse projeto civilizatório eurocentrado. Nas cenas de Chega de Saudade!, as críticas aos mecanismos racistas consolidados no Brasil são suprimidas nesse movimento musical como mote de inúmeros procedimentos colonizadores nas Artes e na sociedade de maneira geral. A proposta d’Aquela Companhia é radicalizada na composição inédita para o grupo de um elenco exclusivamente negro convidado para contar uma história essencialmente branca do ponto de vista negro. Por meio dos corpos negros dos artistas em cena, que representam personagem historicamente brancos, se evidencia a violenta operação de apagamento dos negros na trajetória da Bossa Nova.
Jessica Barbosa, Blackyva, Muato, Hugo Germano e Izak Dahora (na tela) no espetáculo d’Aquela Companhia (Foto: Ligia Jardim)
O espetáculo se faz crítico ao racismo não exclusivamente por sua dramaturgia, mas pela proposta cênica que vai se estruturando a partir das corporeidades negras e da evocação de suas culturas. A partir disso se apresenta uma fabulação de tudo o que estava por trás do movimento cultural Bossa Nova. A potencialidade da cena está justamente na oscilação entre significado e significante estabelecida pela dramaturgia no jogo com a corporeidade dos artistas. O poder imaginativo que o trabalho tem de confrontar a ficção com a realidade estabelece o seu processo de reparação histórica. Desde 2005 que Aquela Companhia tem perseguido um trabalho relevante de conjugar a dramaturgia como crítica social fabulativa e com potencialidade cênica. Nesse espetáculo é mais evidente a contribuição coletiva para a composição da dramaturgia, uma vez que ambos os componentes da companhia são brancos e as críticas raciais parecem ser construídas a partir das contribuições dos artistas que estão em cena. Por se tratar de um trabalho atravessado pela noção de memória coletiva, fabulação e imaginário social que tem como maior mobilizador a crítica social, os artistas reunidos nos apresentam uma revisão do que o Brasil produziu como “coisa nossa” para a Bossa Nova.
A música como um fio condutor dramatúrgico é um traço marcante de Aquela Companhia. No entanto, Chega de Saudade! é o primeiro espetáculo do grupo que vai abordar a música como tema central da sua dramaturgia. Porém, esse espetáculo não é um musical, apesar de abordar a Bossa Nova, ter uma banda em cena e lançar mão da música como operação dramatúrgica. A primeira cena apresentada ao público é uma música com sonoridades africanas cantada pelo artista Muato anunciando e enunciando a “bossa” negra. Então, o público já é imediatamente inserido no contexto musical negro a partir de referências artísticas negras fundamentais para a compreensão histórica desse país – uma compreensão mais ampla, que considere a influência africana, como os seus batuques e tambores, para o samba, o rap e o funk.
A atriz Polly Marinho se apresenta como “Garota de Copacabana”, duplo deslocamento semântico, uma vez que a garota símbolo da Bossa Nova é de Ipanema e loira. Ela será também a narradora, comentarista, locutora, diretora do filme sobre a Bossa Nova que será gravado naquele instante – que nada mais é do que o espetáculo de teatro a ser apresentado. Polly é a voz de fora da cena estando dentro de cena, é a nota de rodapé da dramaturgia de Pedro Kosovski e Rodrigo de Arruda, é a sintetização de todos os pontos de vista negros desse coletivo para a confrontação da História hegemônica. É por meio dessa personagem-narradora que a crítica social se enuncia da maneira mais direta. Para que o público não crie falsas expectativas, a personagem já informa o posicionamento estético e político do espetáculo em que Tom Jobim e Vinícius de Moraes, criadores da Bossa Nova, serão coadjuvantes, quando na verdade eles sequer aparecem em cena e são reduzidos a ligeiras citações textuais quase como vingança.
A maior parte do espetáculo se passa em Copacabana, na sala do apartamento de Nara Leão, musa da Bossa Nova, que é representada pela projeção de uma janela típica da Zona Sul da cidade. Essa sala é o reduto da Bossa Nova onde se desenrolam as cenas que simbolizam os moldes de vida da burguesia, criadora do estilo musical em voga. Tais códigos sociais para além do cenário são efetivados também pelos figurinos de Fernanda Garcia. Entende-se a Bossa Nova como um movimento anti-popular, em contrapartida à noção de povo e sua arte criada nas ruas pela classe trabalhadora. A Bossa Nova surge no âmbito doméstico, na sala da classe média alta, da Zona Sul do Rio de Janeiro, por pessoas que gozavam da sua branquitude ao mesmo tempo que anunciavam admiração aos negros dos quais queriam se distinguir mais e mais. Segundo a crítica apresentada pelo grupo, trata-se de um movimento cultural que teve a pretensão de criar algo novo a partir dos referenciais populares, mas para superá-los. Buscava-se algo original, “autêntico”, erudito para se diferenciar como produção artística de maior qualidade, usando como base a produção cultural negra sem nenhuma devida citação. Diziam-se a origem do samba como se não houvesse precedente. Essa noção de origem é o cerne do racismo estrutural existente no Brasil, pois nunca é atribuída aos povos colonizados e seus descendentes.
Nessa sala estão Nara Leão, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Sylvia Telles, uma das maiores intérpretes da Bossa Nova, sobretudo das músicas criadas por Tom Jobim e Vinícius de Moraes para Orfeu da Conceição, espetáculo montado pelo Teatro Experimental do Negro em 1954 com direção de Abdias do Nascimento. Esse espetáculo foi emblemático por ter sido a segunda vez que o grupo formado por um elenco de atores e atrizes negros ocupava os palcos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o mais famoso da época. Agora, 69 anos depois do TEN, o espetáculo Chega de Saudade! coloca em cena atores e atrizes negros interpretando personagens historicamente brancos, algo impensável para a época. Na sala-símbolo da elite branca, os personagens cantam a letra “Você é um predador terrível” que vai tomando contornos de um funk apoteótico. Os personagens Nara Leão, interpretado por Blackyva, e Roberto Menescal, interpretado por Hugo Germano, debocham das sonoridades da Bossa Nova como algo pretensamente original.
Hugo Germano, Jessica Barbosa, Blackyva e Muato: o movimento da Bossa Nova em abordagem contrária ao saudosismo (Foto: Ligia Jardim)
O cenário de Ciro Shu e Marco André Nunes projeta ao fundo uma janela que sobrepõe o banheiro e o camarim que só aparecem parcialmente pela projeção da gravação ao vivo das cenas. Além da janela central, projetada, há outra janela como outra perspectiva e angulação diferente do que se vê de um apartamento da classe média alta carioca. A sala-símbolo da branquitude é o lugar escolhido para que o público veja a Bossa Nova – tal como se conhece no imaginário social coletivo, ser gradativamente tensionada, a começar pela presença exclusiva de corpos negros em cena, mas também pelas ácidas críticas ao modo de vida burguês, ao mesmo tempo em que se apresenta uma outra Bossa Nova possível. Assim como o jogo cenográfico é estabelecido por sobreposições, a cena vai apresentando o que está por trás da Bossa Nova tal como se conhece. Dar-se a ver, ouvir e sentir o que poderia ser uma Bossa Nova sem a ocultação dos remelexos e rebolados que têm o quadril como eixo fundamental do corpo e da sensualidade tal como no samba e em toda a contribuição artística afrodiaspórica, que foram apropriadas pelos movimentos culturais das elites brancas desse país sem nenhum crédito.
A projeção triplica as imagens da cena criando um embaçamento da visão do espectador, quase como quem quisesse sugerir à Bossa Nova uma certa alienação sensível da população sobre a representatividade da produção artística afro-diaspórica. Se, em alguma medida, a Bossa Nova dialoga com o samba brasileiro e o jazz norte-americano, ambos movimentos musicais criados por pessoas negras, há um conflito que desemboca na cena em que o cantor americano Louis Armstrong é citado. Então, a sala de um enorme apartamento carioca com “14 metros” de extensão, situada no “berço” da Bossa Nova, torna-se um grande ringue de disputa cultural, mas também de reparação histórica.
Se a Bossa Nova se torna famosa mundialmente pelo seu ritmo, mas também pela capacidade imagética que tem sobre o Brasil para além dele, destacando constantemente o amor, Chega de Saudade! vai abordar a dimensão do amor negro que a Bossa Nova ocultou, segundo a narradora. O espetáculo volta para os espectadores uma importante indagação: de qual Brasil a Bossa Nova estava falando? Quem estava sendo devidamente amado no Brasil na década de 1950 e 1960 em que a população negra se encontrava em profundo abandono governamental, recém-libertos de um regime escravocrata, condicionados ao desemprego, às moradias precarizadas, num país que se pretendia branco e que, por meio de cotas de incentivo aos imigrantes europeus para morar no país se industrializou, se desenvolveu e se embranqueceu. Enquanto a população negra escravizada e seus descendentes foram violentamente negligenciados e abandonados, mas ainda assim sobreviveram e construíram boa parte desse país.
Ao falar de amor branco, matéria-prima da Bossa Nova, por meio do romance de Sylvia Telles, interpretada por Jessica Barbosa, e João Gilberto, interpretado por Izak Dahora, ou da tensão sexual existente entre Nara Leão, interpretada por Blackyva, e Ronaldo Bôscoli, interpretado por Felipe Oládélè, o espetáculo faz o contraponto com a noção de amor negro. O amor para os negros é uma grande pauta de discussão para os movimentos sociais negros desde a Bossa Nova, que foram se alastrando para as futuras gerações – a exemplo da campanha “Reaja à violência racial: beije a sua preta em praça pública”, de 1991, promovida pelo jornal do Movimento Negro Unificado, uma das mais importantes de nossa história, que se tornou um símbolo nacionalmente conhecido pelos grupos antirracistas, conscientizando sobre a importância da afetividade aos negros contra uma cultura racista. Essa campanha nos fez perguntar sobre o que é o afeto negro, tendo em vista que à época, homens e mulheres negras não podiam manifestar o seu afeto publicamente, sob o risco, inclusive, de acarretarem grandes repressões. Na mesma medida, a batucada, o samba e a capoeira foram elementos de censura pública e policial. De que amor a Bossa Nova estava falando quando mais da metade da população não tinha direito à humanidade, logo ao amor?
Polly Marinho: voz de fora/dentro da cena (Foto: Ligia Jardim)
O espetáculo Chega de Saudade! apresenta o avesso da Bossa Nova, o que ela oculta ao longo da História, o que não foi mostrado, mas deturpado, ou mesmo escondido. Os personagens dizem: “Tom (Jobim) rouba tudo”. Enquanto o ator Izak Dahora faz um comentário-denúncia sobre a gravidade da apropriação cultural efetivada pelo seu personagem João Gilberto que admite: “A Bossa Nova na verdade é samba, e só isso”. Está aí o cerne da questão colocada ao longo do espetáculo: o quanto a produção cultural reproduziu o modo colonial hegemônico que tem profundas raízes na nossa sociedade ainda hoje. Na boca do personagem João Gilberto, enunciado por um corpo negro, como se fosse “homem branco”, o ator faz necessariamente de toda a sua fala uma crítica à branquitude. Aquele que se pretendeu “autêntico”, fazendo samba e utilizando a síncope – contratempo na música que se prolonga até o tempo forte, herança africana. A direção musical de Felipe Storino corrobora com a narrativa, a exemplo da música Bim Bom, de João Gilberto, cantada pelos artistas até evidenciar toda a crítica do espetáculo num inteligente jogo com a letra. Ao dizerem: “É só isso meu baião, e não tem mais nada não” de diferentes formas, com tempos distintos e pausas estratégicas, fazem aparecer a crítica à apropriação de culturas negras, mas ridicularizam o minimalista da Bossa Nova, até acelerarem a cadência da música para surgir um grande samba festivo. Procedimento semelhante realizado com Desafinado, também de João Gilberto, em que o ator Muato manipula a palavra “privilegiado” da letra da música, evidenciado uma discussão sobre privilégios tão atual no campo das disputas sociais. Com isso, é dado outro significado à letra de João Gilberto como operação estética quase documental do discurso do espetáculo. Então, a Bossa Nova não pode ter nada de “natural” se em nada representa a maioria da população brasileira da época. Na cena do sarau em que a personagem Nara Leão acusa a Bossa Nova de farsa, devido a desconexão que há entre esse movimento e a vida cotidiana das pessoas, a personagem se nega a cantar a música Lobo Bobo, de Carlos Lyra. A personagem não canta Bossa Nova, mas canta a realidade da favela como uma convocação à plateia para refletir a perpetuação da Bossa Nova ainda hoje. Na tentativa de exposição da mentalidade racista existente no movimento musical Bossa Nova, a narradora critica a letra de Samba da Benção, de Vinícius de Moraes, e seu modo como compreender a mulher, além da propagação da noção de democracia racial agregada à ideia de miscigenação cordial e gloriosa.
Ao final do espetáculo, surge a homenagem à Alaíde Costa, “única negra da Bossa Nova que ficou para trás”, assim como Johnny Alf. A reverência à cantora é uma das cenas mais bonitas do espetáculo, numa apologia ao amor negro entre dois personagens evidentemente apaixonados quando cantam o samba-canção Me deixa em paz, de1952, dos compositores Monsueto e Airton Amorim. Ouvir a letra “Se você não me queria não deveria me procurar. Não deveria me iludir, nem deixar eu me apaixonar. (…) Você arruinou a minha vida. Me deixa em paz” depois de assistir a quase todo o espetáculo gera inevitável a correlação entre a cena e a demanda urgente de amor preto e à necessidade de pessoas que se entendam como não negras nesse país se engajarem na luta antirracista. Essa homenagem é movida pelo amor e admiração aos negros. Essa é uma resposta ao racismo que perpetua ainda hoje e corrobora com a morte da população negra, pois é sobre isso que se trata. Para mim, o espetáculo é uma operação teatral de desilusão da população, justamente em um “espaço” criado para a ficção – que é o teatro. Mas a fabulação imaginativa é um direito das pessoas negras ainda não garantido e muito usufruído pelas pessoas brancas para forjar a inferioridade de uns em detrimento de outros. A ficção sobre dados históricos é uma possibilidade de fabular mundos possíveis para a população negra, ao mesmo tempo em que permite a retificação do passado. A história contata de uma outra maneira, sobretudo de pontos de vistas antirracistas, é a possibilidade de extinguimos a monocultura que persiste nesse país. Nesse espetáculo, a crítica radical a um movimento cultural ainda muito querido, que forjou muitos imaginários, que se constituiu como orgulho nacional, requer coragem. Mas não deve ser compreendido, a meu ver, como o risco de cancelamento, e sim como uma oportunidade de nos compreendermos enquanto sociedade e não permitir mais que determinadas operações racistas em nome da arte aconteçam novamente. Espero que a plateia saia do teatro ávida por assistir a outros espetáculos em que os corpos negros estejam na centralidade das suas questões possibilitando assim a sua aparição como sujeitos da história.
[1] Frase do antropólogo Thales Coutinho referenciado por Abdias Nascimento, fundador do TEN, para respaldar uma das suas maiores militâncias durante todo o seu ativismo que era a desarticulação da crença na igualdade racial. COUTINHO apud NASCIMENTO, 2016. p. 53.
Chega de Saudade! – Texto de Pedro Kosovski. Direção de Marco André Nunes. Com Blackyva, Felipe Oládélè, Hugo Germano, Izak Dahora, Jessica Barbosa, Luiza Loroza, Muato e Polly Marinho. Teatro Prudential (R. do Russel, 804). De sexta a domingo, às 20h. Ingressos: R$ 60,00 e R$ 30,00 (meia-entrada).
Maurício Lima em Arqueologias do Futuro (Foto: Dayana Jacqueline)
“Você me vê?”, pergunta Maurício Lima ao público de Arqueologias do Futuro, disposto próximo à cena nas apresentações realizadas durante o Festival de Curitiba. De início, o espectador enxerga flashes do corpo nu do ator, que, no breu, manipula a luz em dinâmica acende/apaga. Ele fala sobre a interioridade, priorizando uma descrição prática (e enumeração dos órgãos localizados dentro do corpo humano) em detrimento de uma abordagem existencial/filosófica (a alma).
Apesar do ator não enveredar por uma perspectiva de interioridade física vinculada à fé numa essência espiritual, há, nessa introdução, certa abertura para a abstração. A imagem é pouco vista pelo espectador, guiado pela voz do ator numa proposta de relação sensorial. A partir de dado momento, tudo fica mais concreto. Termina o lusco/fusco da luz e ao público é permitido enxergar totalmente o ator, que contextualiza a indagação inicial do trabalho: Maurício Lima é um dos muitos corpos negros invisibilizados na sociedade – ou, ao contrário, destacados, mas como marginais, como alvos em violentas ações de exclusão. Corpos que dificilmente se tornam exceção em meio a uma estrutura de funcionamento aniquiladora.
A superfície onde imagens de comunidade urbana são exibidas traz recortes que sugerem os traços sinalizados na rua para demarcar o contorno de pessoas mortas – geralmente, assassinadas – estendidas na rua. Não se trata, portanto, de uma tela plana, cristalina. As imagens nela estampadas surgem “falhadas” e escapam, em alguma medida, ao olhar do espectador. Nesse sentido, Arqueologias do Futuro é um solo que intencionalmente continua não se revelando de modo integral diante do público.
Diferentemente do começo, Maurício Lima, que assina dramaturgia e direção com Fabiano de Freitas, não recorre tanto à palavra. Ela permanece presente, mas o que impera é o corpo que dança pela geografia da comunidade, transitando pelo espaço cênico por meio de movimentos sinuosos, próprios de quem domina os códigos necessários à sobrevivência num campo minado. A comunidade, por outro lado, é a região do corpo liberto, talvez utópico, que se expressa sem amarras e extravasa de maneira catártica.
Ao final, o ator retorna ao corpo invisível, mas de forma lúdica, através da figura do homem-bola que, com o rosto escondido por um conjunto de grandes bolas coloridas, caminha pelas ruas. É o que faz Maurício Lima nesse trabalho, que, nascido durante a pandemia e mostrado remotamente, rompe as delimitações do teatro (também enquanto manifestação artística com características específicas) e se expande para o mundo de fora.
Janaína Leite e Amália Fontes Leite em Stabat Mater (Foto: Susan Sena)
Uma das tendências mais evidentes da cena contemporânea é a utilização de experiências particulares – com frequência, de natureza trágica – como matéria-prima para projetos artísticos. Com cada vez mais assiduidade, atores e atrizes vêm externando suas vivências íntimas diante de espectadores desconhecidos. Apesar de elaborados cenicamente, os conteúdos pessoais são expostos de maneira clara e não fica dúvida de que pertencem àquele que está trazendo-os à tona.
Num extremo dessa vertente, a Cia. Hiato apresentou um conjunto de cenas intimistas, reunidas sob o nome de Ficção, nas quais o público ocasionalmente se deparava, no palco, com o parente a quem o intérprete se referia em seu depoimento. É também o que se dá em Stabat Mater, trabalho que integra a programação da Mostra Lucia Camargo no Festival de Curitiba, marcado pela interação entre a atriz Janaína Leite e a própria mãe, Amália Fontes Leite.
De acordo com Janaína, um dos principais nortes desse trabalho foi suprir uma lacuna – a conexão com sua mãe – constatada após a realização de uma encenação centrada em seu pai (Conversas com meu Pai). À questionada ausência da mãe no espetáculo anterior, Janaína responde por meio dessa montagem, cujo título, Stabat Mater, significa “a mãe estava lá”.
Responsável pela dramaturgia, a atriz/performer entrelaça seu percurso emocional com a história da Virgem Maria. O cruzamento entre o sagrado e o profano é realçado a partir do instante em que Janaína revela um acontecimento traumático, ocorrido há mais de 20 anos: um estupro que sofreu no caminho para a escola num dia em que, excepcionalmente, não estava acompanhada da mãe.
Ao conceber esse trabalho ao lado de Amália, Janaína fez uma proposta inusitada e, no mínimo, bastante desconfortável: convidou a mãe a dirigi-la numa cena de sexo explícita com um ator pornô. Será que Stabat Mater é uma vingança da filha em relação à mãe, que não pode protegê-la de uma enorme violência? O contato sexual, ensaiado sob a condução de Amália, é projetado, na tela, ao final do espetáculo.
No palco, Janaína desconstrói a representação e, ao mesmo tempo, adere ao mascaramento (literal, em alguns momentos). Coloca-se, frente à plateia, “sem personagem”, no formato de palestra informal, explanando sobre a gênese do trabalho, contextualizando-o dentro de sua investigação artística. Essa atuação transparente se manifesta no tom coloquial e na voz destituída do artificialismo da empostação. Mas cabe assinalar que, na noite de estreia da encenação no Festival de Curitiba, parte considerável do texto dito pela atriz não era escutado pelo público. Tal fato aparentemente não se devia a uma escolha artística, decorrente de um eventual confronto do espectador com a inevitabilidade da perda, com a falta de acesso total ao que é falado e mostrado, e sim a uma limitação técnica.
Em contrapartida a esse registro “invisível”, Janaína se posiciona como representação de filha, assim como Amália simboliza a mãe e Lucas Asseituno, o profissional do sexo (os três vestem camisas que estampam essas funções). Encontram-se, nesse sentido, interpretando papéis – talvez porque isto invariavelmente aconteça quando se está no palco diante de uma plateia –, por mais que Amália e Janaína sejam mãe e filha na esfera da realidade. No que diz respeito ao terceiro elemento, a instância ficcional é mais explícita. Os atores pornôs surgem na tela por meio da exibição de trechos das entrevistas fornecidas à Janaína. Eles têm identidade, ao passo que o personagem feito por Lucas no teatro não possui voz, nem rosto.
Atriz que fez parte do Grupo XIX e hoje desenvolve pesquisa no campo do teatro documental, Janaína Leite demonstra plena adesão à linha autobiográfica flagrante no panorama da cena atual, destacando, em Stabat Mater, uma conjugação entre planos (supostamente?) opostos, como realidade/representação e maternidade/pornografia.
Cena de Hamlet, espetáculo que abriu a atual edição do Festival de Curitiba (Foto: Teatro La Plaza)
Em determinado momento da versão da companhia peruana Teatro La Plaza para Hamlet, perguntam ao ator Jaime Cruz se está em cena como Jaime ou como Hamlet e ele diz: como “Jaimlet”. A resposta sintetiza, de alguma forma, a proposta artística do espetáculo, escolhido para abrir o 31º Festival de Teatro de Curitiba, no palco do Guairão. Sob a condução da diretora Chela De Ferrari, responsável pela dramaturgia escorada na célebre peça de William Shakespeare, os atores, portadores de Síndrome de Down, se afastam de interpretações consagradas, tanto no que se refere ao texto original quanto ao modo de representar os personagens. Realizam uma apropriação, na qual, em certo grau, aproximam as questões que perpassam a obra da realidade que os atravessa.
O deslocamento no mundo é uma possível conexão entre o personagem Hamlet e os atores dessa montagem, ainda que não se deva perder de vista as diferenças. O descompasso de Hamlet com a maioria que o rodeia decorre de uma reverberação interna dos acontecimentos relacionados ao assassinato de seu pai. Já a distância imposta, com frequência. às pessoas com Síndrome de Down, habitualmente postas à margem da sociedade, surge do preconceito social diante de uma dada configuração física – portanto, de uma percepção restrita à aparência corporal, ao externo. Enquanto o protagonista de Shakespeare, a partir do instante em que é confrontado com a verdade revelada pelo fantasma do pai, acentua a falta de pertencimento ao contexto que o cerca, o elenco do Teatro La Plaza dá vazão a um espetáculo que reivindica uma justa integração.
Num plano geral, a montagem demonstra uma perspectiva crítica em relação a padrões estéticos pré-estabelecidos. Problematiza a limitação que normalmente confina os artistas, muitas vezes avaliados de acordo com o phisique du role. Em esfera mais localizada, esse trabalho nasceu da especificidade corporal comum aos atores, que se colocam como bloco e também individualmente. Todos têm Síndrome de Down e todos podem ser Hamlet. Não por acaso, o Hamlet que desponta no palco não é um só. O protagonista é partilhado pelo elenco, ao invés de feito por um único intérprete. Os atores, porém, não aparecem massificados, como conjunto indistinto, até porque uma mesma condição física é experenciada de maneiras diversas.
Fundado nas vivências concretas e subjetivas dos artistas, esse trabalho frisa sua autenticidade e evidencia uma natureza intransferível, na medida em que não há como outros atores simplesmente reproduzirem as marcações. Como constata Álvaro Toledo, que faz parte do elenco, após tentar imitar a movimentação física de Laurence Olivier no Hamlet de 1948, “para mim, copiar não é atuar”. Chela De Derrari não investe em caminhos mais seguros na abordagem da peça e estimula o elenco a se aproximar do texto numa jornada, nesse sentido, mais verdadeira. A verdade se constitui, inclusive, como a luta do personagem-título, que se vale do teatro como instrumento de denúncia. Afinal, é por meio de uma representação que Hamlet expõe aos demais as circunstâncias do assassinato de seu pai.
Nesse Hamlet contemporâneo e editado, que narra e encena a peça de Shakespeare, os atores (além dos citados Álvaro e Jaime, Cristina León Barandiarán, Diana Gutierrez, Lucas Demarchi, Manuel García, Octavio Bezerra e Ximena Rodríguez) usam roupas do dia a dia, sem qualquer ambição de fidelidade histórica. O olhar lançado sobre o texto é dessacralizado e o espetáculo busca a potência do inacabado, do esboço, do rascunho. Há constantes menções ao processo criativo, à fase de levantamento do trabalho. Não significa que a montagem não possua estrutura cênica, comprovada na própria presença dos atores e na interação com o multimídia que rende bons momentos, a exemplo da solução encontrada para a morte de Ofélia.
Nessa encenação de Hamlet, apresentada anteriormente no festival Mirada e no Sesc Consolação, o corpo é um elemento fundamental. Cabe destacar que o espetáculo começa com a imagem de um nascimento e termina com os atores verbalizando, apesar de brevemente, questões primordiais, em especial sobre a morte.
Ao longo dos anos, muitas companhias deixaram as cidades onde nasceram e migraram para o eixo Rio-São Paulo na busca por melhores condições de sobrevivência e na esperança de alcançar maior repercussão com seus espetáculos. Essa mudança geográfica, talvez norteada por uma dose de ilusão, vem gerando evidente esvaziamento cultural das cidades – e Londrina, polo de teatro e dança, é apenas um entre tantos exemplos. Mas não cabe depreciar os coletivos que decidem por essa transição, até porque envolve riscos consideráveis. E há companhias que não se afastaram de seus locais de origem. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é possivelmente o mais conhecido em meio a diversos outros que não aderiram à vinda para o Sudeste.
Com menos frequência que o desejável, algumas dessas companhias vêm desembarcando no Rio de Janeiro e permitindo ao espectador entrar em contato com suas propostas de linguagem, enriquecendo, desse modo, a temporada. Do Nordeste, particularmente, o público carioca teve a oportunidade de assistir, nas últimas décadas, a encenações de grupos como o Piollin, o Ser Tão Teatro (ambos de João Pessoa), o Magiluth (do Recife), o Bagaceira (de Fortaleza), o Olodum e a Cia. Baiana de Patifaria (os dois de Salvador). Agora, a plateia do Rio confere Ubu – O que é Bom tem que Continuar!, espetáculo concebido a partir da parceria entre três grupos de Natal: o renomado Clowns de Shakespeare, que celebra 30 anos de trajetória, o Facetas e o Asavessa.
Responsável pela dramaturgia, Fernando Yamamoto apresenta um desdobramento – com acento notadamente tropical (realçado pelo visual kitsch) – da peça do simbolista Alfred Jarry. Aproxima do espectador brasileiro os personagens ambientados, no texto original, na Polônia, referência, em todo caso, distante de qualquer contorno realista. Seja como for, Yamamoto não investe numa aclimatação direta ao contexto nacional. Não envereda por esse caminho fácil, que renderia citações tão numerosas quanto previsíveis a figuras da vida política, mas estimula o espectador a traçar articulações com o noticiário do país. As eventuais menções despontam como brincadeiras em relação a nomes contrastantes, de autoridades acadêmicas e personalidades midiáticas da contemporaneidade. Mas Yamamoto, que também assina a direção da montagem, não evita que a dramaturgia resulte algo reiterativa ao sublinhar constantemente os malefícios do casal Ubu em sua sede desmedida pelo poder, tal qual o casal Macbeth – só que em variação cômica. É como se o texto “andasse” mais em círculos do que em linha reta.
Em instantes isolados, o espetáculo estabelece conexão com a plateia pela via da teatralidade assumida e do tom de permanente deboche e escracho, ingredientes sintonizados com o espírito da obra de Jarry. Os momentos de graça simples e popular, que requisitam interação do público (sem expor individualmente os espectadores), são os mais eficientes, a julgar por aquele em que a plateia é convocada a fazer movimentos de louvação à campanha de Pai Ubu, registradas para exibição como programa eleitoreiro. Vale destacar mais uma cena em que o grupo atinge o pretendido efeito de humor: quando Ubu, consagrado como Rei, condena, de maneira sucessiva e arbitrária, os integrantes do povo, que verbalizam suas reivindicações.
Em outras passagens, a encenação persegue a comicidade sem realizá-la plenamente, limitação que deve ser creditada, em parte, à irregularidade do elenco, que aposta na vertente da representação expansiva e caricata sem, porém, demonstrar amplo domínio desse código. Ainda assim, Rodrigo Bico e Paula Queiroz, encarregados dos personagens centrais, revelam afinidade em cena. É preciso dizer que na noite do último sábado, por causa das condições meteorológicas, o espetáculo não pode ser apresentado ao ar livre, de acordo com o planejado, e se viu obrigado a trocar o Pátio das Tamarineiras por um local fechado dentro do Sesc Tijuca. A alteração não favoreceu a montagem, transferida para espaço menos caloroso. A nova configuração, contudo, não inviabilizou a comunicação com a plateia, disposta em roda e contagiada, em certo grau, pela musicalidade (dramaturgia musical a cargo de Marco França e Ernani Maletta, com músicas do primeiro e letras de Yamamoto).
Ubu – O que é Bom tem que Continuar!, mesmo sem concretizar inteiramente a sua ambição como comédia, valoriza uma teatralidade composta por elementos básicos, como tecidos estampados, característica que tende a suscitar simpatia. E proporciona ao espectador carioca se deparar com uma expressiva amostra da cena de Natal.
Ubu – O que é Bom tem que Continuar! – Direção e dramaturgia de Fernando Yamamoto. Com Caju Dantas, Deborah Custódio, Diogo Spinelli, Paula Queiroz e Rodrigo Bico. Pátio das Tamarineiras do Sesc Tijuca. (R. Barão de Mesquita, 539). De quinta a sábado às 19h, domingo às 18h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada), R$ 7,50 (credencial plena).