Estrutura cênica e debate teórico
Rosana Stavis e Helena de Jorge Portela em Nebulosa de Baco (Foto: Renato Mangolin)
Nebulosa de Baco, montagem da Cia. Stavis-Damaceno em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), propõe uma articulação entre o passado e a contemporaneidade. Transporta para a atualidade uma reflexão sobre o comprometimento visceral do artista com a personagem que interpreta, principalmente quando esta aciona experiências desestabilizadoras, que remetem à tradição da tragédia.
No texto assinado pelo diretor Marcos Damaceno, duas atrizes alternam o ensaio de uma peça – uma conduz a outra – com comentários sobre a dificuldade de interpretar personagens e vivenciar situações contundentes em termos de dramaticidade. A conexão entre a peça que elas ensaiam, centrada numa história acidentalmente incestuosa, e os primórdios da tragédia no teatro evoca as operações dramatúrgicas realizadas com frequência por essa companhia. Essa associação não se refere especificamente ao terreno da tragédia, mas a apropriações autorais de material existente, a exemplo da obra do escritor Thomas Bernhard.
Ao investir numa permanente intercalação entre a representação da peça e as conversas sobre o registro de atuação, Marcos Damaceno privilegia a estrutura – o revezamento entre esses dois planos – em detrimento da história – sobre uma personagem assombrada por trauma no contato com os homens (a rigor, com um homem em particular, o pai). Ao priorizar a oscilação entre as personagens/atrizes, que a todo instante entram e saem da peça que estão ensaiando para falarem a respeito dela, Marcos Damaceno diminui bastante a possibilidade de envolvimento do público com a trama em si.
Esse distanciamento também é reforçado pela discussão conceitual em torno da adesão emocional à personagem. A atriz que vai interpretá-la se aproxima de um entendimento da atuação como incorporação, encarnação, da personagem, e a sua resistência decorre da necessidade de lidar intimamente com conteúdos carregados. Já a atriz que a conduz acredita que o ato de interpretar não implica em ligação emocional. Diz que a atriz deve emocionar o espectador, mas não se emocionar.
Tanto no plano do embate acerca da interpretação quanto no da apresentação de trechos da peça que ensaiam, Nebulosa de Baco evidencia certo desgaste. No primeiro, reedita uma questão que atravessa séculos de teorização teatral, valendo lembrar das contribuições de Diderot no Paradoxo do Comediante e de João Caetano nas Lições Dramáticas (esse último percebeu na própria pele o problema da interpretação à base de emoção ao perder o controle na contracena com uma atriz). No segundo, a peça ensaiada traz à tona ecos da produção de dramaturgos e roteiristas recentes influenciados pela tragédia, como o libanês Wajdi Mouawad, o sueco Lars Norén e os dinamarqueses Thomas Vinterberg e Mogens Rukov.
Mas, para além da abordagem dos meandros da interpretação, Nebulosa de Baco é um veículo para atrizes. Rosana Stavis e Helena de Jorge Portela, ainda que um pouco prejudicadas pela constância de um tom de voz gritado, demonstram a extensão de seus recursos. Como a atriz que conduz o ensaio, Rosana fica mais voltada para as tiradas descontraídas nos momentos de intervalo, que contrastam com a densidade da peça. Como a atriz que efetivamente interpreta a personagem dominada por sofrimento lancinante, Helena é mais favorecida pela dramaturgia e imprime pulsação sanguínea.
As atrizes surgem dispostas em espaço que sinaliza uma sala de ensaio, mas Marcos Damaceno, também responsável pela cenografia, não se limita a reconstituir um local improvisado. Ao mesmo tempo em que expõe a engrenagem do teatro do CCBB, deixando-a intencionalmente à mostra, de modo a revelar os bastidores e destacar o caráter de trabalho em processo, Damaceno concebe um ambiente “finalizado”, com as atrizes/personagens em tablado suspenso e telas de espelho ao fundo. Essa fricção entre teatralidade e desconstrução marca os figurinos de Karen Brusttolin, mais estilizados para Helena, realçando o artifício de uma interpretação não obrigatoriamente destituída de verdade, e mais neutros para Rosana, frisando a postura da observadora que, porém, participa na criação da cena.
Nebulosa de Baco, apesar da proposição dramatúrgica que não prima exatamente pelo frescor, oferece ao público o encontro com atrizes munidas de domínio técnico e habilidosas no trânsito entre distintos estados emocionais.
NEBULOSA DE BACO – Texto e direção de Marcos Damaceno. Com Rosana Stavis e Helena de Jorge Portela. Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66). De qua. a sáb. às 19h e dom., às 18h. Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia-entrada).