Estruturas desmascaradas
As vidas dos personagens de A Melhor Versão – trabalho realizado a partir da integração entre teatro e cinema, bastante valorizada nesses tempos de pandemia – são marcadas pela repressão decorrente do temor de assumirem seus desejos em esfera íntima e, principalmente, pública. Não por acaso, a hipocrisia é a nota comum em seus percursos. Autora do texto, Julia Spadaccini apresenta um casal, Gilda e Osmarindo, que obedece à risca um cotidiano padronizado e destituído de motivação e expressão de afeto, quadro emocional que influencia o filho, Gilsinho.
Sob a capa da moralidade, os personagens sufocam. O tapa que Osmarindo levou do pai o “transportou para uma outra dimensão, para um lugar onde ele se perderia para sempre” e determinou um estreitamento de horizonte que, porém, não anulou por completo a imaginação fértil. Gilda sonha com uma independência que, a princípio, hesita colocar em prática. E Gilsinho se reconhece, desde cedo, na imagem do feminino, projeção que oculta dentro dos limites de uma identidade convencional.
Durante período considerável de suas vidas, os personagens abortam seus impulsos pessoais numa quase inação relativizada, em parte, quando passam a dar vazão a eles no âmbito da imaginação e depois no da concretização, mesmo que clandestina. Osmarindo se despe, momentaneamente, de sua couraça inflexível e se depara com a própria fragilidade. Gilda e Gilsinho ensaiam seus processos de libertação, o que encaminha o segundo rumo a um encontro com “a amante de si mesmo”, definição que sinaliza, nesse texto de Spadaccini, um aroma rodrigueano.
De qualquer modo, o panorama existencial descortinado em A Melhor Versão remete um pouco mais à dramaturgia de Tchekhov, em especial a As Três Irmãs, peça em que as protagonistas externam a necessidade de mudança (por meio do deslocamento da província, onde moram, para a capital), sem, contudo, viabilizá-la. Ainda que os personagens da mãe e do filho no texto de Spadaccini partam para a ação em dado instante, quando transparecem duplos de si (as identidades que até então camuflam e vêm à tona ao seguirem suas vontades) e do outro (Madalena, a vizinha solar, em oposição direta a Gilda), permanece certo elo com a inércia encontrada nas peças de Tchekhov.
A reverberação íntima das experiências particulares é contextualizada em diferentes épocas da história brasileira, caracterizadas por certa estabilidade (1957), violência imposta pela ditadura (1976), esperança na redemocratização (1985) e tragédia planetária (os dias de hoje). Por meio dessa articulação, Spadaccini parece defender que o posicionamento reacionário diante do mundo é consequência da impossibilidade de exercer livremente os próprios desejos.
Em sintonia com o movimento que os personagens fazem, ou pelo menos insinuam, à medida que o texto avança, a concepção de A Melhor Versão, a cargo de Daniel Herz e Luis Felipe Sá, é norteada pelo desmascaramento. Há exposição ao público tanto do que sentem os personagens quanto da estrutura do trabalho. Os atores aparecem entrando na Cidade das Artes, local onde o filme da peça foi feito, e a inclusão desse momento anterior ao início da apresentação propriamente dito lembra, rapidamente, a chegada dos atores ao teatro em Tio Vanya em Nova York (1994), de Louis Malle, que, inclusive, coloca o espectador diante de uma encenação (Tio Vanya, de Tchekhov). Em A Melhor Versão, os diretores propõem operações mais visíveis na conjugação entre teatro e cinema, ao passo que Malle, apenas aparentemente se limitando a registrar uma apresentação, interage com a peça de Tchekhov.
Além do palco, os atores/personagens percorrem outros espaços da Cidade das Artes que intencionalmente não correspondem aos ambientes mencionados na peça. A fricção entre os ambientes fictícios e aqueles onde as cenas são realizadas sem preocupação com reconstituições realistas suscita provável estranhamento que diminui a chance do espectador estabelecer uma relação ilusionista, alienada, com o filme/espetáculo, apesar da autora se debruçar sobre o universo cotidiano, que tende a provocar sensação de identificação em quem assiste. Há ainda um contraste entre a ilusão romântica evocada por meio de citações a expoentes do cinema clássico, como Casablanca (1942), de Michael Curtiz, e A Felicidade não se Compra (1947), de Frank Capra, e a aridez emocional que atravessa as jornadas dos personagens.
Ao promover o diálogo entre as artes, A Melhor Versão se aproxima do cinema na manipulação das imagens, mas se afasta dele ao desconectá-lo do registro realista habitual nessa manifestação, e investe na teatralidade resultante da articulação não literal do texto com os ambientes e os objetos, que adquirem caráter simbólico. O exemplo mais expressivo é o da mesa, elemento cenográfico (direção de arte de Clivia Cohen e José Cohen) que sintetiza a situação de confronto e desequilíbrio, o distanciamento causado pela falta de comunicação e o refúgio da realidade, comportamentos da família apresentada por Spadaccini.
A estrutura do trabalho também é mantida à mostra na dinâmica interpretativa buscada junto ao elenco. Ana Paula Secco, Armando Babaioff e Michel Blois transitam entre a narração e a vivência, frisando a distinção e, em contrapartida, a contaminação entre os planos, tendo em vista que o ato de narrar não se dá através de uma descrição fria, e sim de um comprometimento diante daquilo que é contado.
Em A Melhor Versão, os mecanismos estão em evidência. Na dramaturgia, através da partilha com o público das estruturas de funcionamento psíquico dos personagens; na da construção cênica/cinematográfica, por meio da exposição das engrenagens do fazer artístico.
Onde ver: plataforma on-line YouTube através do link http://www.sympla.com.br/amelhorversao. Gratuito até 30 de maio.