Sugestivos fragmentos de Duse
A atriz italiana Eleonora Duse (1858-1924) demonstrou adesão ao discurso antigo e à prática moderna do teatro. Por um lado, considerava o ator não mais que um elemento de ligação entre o texto do autor e o espectador, posicionamento que realçava a tradição textocentrista baseada numa superioridade da obra do dramaturgo em relação aos demais componentes da cena. Por outro, revolucionou o entendimento sobre o trabalho do ator ao evidenciar, em suas interpretações, uma doação sem reservas na encarnação das personagens. Ao procurar ocultar a própria presença para que o texto dramático sobressaísse, o contrário acontecia: Duse acabava monopolizando a atenção do público por meio de um registro interiorizado, filigranado, contido.
Esse paradoxo, destacado pela teórica Beti Rabetti no texto Eleonora Duse por Silvio D’Amico: a Interpretação que se Esconde, é abordado em Dusefonia, experimento concebido por Angela Leite Lopes e Miguel Vellinho. “Tirar do meu ventre, das minhas entranhas, aquele suspiro fatal”, afirma, em dado momento, Duse, que, norteada pelo princípio da autoexposição, da revelação de um ator desmascarado, acreditava que “não se emula, nem representa”.
A mencionada determinação de Duse a imprimir uma presença discreta, em nada impositiva, decorria de uma percepção do ofício como “a arte de desaparecer”. Talvez houvesse a consciência do caráter efêmero do ato teatral, que se dissolve assim que a apresentação termina e nunca mais será repetido de maneira idêntica – mesmo um eventual registro audiovisual modifica a apreciação do trabalho. O espetáculo teatral (e, claro, o desempenho do ator) permanece vivo na subjetividade do espectador, mas, concretamente, esfumaça, morre.
Por força do período em que viveu – e lembrando ainda que se viu obrigada a interromper a carreira durante uma fase devido a um esgotamento emocional gerado pela forma visceral com que exerceu a profissão -, Duse construiu seu percurso no teatro e, por isso, a inestimável importância de sua contribuição artística vem à tona mais por meio de pesquisas e referências do que efetivamente de flagrantes de atuação. Exceção: sua aparição no filme Cenere (1916), de Febo Mari e Arturo Ambrosio, encerrando Dusefonia.
A morte também se insinua por meio do boneco, objeto inerte que ganha vida a partir da interação estabelecida pelo intérprete. É o que faz Angela Leite Lopes em Dusefonia, ao “contracenar” com boneco que evoca a Margarida Gautier de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas. O boneco, possivelmente um duplo de Duse, remete à supermarionete de Gordon Craig – encenador do qual a atriz se aproximou na montagem de Rosmersholm, de Henrik Ibsen -, conceito que aponta para a utopia da perfeição. Manipulável, o boneco é plenamente controlado e proporciona, nesse sentido, uma chance de libertação das inconstâncias e imprecisões humanas que, para Craig, inviabilizariam o status de obra de arte absoluta. Duse, porém, compreendia a perfeição como um amálgama entre domínio técnico e alma. Saudosa do teatro de bonecos da infância, Duse surge mobilizada por memórias do passado que não podem mais ser reconstituídas. A abrangente temática da morte sugere algum elo com o encenador polonês Tadeusz Kantor, frisado em Dusefonia.
A dramaturgia, composta por cartas e episódios da trajetória de Eleonora Duse, tem estrutura fragmentada, assim como as partes de corpo expostas aos poucos aos espectadores. Atravessada pela atuação suave de Angela Leite Lopes, que não tenta “reproduzir” Duse, esse experimento cênico/audiovisual conecta o público brasileiro com a lendária atriz europeia, que, inclusive, já esteve se apresentando aqui. Uma atriz que se tornou marco de interpretação moderna, em especial no que diz respeito ao modo como se fundiu nas personagens de Ibsen.
Onde ver: No canal YouTube do CEAK (Centro de Estudos Ana Kfouri)