A personagem de A Aforista, texto de Marcos Damaceno inspirado em obra do escritor austríaco Thomas Bernhard, surge, em cena, com um vestido cuja cauda se estende pelo palco até a parede, onde está presa. Essa proposta, concebida a partir de uma integração entre figurino (de Karen Brusttolin) e cenário (de Damaceno), determina uma circunstância física contrastante para a atriz Rosana Stavis, que fica com os movimentos trancados da cintura para baixo e livres da cintura para cima. Uma configuração que remete à imagem da Winnie, de Dias Felizes, que tem parte do corpo enterrada e a outra, liberta.
Mas enquanto na peça do irlandês Samuel Beckett a personagem vai sendo cada vez mais sugada pela terra numa impotência física divergente da sua perspectiva solar, na de Damaceno a condição corporal se mantém inalterada e a personagem, diferentemente da luminosidade de Winnie, destila, com humor ácido, farpas referentes a artistas egocêntricos.
Esse foco temático é, sem dúvida, um elo com o outro trabalho realizado por Stavis/Damaceno a partir de uma articulação com Bernhard: Árvores Abatidas ou para Luis Melo. Não por acaso, os espetáculos são componentes de uma trilogia. A personagem-narradora de A Aforista relata ao público sobre dois homens, pianistas como ela. Um deles cometeu suicídio por inveja do sucesso do colega ou, mais exatamente, diante da constatação do descompasso entre a aclamação que projetou para si e a real extensão de seu talento.
Em Árvores Abatidas, Stavis interpretava uma mulher que não estava no centro da ação, tanto por não ser a protagonista da história que contava quanto por sua localização geográfica (permanecia no hall de uma casa, sem jamais entrar na festa ambientada no cômodo ao lado, conforme os sons ouvidos pelo público). Em A Aforista, a personagem tem papel igualmente coadjuvante no conflito que expõe.
Apesar de ter sido próxima dos pianistas e testemunhado o desenrolar dos acontecimentos, ela frisa um certo afastamento ao afirmar que aquele embate não lhe diz respeito, na medida em que sua motivação artística não é a competitividade e sim a urgência em marcar oposição à própria família. A dramaturgia joga luz sobre essa figura periférica, destacada na iluminação de Beto Bruel.
O descolamento da personagem em relação aos fatos que esmiuça diante da plateia se manifesta ainda em sua posição de narradora. O ato de narrar pressupõe um distanciamento, mas também uma atualização da vivência por meio da presentificação do passado. Em A Aforista, o espectador se depara com uma descrição destituída de visceralidade e dotada de discreta dose de compaixão feita por uma mulher acerca de situações das quais participou em parte.
Uma mulher entre dois pianistas – justamente a disposição cênica do espetáculo de Damaceno, em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), que traz Stavis atuando entre os pianistas Sergio Justen e Rodrigo Henrique, que se encontram nas laterais do espaço num espelhamento relativizado por distinções nos figurinos.
Rosana Stavis interpreta essa mulher que debocha de um mundo artístico atravessado pela vaidade – um mundo com o qual está, em algum grau, comprometida. A atriz demonstra pleno controle do descontrole corporal dessa personagem, a julgar pelo domínio do desafiante contraponto entre imobilidade e movimentação frenética. A segurança com a palavra não é menor. Stavis imprime modulações diversas ao texto que, ao invés de resultarem num preciosismo, num maneirismo estéril, potencializam um estado de desestabilização física e mental. Evidencia louvável fluência em rápidas transições emocionais, mais uma prova da precisão com que maneja suas ferramentas de atuação.
Uma eventual sensação de repetição suscitada pela evocação do espetáculo anterior – afinal, são os mesmos diretor/dramaturgo e atriz envolvidos com a apropriação do universo do mesmo autor – não atrapalha a apreciação de A Aforista, uma encenação que sinaliza uma coerente continuidade de trabalho na parceria entre Marcos Damaceno e uma irrepreensível Rosana Stavis.
A Aforista – Texto e direção de Marcos Damaceno a partir da obra de Thomas Bernhard. Com Rosana Stavis. Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66). De qua. a sáb., às 19h30, e dom. às 18h. Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia-entrada).
O investimento num teatro voltado para uma ampla faixa de espectadores é representado, entre outros espetáculos da atual temporada do Rio de Janeiro, por Baixa Terapia, peça do dramaturgo argentino Matias Del Federico que ganha o palco em montagem dirigida por Marco Antônio Pâmio, em cartaz até o próximo domingo no Teatro Clara Nunes. Sem perder de vista a importância da experimentação de linguagem no panorama contemporâneo, um espetáculo filiado à tradição do teatro de mercado supre uma lacuna fundamental na cena de hoje, levando em conta o crescente afastamento de uma expressiva camada de público nas últimas décadas.
A escolha de um texto pertencente à comédia é natural, uma vez que esse gênero costuma suscitar uma relação mais direta e imediata com a plateia. Os personagens de Del Federico irrompem no palco como casais que se reúnem para uma terapia de grupo e se veem diante de uma circunstância, no mínimo, inusitada: a terapeuta propositadamente se ausenta e deixa instruções que devem ser seguidas pelos pacientes. O mote é promissor e não há como explicar mais sem anunciar reviravoltas que o autor reserva ao espectador.
No entanto, mesmo sem ignorar a bem-vinda longevidade da carreira do espetáculo em São Paulo e o comparecimento do público no Rio, Baixa Terapia sinaliza problemas em sua concepção dramatúrgica. Verborrágico, o texto não alcança a pretendida voltagem de humor. E a virada final da história, apesar de surpreendente, evidencia uma desvalorização da própria comédia.
A revelação que encerra a peça traz à tona um assunto grave e, nesse instante, Del Federico se distancia do cômico, como se o julgasse inapropriado para abordar a questão. Ao requisitar o drama, numa brusca mudança de tom, para chamar atenção para uma temática bastante séria, o autor parece considerar a comédia como campo limitado, ineficaz diante de objetivos como estimular uma reflexão ou gerar um potencial de choque – objetivos supostamente maiores, mais nobres, do que entreter a plateia. Baixa Terapia termina como uma comédia que, de alguma maneira, renega o gênero, como uma comédia envergonhada. Mas também há no desfecho uma homenagem à representação como caminho para elucidar a verdade, o que remete ao ofício teatral e, em particular, ao trabalho do ator, que constantemente se expõe através das identidades fictícias assumidas no palco.
No que diz respeito à encenação, Marco Antônio Pâmio orquestra a movimentação dos atores – dispostos, de acordo com a situação, num único espaço fechado –, mas não evita uma sensação de estatismo, decorrente do texto, que carece de vitalidade na vagarosa evolução dos personagens pelos estágios da terapia em grupo. Contudo, a opção por uma peça como Baixa Terapia é louvável em se tratando da trajetória de Antonio Fagundes. Ator consagrado na televisão, Fagundes, porém, nunca se separou do teatro. Permaneceu ao longo do tempo participando de montagens de espetáculos e, mais do que isso, esteve à frente, durante boa parte da década de 1980, de uma companhia – a Companhia Estável de Repertório, projeto movido por sua associação com o produtor Lenine Tavares. No caso desse texto em específico, Fagundes se dedica a um material que não oferece oportunidades como protagonista. Ele divide igualitariamente a cena com os outros cinco atores. Não se preocupou com a priorização de uma peça que favorecesse seu brilho individual, o que demonstra generosidade artística e desconexão com o vedetismo do primeiro ator.
Fagundes, portanto, surge integrado ao coletivo, em sintonia com o registro naturalista, praticado por quase todo o elenco: Alexandra Martins, Fábio Espósito, Guilherme Magon e Mara Carvalho. O rendimento é variável, com destaque para Carvalho. A exceção é Ilana Kaplan, cuja interpretação contrasta com esse código. A atriz aproveita o seu domínio da linguagem clownesca para delinear uma personagem oprimida, à beira do transbordamento, do extravasamento. É uma atuação estilizada, expandida, que intencionalmente destoa das demais, com bons momentos de graça física e certa concessão à afetação.
Ainda que as restrições referentes ao terreno da dramaturgia reverberem na encenação, Baixa Terapia cumpre a missão de reaproximar ou preservar a presença de uma quantidade significativa de público no teatro.
Baixa Terapia – Texto de Matías Del Federico. Direção de Marco Antônio Pâmio. Com Antonio Fagundes, Ilana Kaplan, Fábio Espósito, Mara Carvalho, Guilherme Magon e Alexandra Martins, Teatro Clara Nunes (R. Marquês de São Vicente, 52 – Shopping da Gávea). Sex., às 21h, sáb., às 20h e dom., às 18h. Ingressos: R$ 140,00 e R$ 70,00 (meia-entrada). Peça + visita aos bastidores: R$ 240,00 e R$ 170,00 (meia-entrada).
“Eu vivo meu corpo”, diz Viviane de Cassia Ferreira, atriz/personagem apresentada por João Dumans em As Linhas da minha Mão, filme consagrado pelo júri oficial como vencedor da Mostra Aurora da última edição da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que tomou conta da histórica cidade mineira durante parte do mês de janeiro. Seguindo um dos princípios da performance, manifestação artística exercida por Viviane, o diretor realça a conexão entre arte e vida. Fornece ao público um retrato transparente – ainda que a presença da câmera determine um nível de atuação em quem está sendo filmado, o que, por si só, inviabiliza uma total transparência – de Viviane, revelada aos poucos diante do espectador.
Dificilmente a plateia conseguirá desvendar Viviane já na cena inicial, marcada por uma conversa sobre graus de consciência em meio a citações de Nietzsche. O desenho dela vai ficando mais nítido ao longo da projeção, à medida em que fala sobre o seu transtorno psíquico, lembra da doença da mãe e comenta sobre os relacionamentos com homens (chamando atenção para a alta voltagem sexual desses encontros) – tudo exposto enquanto fuma um cigarro atrás do outro. É emblemática a sequência em que ela, diante das mazelas de uma pessoa à sua frente, passa de ouvinte a depoente, descortinando sua desestabilização emocional.
Apesar de mostrar eventuais interlocutores, a câmera permanece, com frequência, fechada no rosto de uma autocentrada Viviane. Como os flashes do cotidiano – destacados, no decorrer da sessão, por meio de fotos – ela está em constante movimento, o que não significa necessariamente em mudança contínua. As Linhas da minha Mão traz à tona, ao longe, outra produção sobre uma mulher real, também intensa e passional: Laura (2013), de Fellipe Barbosa. Talvez a maior diferença resida no fato de que Barbosa aparece mais inserido dentro do filme devido ao seu comprometimento com a personagem-título.
As Linhas da minha Mão se inscreve numa corrente bastante valorizada, tanto no cinema quanto no teatro contemporâneo: a do trabalho confessional, no qual o artista relata, em primeira pessoa, experiências particulares, em geral dramáticas (muitas vezes, trágicas). Nesse filme de Dumans, diretor do elogiado Arábia (2017), o autodesnudamento de Viviane transcende a esfera das palavras e se dá em sua própria fisicalidade, no modo como se expressa diante do outro e do mundo.
Apesar da distância no tempo e no espaço, Cerca Viva, texto de Rafael Souza-Ribeiro em cartaz no Teatro Firjan/Sesi, remete, em alguma medida, às dramaturgias do norueguês Henrik Ibsen e do russo Anton Tchekhov – em particular, suas peças Casa de Bonecas e As Três Irmãs.
Como o original de Ibsen – escrito nas últimas décadas do século XIX –, o texto de Rafael – produção recente, mas com história ambientada nos anos 1950 – destaca o processo de libertação de uma personagem feminina protegida numa espécie de redoma, em especial no que diz respeito à estrutura estável do casamento. Tanto a Nora, de Ibsen, quanto a Lúcia, de Rafael, cumprem, pelo menos até dado momento, as funções destinadas a uma esposa nos moldes tradicionais, ainda que a primeira tome iniciativas ocultas e que a segunda manifeste, na esfera conjugal, a insatisfação com um cotidiano quase imposto.
Os pontos de ligação entre os textos não excluem, logicamente, as diferenças. A questão da maternidade é um elemento em comum, que, porém, ganha desdobramentos distintos em cada peça. No polêmico final de Casa de Bonecas, Nora rompe não só com o casamento, mas com o convívio com os filhos, como necessidade de proclamar a sua independência e encontrar um lugar no mundo. Em Cerca Viva, a perspectiva da gravidez interfere na postura de Lúcia. Outro tópico de aproximação: o contexto econômico dos dois casais (Nora-Helmer/Lúcia-Luiz). Contudo, a situação financeira de Nora é mais sólida que a de Lúcia, levada a se mudar para uma cidade do interior, mesmo que com determinada projeção (Volta Redonda), devido às oportunidades profissionais do marido.
Cerca Viva também lembra As Três Irmãs, peça sobre personagens que não conseguem concretizar os próprios planos, como o ansiado retorno a Moscou, No texto de Rafael, Lúcia é uma mulher sufocada na província que sonha com a volta para a capital, status que o Rio de Janeiro portava na década de 1950. No interior chegam ecos da cidade cosmopolita (a rivalidade entre Emilinha Borba e Marlene) e do país (uma anunciada vinda do presidente da República), que geram frisson, mas insuficiente para apaziguar as expectativas.
Como nas peças de Tchekhov, o público se depara com existências frustradas, projetos abortados, vidas em suspenso. Regina é uma atriz retirada há anos do ofício. Lúcia se vê impossibilitada de exercer a profissão de professora de francês. Engenheiro, Luiz, o marido, fica decepcionado com o resultado do seu trabalho num instante fundamental. Talvez a nuance em relação às peças do autor russo resida no fato de que em Cerca Viva os personagens partem para a ação, mesmo que lentamente. De certo modo, Lúcia e Luiz caminham em sentidos opostos, mas ambos rumo ao desconhecido – ela ao desejar a autonomia na cidade grande, ele ao avançar para um Brasil cada vez mais remoto.
Se Ibsen e Tchekhov são autores apressadamente classificados como realistas, a montagem dirigida por Cesar Augusto coloca o realismo em tensão. Esse estranhamento se dá na cenografia de Elsa Romero e Luiz Henrique Sá, que traz a estrutura externa de uma casa, a moldura destituída de preenchimento, um pouco como a estabilidade ilusória dos anos 1950. E o afastamento do realismo ocorre ainda no registro interpretativo do elenco, estabelecido na construção da peça, que faz os atores transitarem entre a narração e a vivência das personagens, oscilação praticada com considerável fluência. Camila Nhary projeta, com contundência, o crescente descontentamento de Lúcia, mas sem reduzi-la a uma nota única, desprovida de variação. Angela Rebello, com apreciável timming, conserva na voz o glamour de atriz de Regina, resquício de uma época que não volta mais. Gabriel Albuquerque desenha, com precisão, o marido vinculado a tradições. Sávio Moll concilia, na composição de Valcir, trabalhador da região, o acento de humor com o peso de uma mentalidade reacionária.
Por meio desse último personagem, o autor parece buscar um elo com os dias de hoje, apesar de não haver, nesse texto, articulações diretas com a atualidade e de o pensamento retrógrado não ser exclusividade de um período específico. Cerca Viva é uma peça que transcende – sem diminuir a importância – a sua localização histórica, suscitando associações com um passado mais distante e com o presente. São características do texto devidamente valorizadas na montagem.
Cerca Viva – Texto de Rafael Souza-Ribeiro. Direção de Cesar Augusto. Com Camila Nhary, Angela Rebello, Gabriel Albuquerque e Sávio Moll. Teatro Firjan/Sesi (Av. Graça Aranha, 1). Seg. e ter. às 19h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada).
Sem perder de vista o elo com os dias de hoje, Leci Brandão – Na Palma da Mão – espetáculo dirigido por Luiz Antonio Pilar, em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc – transporta o público para um outro tempo, particularmente no que se refere ao Rio de Janeiro, cidade onde a cantora e compositora homenageada nasceu e cresceu. Os personagens surgem inseridos em ambiente que sugere um terreiro – de modo a destacar a conexão de Leci com a religiosidade afro-brasileira – ou um quintal – símbolo de um subúrbio amoroso e aprazível duramente abalado pela escalada da violência nas últimas décadas -, de acordo com a concepção cenográfica de Lorena Lima.
Apesar da evocação do passado, a montagem estimula associações com a atualidade, especialmente no que diz respeito ao engajamento de Leci com questões que permanecem em discussão, como justas reivindicações. Um exemplo é a defasagem de oportunidades para homens e mulheres, evidenciada na cena em que ela enfrenta preconceito ao ingressar na ala de compositores da Mangueira, escola do seu coração (conforme realçado nos figurinos de Rute Alves).
Musical de porte reduzido, Leci Brandão – Na Palma da Mão procura abraçar a extensão da trajetória da artista. Busca filiação na vertente biográfica, mas concilia a abordagem panorâmica com um recorte definido, centrado na relação entre Leci e a mulher que garantiu sua sustentação afetiva e apoio profissional – a mãe, Lecy. Esse vínculo atravessa o texto fluente de Leonardo Bruno (com adaptação dramatúrgica de Lorena Lima, Luiz Antonio Pilar e Luiza Loroza), que transita pelos principais estágios da jornada de Leci: a religiosidade, o breve contato com o pai que morreu precocemente, os passos iniciais na atividade artística que a fizeram romper com um lugar feminino tradicional, a consolidação da carreira, o período de ostracismo decorrente do desentendimento com a gravadora poderosa, o comprometimento com as pautas sociais e ideológicas e a adesão à militância política.
Luiz Antonio Pilar se vale do formato de musical intimista como estímulo para instigantes propostas cênicas. O chão repleto de folhas secas rende, pelo menos, um momento de impacto: aquele em que Leci, sem perspectivas de trabalho, sucumbe e é soterrada pelas folhas. O diretor, inclusive, poderia ter aproveitado um pouco mais as possibilidades das folhas para a criação de imagens não literais, o que reforçaria a teatralidade do espetáculo. Em todo caso, a montagem surpreende com a interação entre os atores, valorizando uma certa individualização corporal sem abrir mão da necessária sintonia entre eles (direção de movimento a cargo de Luiza Loroza). Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sergio Kauffmann formam o afinado elenco: a primeira imprime credibilidade a uma Leci sanguínea e destemida, a segunda interpreta a mãe a partir de uma fisicalidade expansiva, notadamente emocional, e o terceiro acumula personagens, revelando segurança em cada composição e nas marcações de conjunto. Também cabe elogiar a integração dos músicos – Thainara Castro, Matheus Camará, Pedro Ivo e Rodrigo Pirikito -, sob a direção musical de Arifan Júnior.
Leci Brandão – Na Palma da Mão é um musical que, independentemente do efeito de uma eventual quebra da quarta parede para produzir uma proximidade ainda maior com o público, contagia de maneira genuína e demonstra habilidade na articulação entre passado e presente, abrangência e foco, objetividade e uma dose de abstração.
Leci Brandão – Na Palma da Mão – Texto de Leonardo Bruno. Direção de Luiz Antonio Pilar. Com Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sergio Kauffmann. Mezanino do Sesc Copacabana (R. Domingos Ferreira, 160). De qui. A dom., às 20h30. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada), R$ 7,50 (associados do Sesc).
Reunindo os espetáculos apresentados entre 1 de janeiro e 31 de março de 2020 e 1 de abril e 31 de dezembro de 2022, o Prêmio Shell anunciou os indicados. Contemplou uma variedade de encenações, com destaque para Sem Palavras, espetáculo de Marcio Abreu, e Ficções, encenação de Rodrigo Portella. Mudança importante, a categoria Inovação passa a se chamar Energia que vem da Gente. O júri do Rio de Janeiro é formado por Ana Luisa Lima, Biza Vianna, Leandro Santanna, Patrick Pessoa e Paulo Mattos.
Dramaturgia:
Henrique Fontes e Vinicius Arneiro (Peça de Amar)
Gilson Barros (Riobaldo)
Cecilia Ripoll (Pança)
Elisandro de Aquino (Eu Amarelo)
Rodrigo Portella (Ficções)
Marcio Abreu e Nadja Naira (Sem Palavras)
Direção:
Renata Tavares (Nem Todo Filho Vinga)
Enrique Diaz e Marcio Abreu (O Espectador)
Rodrigo Portella (Ficções)
Paulo de Moraes (Neva)
Marcio Abreu (Sem Palavras)
André Paes Leme (A Hora da Estrela ou O Canto da Macabéa)
Ator:
Reinaldo Junior (O Grande Dia)
Milton Filho (Joãosinho e Laíla: Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia)
Cridemar Aquino (Joãosinho e Laíla: Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia)
Gilson Barros (Riobaldo)
Fábio Osório Monteiro (Sem Palavras)
Mario Borges (A Última Ata)
Atriz:
Ana Carbatti (Ninguém Sabe Meu Nome)
Vera Holtz (Ficções)
Vilma Melo (Mãe de Santo)
Andrea Beltrão (O Espectador)
Vitória Jovem Xtravaganza (Sem Palavras)
Vini Ventania Xtravaganza (Sem Palavras)
Cenário:
J.C. Serroni (Morte e Vida Severina)
André Curti e Artur Luanda Ribeiro (Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes)
João Marcelino (Candeia)
Bia Junqueira (Ficções)
Cachalote Mattos (Turmalina 18 – 50)
Erick Saboia e Marcio Meireles (Do Outro Lado do Mar)
Figurino:
Wanderley Gomes (Vozes Negras: A Força do Canto Feminino)
João Pimenta (Ficções)
Ticiana Passos (Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes)
Julia Vicente e Gabriel Vieira (Peça de Amar)
Marie Salles (O Espectador)
Iluminação:
Cesar de Ramires (Morte e Vida Severina)
Artur Luanda Ribeiro (Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes)
Gabriel Fontes Paiva e André Prado (Um Precipício no Mar)
Alexandre Gomes (A Jornada do Herói)
Maneco Quinderé (Neva)
Fernanda Mantovani (Caim)
Música:
Jorge Maya (Luiza Mahin… Eu Ainda Continuo Aqui)
Itamar Assiere (Morte e Vida Severina)
Chico Cézar (A Hora da Estrela ou O Canto da Macabéa)
Ananda K (Candeia)
Claudia Eliseu e Wladimir Pinheiro (Vozes Negras: A Força do Canto Feminino)
Azullllll (Cão Gelado)
Energia que vem da Gente:
Companhia Cria do Beco, baseada no Complexo da Maré, pelo espetáculo Nem Todo Filho Vinga, que traduz para a contemporaneidade de modo complexo e eletrizante o conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis, possivelmente o maior libelo antirracista da história da literatura brasileira.
Associação de Produtores de Teatro (APTR), pela campanha de arrecadação realizada durante a pandemia, que ajudou inúmeros profissionais do teatro a sobreviverem materialmente, e também por ter sido fundamental na luta para a aprovação no Congresso Nacional das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc.
Cia. de Mystérios e Novidades, por fomentar há 40 anos um teatro marcado pela diversidade e multiplicidade e, mais recentemente, por ter criado sua Escola Sem Paredes, um complexo de espetáculos, performances, cortejos, intervenções urbanas, exposições, aulas, seminários, oficinas e atividades socioculturais fundamentais para a ocupação do território da zona portuária do Rio de Janeiro e para o enriquecimento do calendário cultural da cidade.
Pandêmica Coletivo, por seu pioneirismo em criar uma plataforma online durante a pandemia, possibilitando a colaboração continuada entre artistas de diversas partes do Brasil, a experimentação de novos recursos na produção teatral online e difusão desses novos trabalhos.
Revista Questão de Crítica, por ter contribuído para o fortalecimento das ações online criadas durante a pandemia, estimulando o debate sobre novas possibilidades estéticas abertas por esse novo modo de produção teatral, e também por ter sido, ao longo de 15 anos de existência, decisiva para o fomento do pensamento crítico nas artes cênicas brasileiras.
Projeto Que boca na cena?, por ter realizado transmissões virtuais de espetáculos para fomentar a distribuição de renda para profissionais da cultura durante a pandemia e, nesse processo, por ter se firmado como importante espaço de uma prática antirracista continuada, que amplifica o alcance de trabalhos de artistas negros e periféricos.
Ficções, espetáculo concebido a partir do livro Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari, lidera as indicações do segundo semestre ao Prêmio Cesgranrio. Foi contemplado em oito categorias pelo júri formado por Carolina Virgüez, Daniel Schenker, Jacqueline Laurence, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Rafael Teixeira e Tania Brandão. Outros espetáculos também receberam várias indicações – entre eles, Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes, da Cia. Dos à Deux, Sem Palavras, assinado por Marcio Abreu, Marrom, o Musical, montagem biográfica sobre a cantora Alcione dirigida por Miguel Falabella, e Órfãos, peça de Lyle Kessler, conduzida por Fernando Philbert.
Espetáculo:
Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes
Ficções
Sem Palavras
Direção:
Artur Luanda Ribeiro e André Curti (Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes)
Marcio Abreu (Sem Palavras)
Rodrigo Portella (Ficções)
Ator:
Amaury Lorenzo (A Luta)
Robson Torinni (Tráfico)
Thelmo Fernandes (Dignidade)
Ator em Teatro Musical:
Tauã Delmiro (As Metades da Laranja)
Tiago Barbosa (Clube da Esquina – Os Sonhos não Envelhecem)
Atriz:
Deborah Evelyn (Três Mulheres Altas)
Denise Fraga (Eu de Você)
Vera Holtz (Ficções)
Atriz em Teatro Musical:
Letícia Soares (Marrom, o Musical)
Lilian Valeska (Marrom, o Musical)
Marya Bravo (Clube da Esquina – Os Sonhos não Envelhecem)
Texto:
Marcio Abreu e Nadja Naira (Sem Palavras)
Rodrigo Portella (Ficções)
Cenografia:
Artur Luanda Ribeiro e André Curti (Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes)
Bia Junqueira (Ficções)
Natália Lana (Órfãos)
Figurino:
João Pimenta (Ficções)
Ligia Rocha, Marco Pacheco e Jemima Tuany (Marrom, o Musical)
Rocio Moure (Órfãos)
Iluminação:
Artur Luanda Ribeiro (Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes)
Bernardo Lorga (Tráfico)
Paulo Cesar Medeiros (Ficções)
Direção Musical e Trilha Sonora:
Federico Puppi (Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes)
Federico Puppi (Ficções)
Guilherme Terra (Marrom, o Musical)
Categoria Especial:
Elenco de Sem Palavras
João Roberto Faria pelo livro Teatro e Escravidão no Brasil
Kenia Dias pela direção de movimento de Sem Palavras
Em A Hora do Boi, montagem em cartaz no Teatro Poeirinha, há movimentos que estimulam a aproximação e o distanciamento do espectador. Por um lado, os realizadores procuram fazer com que o público estabeleça um envolvimento com a história, centrada no vínculo afetivo entre um capataz e um boi – vínculo ameaçado pelos interesses do patrão. Por outro, essa adesão emocional é dosada por meio de momentos de suspensão, nos quais o ator/personagem quebra a quarta parede e fala diretamente com a plateia, e por citações diversas e explícitas a escritores (Guimarães Rosa, Euclides da Cunha) e músicas (Cálice, Admirável Gado Novo).
Há, como se pode notar, uma ambição considerável movendo esse trabalho conciso. Na esfera temática sobressai o que deve estar na origem desse projeto, nascido de argumento do próprio ator, Vandré Silveira, e elaborado por Daniela Pereira de Carvalho, autora do texto: a conexão extracotidiana, a possibilidade de um elo lancinante entre um homem e um animal, transcendendo as limitações de uma realidade pragmática. O público acompanha a jornada de um homem em duelo interior, confrontado com uma estrutura de funcionamento perversa e mobilizado por um sentimento imperativo, incompreensível no universo que o rodeia.
As referências estão ligadas a esses conteúdos descortinados ao longo do texto. Não foram introduzidas de modo postiço na dramaturgia. A crueza de uma geografia singular remete a Os Sertões, de Euclides da Cunha. E o embate do homem consigo mesmo, o assombro frente ao impacto provocado pelo outro, evoca o monumental Grande Sertão: Veredas. Há mais elementos próximos da obra de Rosa, em especial a apresentação do ato de revelação de um homem através da desconstrução de sua couraça com o intuito de radiografar sua interioridade (sua alma?), perspectiva reforçada pela cenografia de Carlos Alberto Nunes, composta por carcaças de animais. Um homem mostrado ao avesso, conforme sugerido no figurino, a cargo de Nunes.
A maneira como as canções são inseridas na dramaturgia – ditas ao invés de cantadas – faz com que soem como um texto interno do capataz, perplexo diante do que sente. Mas, apesar de pertencente a um mundo duro e cruel, ele não permite que esse estado de estranhamento reprima suas ações, norteadas pela natureza visceral da comunicação com o boi, passionalidade realçada nos tons quentes da iluminação de Renato Machado e Anderson Ratto. A organicidade alcançada na encenação de André Paes Leme, refletida na integração entre as criações artísticas, contrasta com uma intencional artificialidade, evidenciada na determinação em descolar, em algum grau, o espectador da história, em lembrá-lo de seu lugar dentro de um acontecimento teatral que se assume como tal.
Esses diferentes planos lançados no texto e destacados na encenação – o dentro e o fora da história – também se materializam na interpretação de Vandré Silveira, que transita entre personagens distintos (ainda que não por todos, na medida em que a opressão do patrão surge simbolizada, em off, na voz de Claudio Gabriel) sem enveredar pelo exercício exibicionista do virtuosismo. Aliados importantes da atuação, a direção de movimento de Toni Rodrigues e Paula Aguas, marcante na parte final, e a preparação vocal de Claudia Elizeu.
A Hora do Boi é uma montagem que, sem se valer de procedimentos interativos, ativa a presença do espectador. Investe no envolvimento, mas evita que o trabalho seja acessado de forma inteiramente ilusionista.
A Hora do Boi – Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de André Paes Leme. Com Vandré Silveira. Teatro Poeirinha (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb., às 21h, dom. às 19h. Ingressos: R$ 60,00, R$ 30,00 (meia-entrada).
BELO HORIZONTE – A programação da recém-encerrada 15 edição do Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte, que contou com curadoria de Andreia Duarte, Marcos Alexandre e Yara de Novaes, aponta para direcionamentos bem perceptíveis. Os trabalhos selecionados evidenciam a preocupação com a representatividade por meio de espetáculos com artistas e temática indígena, negra e LGBTQIA+ e o destaque a uma produção autoral e experimental, quase sempre distante dos princípios do teatro de mercado.
Considerando a vasta gama de espetáculos apresentados – mais de 30, de diversos estados brasileiros e internacionais (Argentina, Chile e México) –, é difícil estabelecer tendências. Condensado em menos de uma semana, o festival ofereceu aos espectadores uma intensa grade de atrações. Como não há como conferir a totalidade dos trabalhos, uma análise inevitavelmente resulta de um recorte em relação ao todo.
Além disso, a identificação de tendências não se limita às encenações que integraram o festival. Pode sinalizar vertentes em vigor na cena contemporânea. É o que se observa em Manifesto Transpofágico, solo de Renata Carvalho, e Museu Nacional (Todas as Vozes do Fogo), espetáculo da Cia. Barca dos Corações Partidos, ambos com dramaturgia inédita. São realizações de tamanhos e naturezas distintas, conforme sugerido nos espaços que ocuparam durante o festival – respectivamente, o Galpão Cine Horto e o Sesc Palladium. No entanto, os dois se encontram, mesmo que em graus variados, na adesão a um teatro que informa, instrui e ensina o espectador, orientação que vem norteando algumas produções nos últimos tempos.
Trata-se de um teatro que tem se colocado diante do público como uma escola de valores – diga-se de passagem, valores bastante pertinentes, ligados à inclusão numa sociedade que, com frequência, age com extrema violência frente às diferenças raciais e sexuais. Mas, por melhor que seja a lição, esse teatro educativo reforça uma postura hierárquica do artista em relação ao espectador. Por mais que muitas propostas cênicas procurem desconstruir a hierarquia por meio de uma conexão informal entre atores e espectadores, esta é, em si, inerente ao ato teatral. Afinal, o artista, mesmo lidando com o acaso, com as circunstâncias específicas de cada sessão, domina o desenrolar dos acontecimentos descortinados no palco, ao passo que a plateia está entrando em contato com eles pela primeira vez. A essa hierarquia “inevitável” foi acrescentada uma outra, exercida por um artista-professor que normalmente se refere ao espectador como alguém que precisa aprimorar o seu posicionamento e a sua atuação no mundo.
Renata Carvalho rompe com a separação palco/plateia e passa boa parte de Manifesto Transpofágico, trabalho dirigido por Luiz Fernando Marques, circulando pelo espaço destinado ao público, onde estabelece interação direta com os espectadores. Após trazer à tona a sua trajetória emocional, marcada pela exclusão diante da revelação da identidade sexual, ela incentiva aqueles que, até então, “apenas” assistem ao trabalho a relatarem vivências relacionadas à sexualidade e ao processo de rejeição ou aceitação dos mais próximos, geralmente parentes. A performer demonstra preocupação em deixar os espectadores à vontade, em não julgá-los caso façam perguntas ou declarações pouco sintonizadas com os avanços nos debates sobre gênero. Renata procura imprimir uma atmosfera de compreensão e troca de experiências, de intercâmbio entre iguais. Mas, mesmo caminhando na contramão de um tom autoritário, a artista fala do lugar de quem vive a existência travesti, de quem conhece na pele e, portanto, se encontra apta a aconselhar e a corrigir eventuais formulações equivocadas. Ela ocupa, nesse sentido, posição de superioridade.
De certo modo, Renata Carvalho se coloca como uma mestra cujo método reside na desconstrução da tradicional autoridade própria da relação professor-aluno. Ela estimula a participação dos espectadores numa inte(g)ração que se torna esgarçada dentro da estrutura do trabalho. Entretanto, a partir do instante em que se desloca do espaço do palco para o da plateia – por onde transita e se mistura, mas sem se dissolver -, Renata afirma e ilumina sua identidade. Também joga luz sobre alguns espectadores ao retirá-los do anonimato, permitindo-lhes ecoar suas vozes, suas especificidades. Os depoimentos, contudo, tendem à repetição, no que diz respeito à exposição de sofridas histórias atravessadas pela incompreensão e pelo litígio familiar e ocasionais possibilidades de pertencimento. Por meio de uma explanação didática, Renata lembra, na primeira metade do espetáculo, que, como tantos outros, sua identidade foi apagada, banalizada, resumida (e de maneira preconceituosa) à condição de travesti destituída de complexidade. O depoimento sobre esse corpo-travesti, corpo sem rosto, é reiterado pela forma como sua imagem desponta em cena, com o corpo recortado pela luz e o rosto invisibilizado. A imagem ilustra o texto, sublinhando ao invés de propor articulação com aquilo que é dito.
Fincada em sua jornada, Renata Carvalho procura ampliar o foco. Além de reunir depoimentos dos espectadores, flertar com o documental por meio de projeções com declarações que expõem uma marginalização imposta àqueles que não se enquadram em sexualidades padronizadas. A iniciativa é, sem dúvida, importante, mas há relativamente pouco espaço para contribuições não tão difundidas (a exemplo da relevância da travesti Brenda Lee, citada em rápido momento). A falta de ineditismo não inviabiliza o destaque a dados fundamentais como os apresentados ao longo de Manifesto Transpofágico, mas o didatismo de Renata teria mais sentido diante de uma plateia menos conectada com essa dura realidade. Seja como for, o teatro, como expressão artística, provavelmente ganharia mais força se os fatos surgissem inseridos dentro de uma concepção dramatúrgica menos evidente.
Assim como Manifesto Transpofágico, Museu Nacional, que conta com dramaturgia e direção de Vinicius Calderoni, parte do real. Se o primeiro espetáculo aborda a realidade de uma pessoa específica (Renata Carvalho) e transcende ao mostrá-la como símbolo do preconceito e da violência enfrentados por tantos que portam sexualidades que não se encaixam em classificações obsoletas, o segundo se debruça sobre a tragédia que acometeu uma instituição, que, devido ao descaso, foi consumida em incêndio de grandes proporções, no Rio de Janeiro, em 2018. Um patrimônio histórico valiosíssimo se perdeu em meio às chamas. A partir dessa catástrofe, a Cia. Barca dos Corações Partidos entrelaça diferentes camadas temporais para perguntar “que museu nos representa no Brasil de 2022?”
Diante do apagamento provocado pelo incêndio, os artistas evocam o passado escravocrata e propõem “fazer uma nova história”, reconstruindo o museu a partir da perspectiva inclusiva reivindicada nos dias de hoje, principalmente em relação aos índios e negros. Em determinado momento, a atriz indígena Rosa Peixoto se dirige ao centro do palco e, de frente para o público, constata: “isso não é uma cena porque vocês não me veem, não reagem quando uma aldeia é dizimada e índios são assassinados”. A atribuição de responsabilidade é reforçada pela luz lançada em direção à plateia, que, nesse instante, ganha o papel de elite branca, abastada e alienada, ainda que aqueles que costumam frequentar um festival como o FIT/BH tendam a ser mais conscientes e engajados que a referida classe. A acusação não se restringe aos que assistem a uma dada apresentação do espetáculo – até porque a cena será feita a cada noite diante de um coletivo distinto –, mas o público não é percebido como soma de subjetividades, de individualidades heterogêneas, e sim como bloco único.
Os demais atores de descendência negra e/ou indígena mostram que o lamentável reacionarismo da elite, apesar de continuar existindo atualmente, virou ou em breve se tornará peça de museu. Os artistas se colocam como porta-vozes do futuro, como aqueles que estão à frente, em plano acima dos espectadores, que, como foi dito, são vistos como integrantes de um grupo não suficientemente comprometido com a luta pelos excluídos e/ou exterminados.
Essa análise de Manifesto Transpofágico e Museu Nacional nasce de um recorte e não da ambição em abarcar esses espetáculos em todos os elementos que os constituem. Haveria muito o que falar sobre as linhas de direção e os registros interpretativos adotados, com destaque para a contundência cênica de Renata Carvalho em Manifesto Transpofágico e o domínio da palavra de Felipe Frazão e Ana Carbatti em Museu Nacional. A filiação a um teatro educativo não se limita a essas encenações, nem se impõe como nota única na programação do FIT/BH. As características comuns a grande parte das montagens selecionadas são as assinaturas autorais, o teor politicamente engajado e as concepções artísticas resultantes de trabalhos em grupo. Montagens que não buscam uma aproximação com o mercado (Museu Nacional, até certo ponto, é uma exceção) e colocam em primeiro plano as vozes de seus realizadores, cada vez menos escondidos por trás da ficção de uma personagem. A partir desses critérios, as escolhas se revelaram cuidadosas, proporcionando aos frequentadores do festival contato com espetáculos de qualidade, como Alegria de Náufragos, do grupo Ser Tão Teatro, e Negra Palavra Solano Trindade, do Coletivo Preto e da Companhia de Teatro Íntimo.
Há uma sobreposição de tempos e espaços em A Lista, montagem do texto de Gustavo Pinheiro em cartaz no Teatro dos Quatro. As personagens, duas vizinhas de gerações diferentes, lidam de maneiras distintas com o presente. A professora aposentada Laurita evoca o passado com saudade e expressa decepção com o aqui/agora. Lamenta a degradação de Copacabana e traz à tona uma época luminosa, quando o bairro contava com numerosos cinemas de rua e boates agitadas, como a Regine´s. Já Amanda, além de não ter vivido durante a fase mais efervescente de Copacabana, evidencia uma personalidade menos fatalista e preserva olhar de encanto diante do mundo, percepção que, aos poucos, contamina Laurita.
Na primeira parte da peça, as personagens interagem no apartamento de Laurita. Apesar do ambiente fechado, há referências ao espaço externo. Recolhida dentro de casa devido à pandemia do coronavírus, Laurita recebe as compras de supermercado graças à gentileza da vizinha, Amanda, que é a personagem que circula pelas ruas e se mostra em movimento constante. O claustrofóbico apartamento de Laurita é arejado pelo piso que reproduz o desenho sinuoso das pedras da orla, como se o dentro e o fora convivessem, de modo sugestivo (e conflituoso, a julgar pelos embates entre as personagens), no mesmo espaço, de acordo com a proposta cenográfica de J.C. Serroni. Na segunda parte, marcada por uma transição emocional na jornada de Laurita, ambas aparecem à beira mar e animadas com as perspectivas de mudança.
A Lista reúne algumas instâncias temporais. O passado de décadas, simbolizado por uma Copacabana exuberante, mas sem esquecer de eventuais tragédias que abalaram o país (o confisco das poupanças pela então ministra Zélia Cardoso de Mello durante a presidência de Fernando Collor de Mello, ainda que esse fato surja ligado a uma história inventada por Laurita). Há o passado recente, localizado no auge da pandemia – momento em que essa peça de Gustavo Pinheiro foi gestada e começou a ser apresentada em meio virtual -, bem refletido no confinamento de Laurita na primeira metade do texto. E finalmente o presente (ou uma projeção de futuro), com as personagens na praia.
Copacabana, descortinada diante do público e elevada ao status de personagem nessa peça, é o conhecido bairro carioca, com as suas características específicas, e, ao mesmo tempo, símbolo de transformações culturais e comportamentais contundentes que não se restringem às delimitações geográficas da região. Seja como for, a abordagem de Copacabana remete longinquamente a A Partilha, peça de Miguel Falabella, em especial nos minutos iniciais, quando Laurita comenta sobre o seu apartamento, que quase não é banhado pelo sol. No texto de Falabella, as personagens mencionam o reduzido acesso à natureza – devido a visão limitada do mar pela janela do imóvel.
Desenvolvida ao longo da pandemia, A Lista ganhou com o desdobramento das situações, ausentes da versão virtual. Mas determinadas fragilidades no âmbito da dramaturgia permanecem. Amanda desponta como uma personagem não muito crível em sua postura sempre solidária e positiva da vida, tendo em vista a quantidade de percalços, de adversidades, enumerados em seu percurso. O autor também se vale de certas repetições – a exemplo da frequência com que Laurita reitera que os bairros do Rio de Janeiro, com exceção de Copacabana, alagam. Esse recurso, inserido para provocar resposta imediata na plateia, enfraquece o resultado.
Guilherme Piva procura imprimir uma interação fluente entre as personagens, valorizando o texto e o trabalho das atrizes. O diretor investe em climas emocionais diversos, demarcados na iluminação de Wagner Antônio. Em alguns instantes, esses climas variados (realçados por uma trilha sonora eclética) são bruscamente interrompidos antes de serem instalados de modo mais sólido na cena. O provável intuito é surpreender o público. Mas há uma perda importante: o delicado equilíbrio da atmosfera doce-amarga, entre a esperança e a melancolia, não se instaura no palco. Em todo caso, Lilia Cabral domina essa dinâmica ao transitar, com agilidade, entre os lances de humor e sofrimento de uma personagem ressentida. Giulia Bertolli, mesmo enfrentando o desafio de interpretar uma personagem cujo estado de espírito não soa completamente verossímil, estabelece uma contracena segura.
A Lista demonstra filiação à tradição do teatro de mercado, com potencial para atrair uma ampla faixa de espectadores. Considerando o crescente afastamento do público das salas nas últimas décadas, esse espetáculo – dotado de méritos artísticos, em que pesem as restrições – cumpre uma função relevante.
A Lista – Texto de Gustavo Pinheiro. Direção de Guilherme Piva. Com Lilia Cabral e Giulia Bertolli. Teatro dos Quatro (R. Marquês de São Vicente, 52/Shopping da Gávea). Sex. e sáb. às 20h e dom. às 19h. Ingressos: R$ 120,00, R$ 60,00 (meia-entrada).