Paulo Verlings e Marcelo Olinto em Conselho de Classe (Foto: Dalton Valério)
Por meio de uma conjugação precisa de humor e melancolia, Jô Bilac descortina, em Conselho de Classe, um painel da decadência do sistema educacional num mundo marcado pela derrocada dos valores básicos de convivência. O autor entrelaça com habilidade a perspectiva panorâmica com a individual, a julgar pela construção das personagens: há a professora desiludida que procura complementar a escassa renda com a comercialização de produtos, a veterana que vive esquecida na biblioteca, a descrente com a chance de reversão de quadro tão terminal e a que conserva certo grau de idealismo a despeito do ambiente degradado. Todas reagem, de forma diferenciada, à chegada de um novo diretor, inicialmente disposto a reconciliar a escola com a ordem perdida. É possível perceber uma dose de carinho na criação dessas figuras, algo que lembra, mesmo que ao longe, a dramaturgia de Miguel Falabella. Desenvolvendo com sensibilidade uma situação bastante simples – uma reunião de professoras, no auge do verão carioca, motivada pelo afastamento da diretora a partir de uma rebelião estudantil causada por fato banal –, o autor apresenta a sua melhor peça desde Rebú.
Projeto concebido para a comemoração dos 25 anos da Cia. dos Atores, Conselho de Classe reúne integrantes do grupo (ainda que Paulo Verlings, da Cia. Teatro Independente, que encenou Rebú, Leonardo Netto e Thierry Trémouroux não pertençam ao coletivo), tanto no elenco quanto na direção, a cargo de Bel Garcia e Susana Ribeiro. Ambas revelam sintonia com o tom do texto e acertam ao fazer com que as personagens femininas sejam interpretadas por atores sem qualquer sinal de caricatura ou de composição mais evidenciada. Deve ser creditado à direção o mérito por um rendimento tão equilibrado. Afiados no timing da comédia, os atores – Cesar Augusto, Leonardo Netto, Marcelo Olinto, Paulo Verlings e Thierry Trémouroux – desenham personagens plenos de humanidade, muito reconhecíveis. O ótimo resultado do trabalho é realçado pela cenografia de Aurora dos Campos – que reproduz de modo palpável a atmosfera arruinada do ginásio da escola através dos objetos (cadeiras e ventilador envelhecidos) e aproveita bem o espaço do Mezanino do Sesc Copacabana, estendendo a ação para além dos limites do palco; pelos figurinos de Rô Nascimento e Ticiana Passos, que sublinham as características de cada personagem; e pela iluminação de Maneco Quinderé, que individualiza os “tipos” do texto de Jô Bilac.
Suzana Nascimento na montagem artesanal de Calango Deu! Os Casos de Dona Zaninha (Foto: Sergio Santoian)
Idealizadora do projeto de Calango Deu! Os Causos de Dona Zaninha, Suzana Nascimento trabalhou a partir de motivação notadamente familiar – a conexão com a própria avó. Não por acaso, abre a encenação com uma fala em primeira pessoa. Mas a atriz só retoma esse registro desarmado ao final do espetáculo. No decorrer da apresentação, investe em interpretação calcada em composição marcada, em especial no que se refere à voz, acentuando a disposição em trazer à tona lembranças mais por meio da estilizada criação de personagens do que de um tom confessional.
No início, a atriz “incorpora” a personagem diante do público. Entra “neutra” em cena, trajando figurino de base (de Desirée Bastos), logo complementado com camadas de tecidos bordados. Durante essa rápida transição, assume figura de perfil enérgico e começa a dar vazão à série de causos que compõem a malha dramatúrgica (assinada por Suzana Nascimento) da montagem. Conduzida pelo diretor Isaac Bernat, a atriz quebra a quarta parede e inclui os espectadores dentro da encenação ao convidá-los a partilhar do universo tipicamente mineiro descortinado: brinca ao interagir de maneira despretensiosa com a plateia, serve café e cachaça, pede auxílio na sonoplastia de determinada passagem. A atriz domina com habilidade esse passeio por um mundo que conhece muito bem, revelando apreciável domínio de improvisação na relação com o público e nitidez no desenho de personagens circunstanciais evocados no decorrer da sessão.
Celebração do artesanal que já chegou à quinta temporada no Rio de Janeiro, atualmente em cartaz no Teatro Poeirinha, Calango Deu! Os Causos de Dona Zaninha tem no cenário, também de Desirée Bastos, um forte atrativo, com suas caixas que, abertas, expõem oratório, sala máquina de costura e cozinha. A iluminação de Aurélio de Simoni enquadra a atriz em bela moldura, ao final de um simpático espetáculo que peca apenas pela longa duração.
Kalma Murtinho, homenageada pelo Prêmio Shell em 2007 (Foto: Acervo Prêmio Shell)
A história do teatro brasileiro na efervescente segunda metade do século XX pode ser contada através da trajetória da figurinista Kalma Murtinho, que morreu no último dia 20, aos 93 anos.
Kalma começou seu percurso artístico ao lado de Maria Clara Machado, no então recém-fundado Tablado do início da década de 50, inicialmente se revezando nas funções de atriz e figurinista. “Maria Clara era minha amiga de infância. Fomos bandeirantes juntas. Interpretei a primeira Mãe Fantasma”, recorda Kalma, referindo-se à personagem de Pluft, o Fantasminha, em entrevista realizada por ocasião da justa homenagem que recebeu na edição de 2007 do Prêmio Shell. “Mas ficava muito cansada em acumular os dois trabalhos. Percebi que precisavam mais de mim no lado dos figurinos. Os anos foram passando e não senti falta do trabalho de atriz porque encontrei uma maneira de me exprimir por meio dos figurinos”, afirma Kalma.
O primeiro trabalho profissional de Kalma como figurinista ocorreu a partir de um convite de Gianni Ratto, que dirigia a montagem de Nossa Vida com Papai (1957), no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). “Nós estávamos fazendo O Macaco da Vizinha (1956) no Tablado. Ratto foi assistir e me convidou para integrar a equipe do espetáculo do TBC. Lembro que tinha ido visitar uma irmã no Peru e, no dia em que cheguei de volta em casa, recebi um telefonema dele pedindo para que fosse imediatamente para São Paulo. Larguei as malas e fui”, conta.
Kalma Murtinho daria continuidade à parceria com Gianni Ratto em outras ocasiões, como nas montagens de O Amante de Madame Vidal (1973) e Com a Pulga atrás da Orelha (1984) – esta última, um dos grandes sucessos da carreira da atriz Fernanda Montenegro. Além de Fernanda – com quem voltou a trabalhar em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1982), uma das mais importantes encenações do Teatro dos 4 -, vestiu outras grandes atrizes brasileiras, como Bibi Ferreira, em Piaf (1983), espetáculo assinado por Flavio Rangel, diretor que também requisitou os figurinos de Kalma em Pippin (1974), Amadeus (1982), Freud – No Distante País Além da Alma (1984) e Cyrano de Bergerac (1985).
A paixão pelo trabalho foi transmitida para a filha, Rita Murtinho, também figurinista. Há pouco tempo, Kalma foi contemplada com um momento emocionante ao entregar o Prêmio Eletrobrás de melhor figurino para Rita (que, porém, não pode estar presente na ocasião) por sua concepção para a montagem do Grupo Armazém de Toda Nudez será Castigada (2005). “Mãe e filha não podem trabalhar juntas. Temos direções diferentes na carreira, mas ela é uma profissional competentíssima”, elogia Kalma, que vem mantendo inquebrantável paixão pelo teatro. Na televisão, por exemplo, fez figurinos para poucas novelas: Saramandaia (1976), a que mais gostou, O Astro (1977), Espelho Mágico (1977) e o começo de Dancin’ Days (1978).
Nos últimos anos, Kalma assinou os figurinos das montagens de Porcelana Fina (2006), A Ratoeira (2006) e Um Marido Ideal (2007). “A Ratoeira pede um figurino absolutamente realista. Os personagens são ingleses de classe-média numa cidade nevada. Entrei num brechó e pedi pesados casacos de inverno. Encontrei uns dez maravilhosos. O figurino de Tonico Pereira precisava exprimir que o personagem é um homem que se cuida. A juíza de Débora Duarte deveria aparecer de tailleur, mas percebi que ela ficaria bem de turbante, como, de fato, aconteceu. Os atores devem sempre ser respeitados”, destaca Kalma.
O Grupo Galpão retoma, na encenação de Os Gigantes da Montanha, a bem-sucedida parceria com Gabriel Villela, concretizada, anteriormente, em Romeu e Julieta e A Rua da Amargura. Também comprova a sua vocação para o teatro de rua, manifestada em espetáculos como Um Molière Imaginário, Till, a Saga de um Herói Torto e no citado Romeu e Julieta. E volta a eleger o teatro como tema depois de Um Trem chamado Desejo. Essa nova montagem do Galpão reúne, portanto, características da companhia mineira fundada há pouco mais de 30 anos. Pode ser vista, apenas até hoje, no Monumento aos Pracinhas, no Aterro do Flamengo.
É possível identificar o Galpão na escolha de uma dramaturgia como a de Os Gigantes da Montanha, de Luigi Pirandello – em tradução de Beti Rabetti, que já havia participado como dramaturgista desse texto em montagem de Moacyr Góes, no início da década de 90 –, distante do realismo (ainda que o grupo tenha transitado, recentemente, pela dramaturgia de Anton Tchekhov), e em toda a criação estética, que remete não só a outros trabalhos da companhia como à conhecida assinatura de Gabriel Villela: o detalhamento barroco presente nos figurinos (de Villela, Shicó do Mamulengo e José Rosa), a homenagem ao teatro evidenciada na cenografia (de Villela, Helvécio Izabel e Amanda Gomes), a evocação artesanal de um clima fantasmagórico na iluminação (de Chico Pelúcio e Wladimir Medeiros), o expressivo emprego da música a serviço da cena (arranjos, composição e preparação musical a cargo de Ernani Maletta).
Sobressai, nessa obra inacabada de Pirandello, o tributo prestado ao ator como aquele que materializa personagens (fantasmas) por meio de seu corpo. A dramaturgia, realizada por Eduardo Moreira e Gabriel Villela, procura aproximar a peça do público contemporâneo através de menções às dificuldades enfrentadas pelos artistas nos dias de hoje para fazer teatro e a figuras da vida política atual. Por mais oportunos que sejam esses cacos, soam algo gratuitos. Na direção, Gabriel Villela opta por marcações frontais, talvez devido à própria natureza da relação estabelecida entre atores e espectadores na rua e certamente por causa da circunstância de apresentação teatral contida no texto de Pirandello. O elenco do Galpão – Antonio Edson, Arildo de Barros, Beto Franco, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara, tendo Luiz Rocha e Regina Souza como convidados – atua com o encanto e a competência habituais. O aproveitamento de um espaço como o do Monumento aos Pracinhas para iniciativas artísticas é um feito a ser louvado e é pena que não ocorra com mais frequência.
Daniel Dantas e Zezé Polessa em Quem tem Medo de Virginia Woolf? (Foto: João Caldas)
A força da palavra e a presença do ator são os principais atrativos da montagem de Quem tem Medo de Virginia Woolf? No que diz respeito ao texto, Edward Albee descortina um painel humano arruinado por meio das figuras de Martha e George, casal que acumulou mágoas ao longo dos anos. Filha do reitor da universidade onde o marido leciona, Martha se ressente da postura algo subserviente de George e do fato dele não ter alçado cargo superior na carreira.
Se até determinado momento os personagens parecem ocupar posições de algoz e vítima, de dado instante em diante Albee sinaliza a cumplicidade existente entre ambos, tanto no que se refere ao afeto quanto à preservação de um jogo calcado em ilusão. O casal mais jovem, Nick (também professor na mesma universidade) e Mel, se mostra mais atado a convenções que desmoronam, porém, quando eles são confrontados com a interação passional entre Martha e George.
Escrita em 1962, Quem tem Medo de Virginia Woolf? coloca o público frente a um mundo masculino. Não por acaso, o autor estrutura as cenas a partir do convívio/embate entre os quatro personagens ou dos diálogos privados travados entre George e Nick, nos quais expõem suas verdadeiras motivações por trás da atuação social – mantida, especialmente, pelo segundo. Já a relação entre Martha e Mel não é priorizada: não permanecem sozinhas no palco e não se sabe muito acerca do que acontece entre elas quando se encontram fora de cena.
O desafio dos atores está, sobretudo, em transitar com credibilidade por uma variada gama de sentimentos. O espetáculo tem no rendimento do elenco a sua maior qualidade. Zezé Polessa empresta contundência à Martha sem aderir a excessos. Dosa com habilidade rancor e fragilidade, valendo destacar o início de sua emocionada descrição do filho. Daniel Dantas colore o texto de intenções, verticalizando a sua abordagem da obra. Erom Cordeiro desenha o personagem com nitidez. O ator reage com naturalidade (devidamente construída) às intervenções dos demais. Ana Kutner exagera um pouco numa certa debilidade de Mel.
O diretor Victor Garcia Peralta lança um olhar respeitoso sobre a peça, procurando valorizá-la ao invés de se aventurar por uma leitura autoral. De qualquer modo, há criações a serem ressaltadas, a exemplo da iluminação de Maneco Quinderé, que se torna mais aberta ao final, possivelmente para assinalar a revelação do jogo até então compartilhado por Martha e George. A cenografia de Gringo Cardia ambienta a moradia do casal mais velho através de dois espaços – a sala e uma área mais reservada, onde George se refugia. O cenário gira, realçando a configuração do relacionamento entre George e Martha – que, há anos, não sai do lugar. Não é propriamente uma ideia surpreendente, mas o problema reside na sugestão de área externa formada por árvores de madeira com casas em miniatura como copas, que não propõe uma nova perspectiva em relação à obra. A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves, apesar de empregada com discrição, reitera estados emocionais.
É interessante que uma encenação como a de Quem tem Medo de Virginia Woolf? esteja em cartaz no Teatro dos Quatro, na medida em que se afina – pelo menos, até certo ponto – com o padrão de produção que imperou nessa casa durante os 15 anos (entre 1978 e 1993) em que o espaço foi conduzido por Sergio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede. Se por um lado a montagem de Victor Garcia Peralta possui uma quantidade menor de atores do que a maioria dos espetáculos do Teatro dos Quatro no decorrer daquele período, por outro existem elementos de proximidade que cabem ser considerados, como a escolha de um texto que não ganha o palco brasileiro com tanta frequência, a escalação de atores renomados e o mencionado perfil de produção. Quem tem Medo de Virginia Woolf? evoca uma época em que o teatro de mercado ainda não havia cedido a apelos imediatistas para seduzir uma faixa de público mais ampla.
Luciana Fávero e Gustavo Falcão em Garagem, montagem da Cia. Epigenia (Foto: Guga Melgar)
O esforço em aproveitar espaços não-convencionais é bem-vindo, tanto devido à defasagem entre a quantidade de montagens e o reduzido número de teatros no Rio de Janeiro quanto à tentativa de não permanecer atado tão-somente às salas institucionalizadas. Esse novo espetáculo da Cia. Epigenia está em cartaz numa área da garagem do shopping Rio Sul que serve de ambientação ao texto assinado pelo próprio diretor Gustavo Paso, centrado no cotidiano de um personagem que ao perder todo o seu patrimônio passa a morar numa vaga da garagem de seu prédio.
Paso rompe com uma perspectiva tradicionalmente cenográfica. Ao invés de reconstituir a atmosfera da garagem numa sala de teatro, realiza a montagem numa garagem de fato – mesmo que os espaços não sejam idênticos. Afinal, a garagem do shopping evoca a de um prédio residencial. No entanto, ao se apropriar de uma área comercial, de livre trânsito (os espectadores assistem à encenação numa parte isolada, inacessível aos frequentadores do shopping), Gustavo Paso potencializa a discussão sobre a fronteira entre o público e o privado, delimitação tênue nos dias de hoje.
Em parceria com Teca Fichinski (também encarregada dos figurinos), Paso reproduz a movimentação incessante de uma garagem e ambienta determinadas cenas não só na vaga ocupada pelo morador como dentro de carros. Na iluminação, Paulo César Medeiros faz bom uso dos abajures incumbidos da luz natural da garagem, utilizando-os, vez por outra, para particularizar instantes mais intimistas e complementa com refletores localizados nas laterais e no fundo do espaço. As projeções se justificam apenas ocasionalmente como recurso.
Na dramaturgia, Gustavo Paso investe numa transição bem perceptível. De início, apresenta os diversos tipos – os moradores do prédio que gravitam ao redor do protagonista – e como cada um lida com a circunstância inusitada de ter um vizinho instalado na garagem. Aos poucos, o autor concentra o foco no personagem principal e transita da bem-humorada observação das mazelas do dia-a-dia para uma abordagem mais adensada. Paso não alcança equilíbrio nessa estrutura, especialmente na primeira metade, episódica demais. E há cenas que se alongam para além do tempo necessário, o que torna o espetáculo esgarçado.
O excesso de personagens, nem sempre muito desenvolvidos, limita, em certa medida, as possibilidades interpretativas dos atores. Independentemente do texto, porém, alguns se mostram imaturos em cena. No elenco, cabe destacar os trabalhos de Felipe Miguel (responsável pela trilha sonora com André Poyart), que se desdobra nos papéis do adolescente e do ladrão, revelando apreciável espontaneidade no primeiro, Luciana Fávero, apesar da passagem do embate com o ex-marido destoar do conjunto, e, principalmente, Gustavo Falcão, que reage com precisão às contracenas, e Luiz Carlos Miele, que dimensiona de forma concreta o drama do personagem através de uma fala repleta de imagens. As restrições não anulam o valor de Garagem, montagem que representa um avanço da Cia. Epigenia.
Marieta Severo interpreta Nawal Marwan na montagem de Incêndios (Foto: Leo Aversa)
Peça do libanês Wajdi Mouawad adaptada com sucesso para o cinema pelo canadense Denis Villeneuve, Incêndios guarda conexão com a tragédia grega. Ao apresentar a via-crúcis de uma mulher, Nawal Marwan – descortinada em flashback a partir do momento em que seus dois filhos, Jeanne e Simon, recebem duas cartas, nas quais a mãe, recentemente falecida, os incumbe de procurar pelo pai e por um outro irmão sobre quem até então não tinham notícia da existência –, o autor evidencia ligação com características da tragédia, como a impossibilidade do protagonista ter acesso à verdade integral (pelo menos, durante boa parte do tempo), o conflito insolúvel entre a determinação individual e a lei coletiva e a inflexibilidade na maneira como age para alcançar seus objetivos. Como outras personagens trágicas, Nawal não se lamenta diante de todo o sofrimento com o qual se depara. Ao contrário, ela se mostra seca, direta, decidida.
Paralelamente ao elo com a contenção da tragédia clássica, Mouawad confronta o espectador com desdobramentos um tanto carregados (excessivos, nesse sentido) em relação à história que conta. A revelação dos fatos relativos à vida de Nawal soa algo novelesca. Contudo, o autor contrabalança a sucessão de acontecimentos trágicos com uma abordagem que não envereda por um tom melodramático. Aderbal Freire-Filho mantém esse equilíbrio na montagem em cartaz no Teatro Poeira. Se por um lado há certas opções questionáveis – como a inclusão do público (nos primeiros minutos, a luz permanece acesa sobre a plateia), que poderia ser mais conceituada –, por outro Aderbal não cede a exageros na transposição da peça para o palco.
É pela qualidade da encenação que essa versão de Incêndios se impõe com mais destaque. Fernando Mello da Costa criou uma estrutura cenográfica que confere apreciável austeridade e, ao mesmo tempo, noção de síntese. Acertadamente, não localiza a ação e tende a estimular a imaginação do espectador. Talvez, inclusive, os atores pudessem trabalhar sem o auxílio dos objetos, utilizados ao longo do espetáculo. A atmosfera imponente é realçada pela bela iluminação de Luiz Paulo Nenen. Os figurinos de Antônio Medeiros foram concebidos visando à coerência cromática. E a rascante partitura sonora de Tato Taborda lança proposições sobre a cena, ao invés de tão-somente reiterar o texto.
As maiores dificuldades da montagem despontam no rendimento dos atores. Apenas parte do elenco projeta a humanidade dos personagens de Mouawad. Marieta Severo – que transitou pelo terreno da tragédia grega em Antígona, de Sófocles, na encenação de Moacyr Góes – evita o derramamento emocional nesse texto contemporâneo, mas sem, com isso, adotar uma interpretação fria, expositiva, para Nawal. A atriz está especialmente bem na passagem final, no modo como se refere ao filho quando já sabe de toda a verdade sobre ele. Kelzy Ecard, como Sawda, comprova a extensão de seus recursos na cena em que camufla o rosto com intensidade passional. E Marcio Vito, como Hermile Lebel, injeta humor e afetividade a um personagem que possui uma função mais concreta dentro da trama.
Gero Camilo em A Casa Amarela, encenação apresentada no Festival de Londrina (Foto: Milton Dória)
A Casa Amarela não evidencia um desejo de biografar Van Gogh. Ao contrário, o monólogo de Gero Camilo, apresentado recentemente no Festival Internacional de Londrina (Filo), coloca o público diante de sua lógica, de sua estrutura de funcionamento, caótica. A proposital dispersão é um pouco minimizada, mas não domesticada, a partir do momento em que o texto (de autoria do próprio Camilo) se refere mais diretamente à relação entre Van Gogh e Paul Gaughin.
Na dramaturgia, Gero Camilo promove uma fusão de tempos, mas parte da contemporaneidade. Na apresentação realizada durante o Filo, referiu-se especificamente à cidade de Londrina. Evocou artistas importantes em sua carreira (como os atores Marat Descartes e Paula Cohen, que participaram, respectivamente, de Aldeotas e Cleide, Eló e as Pêras, textos de Camilo que formam uma trilogia com A Casa Amarela). E presentificou a figura emblemática da atriz Cacilda Becker. Gero Camilo imprime uma entonação concreta, que aproxima o público de uma dramaturgia não exatamente objetiva. Procura estimular a imaginação da plateia, a exemplo do instante em que “pinta” no ar a imagem de uma espectadora.
A encenação, dirigida por Marcia Abujamra (que já assinou outro monólogo sobre Van Gogh, escorado na correspondência entre o pintor e o irmão, Theo, com Elias Andreato e uma performance com Pascoal da Conceição a partir de Van Gogh, o Suicidado da Sociedade, de Antonin Artaud) valoriza mais a ausência, a supressão, perspectiva materializada na cenografia (de Karina Ades), composta por molduras sem telas. Mais do que qualquer pintura, Van Gogh é a obra. A Casa Amarela traz à tona a perspectiva do artista, do corpo como obra, sintetizada ao final, quando o ator passa tinta na roupa e nas pernas. O Van Gogh que desponta em cena é um indivíduo inacabado, em (eterno) processo. Não por acaso, as imagens de panos manchados de tinta realçam a questão do esboço, do rascunho, da obra em construção.
Trabalho que pode ser visto pelo espectador carioca no último dia 24 de setembro, dentro do projeto Solos de Teatro realizado no Teatro Sesc Ginástico, A Casa Amarela resulta do entrosamento de criações: além da cenografia, a iluminação (de Karine Spuri), que investe em tonalidades intensas sem perder de vista a atmosfera intimista, crepuscular, o figurino (de Paula Cohen), borrado de tinta, e a trilha sonora (de Eugenio La Salvia e Rubi), mais rascante à medida que Van Gogh perde o controle. Os poucos objetos cênicos pareceram um tanto soltos na vasta extensão do palco do Teatro Marista, em Londrina, mas esse dado não chegou a se constituir como problema.
Fernando Bohrer e Livia Paiva na montagem de Elefante
A discussão referente ao contraponto entre o desejo de apreender a “eterna juventude” e a aceitação da passagem do tempo é constante nos dias de hoje. Partindo de argumento de Igor Angelkorte (também diretor da encenação e integrante do elenco), Elefante, montagem da Probástica Companhia de Teatro, traz à tona esse “tema”, mas sem lançar um olhar propriamente novo.
Walter Daguerre, autor do texto, incorre num lugar-comum e numa abordagem algo piegas ao louvar o envelhecimento natural – associado à disposição a viver intensamente e à amadurecida percepção da morte – em detrimento dos mecanismos artificiais empregados com o intuito de perpetuar a existência – precaução que tende a levar ao aprisionamento num cotidiano cristalizado. As eventuais citações (a ilha para onde vai o protagonista à cata de experiências autênticas, verdadeiras, tem o sugestivo nome de Sêneca) e a paulatina revelação da situação-base não tornam a peça original. O dramaturgo se vale de recursos conhecidos, como o de inserir uma pequena – e representativa – história que, não por acaso, intitula o texto.
O espetáculo, em cartaz no Sesc Copacabana, é emoldurado por instigante concepção estética, cabendo destacar a cenografia de André Sanches, que conecta a questão em pauta com o universo primitivo, e a iluminação de Renato Machado, que, ao diminuir gradativamente a luz até a penumbra, faz com que o público experimente as limitações do personagem envelhecido. No elenco, Chandelly Braz (revezando no papel com Julia Lund) evidencia propriedade no modo de dizer o texto da mãe, estabelecendo contracena fluente. Pedro Nercessian (revezando com Angelkorte) administra bastante bem o entusiasmo juvenil do personagem sem reduzi-lo à linearidade. Fernando Bohrer procura equilibrar a permanência do fascínio diante da vida com a fragilidade física. Samuel Toledo busca a contenção e a autoridade próprias do personagem. Lívia Paiva se esforça para imprimir certo grau de pragmatismo, mas é prejudicada pela ausência de uma voz mais potente.
Apesar das restrições, Elefante representa a continuidade do trabalho da Probástica – que apresentou bom resultado em (Des)conhecidos, que contava com Angelkorte, Braz e Toledo – e da atividade de um dramaturgo promissor, Daguerre.
Cena de Solo con Esto, montagem da Cia. Altoteatro, da Bolívia (Foto: Milton Dória)
O Festival Internacional de Londrina (Filo), que acaba de encerrar a sua 45ª edição, é uma empreitada peculiar em relação a outros festivais de teatro brasileiros. Em primeiro lugar, pela sintonia de Nitis Jacon – fundadora do Filo no turbulento ano de 1968 e hoje presidente de honra do festival, dirigido por Luiz Bertipaglia – com a cena internacional, especialmente com o Odin Teatret, companhia conduzida por Eugenio Barba, que já desembarcou em Londrina com espetáculos como Sonho de Andersen e Salt, monólogo de Roberta Carreri.
Além disso, o Filo transcende a esfera da apresentação de montagens nacionais e estrangeiras por meio dos Projetos de Maio, trabalhos artístico-sociais realizados com deficientes físicos (cegos, surdos), presidiários e pessoas da terceira idade. Talvez a iniciativa mais longeva nesse sentido seja a da Cia. de Theatro Fase 3, desenvolvida por João Henrique Bernardi com um grupo de idosos. Nessa última edição, Bernardi apresentou o solo Yolanda Calaboca e em edições anteriores o público já assistiu a trabalhos como Nos Quintais de Quintana, De todas as Mulheres que eu fui essa é a que eu mais Amo e, possivelmente o mais impactante deles, A Última Carta de Amor do Século XX.
Não se pode perder de vista o espaço aberto pelo festival às produções locais. Polo cultural efervescente nas décadas de 80 e 90, Londrina já teve grupos renomados como o Proteu (dirigido por Nitis Jacon) e o Delta. Foi na cidade do interior do Paraná que despontou a Cia. Armazém, capitaneada por Paulo de Moraes, radicada no Rio de Janeiro desde meados dos anos 90. Hoje, companhias londrinenses continuam se apresentando no Filo – ao longo do tempo, a Cia. Boca de Baco mostrou trabalhos como Balada de um Poema, Último Inverno e Navalha na Carne, e o Ballet de Londrina também costuma ser lembrado na grade. Festival caloroso, o Filo costuma ser emoldurado pelas noites no Cabaré, ponto de encontro que recebe shows de artistas renomados (como Gal Costa, esse ano).
Carmen Mattos em Yolanda Calaboca: trabalho continuado sob a condução de João Henrique Bernardi (Foto: Milton Dória)
Nessa 45ª edição, a programação nacional se destacou através de espetáculos representativos de companhias como a Quatroloscinco (Outro Lado), Balagan (Recusa), Senhas (Circo Negro), Latão (Sociedade Mortuária – Uma Peça Camponesa), Club Noir (Peep Classic Ésquilo), Sobrevento (São Manuel Bueno, Mártir), Pia Fraus (Bichos do Brasil e Filhotes da Amazônia), Lume (Os Bem-Intencionados), Massa (Capivara na Luz Trava), Magiluth (Viúva porém Honesta) e Cemitério de Automóveis (Mulheres). Como se pode perceber, trata-se de um festival que valoriza o teatro de grupo, ainda que iniciativas de atores não sejam desprezadas, caso da inclusão de A Casa Amarela, monólogo de Gero Camillo, na programação. E as atrações internacionais, mesmo que em plano mais discreto, também marcaram presença, a julgar pelo combativo Solo com Esto, da Cia. Altoteatro, da Bolívia, Matéria Prima, do La Tristura, da Espanha, e Viagem a Izu, de François Kahn, da França, que, inclusive, será apresentado entre 27 e 30 de setembro no jardim do Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro.
Desde o início dos anos 2000, o Filo recebeu muitos espetáculos de impacto. O Theatre des Bouffes du Nord, de Peter Brook, apostou na simplicidade em Fragments, reunião de peças curtas de Samuel Beckett. O Volksbühne trouxe A Luta do Negro e dos Cães, de Bernard-Marie Koltès. A Compagnia Laboratorio di Pontedera, de Roberto Bacci, surpreendeu com uma apropriação de Hamlet intitulada Amleto. O teatro argentino foi bem representado tanto pela Cia. Timbre 4 (com La Omisión de la Família Coleman) quanto por montagens de Daniel Veronese (La Noche canta sus Canciones e a excepcional La Forma que se Despliega). A Cia. do Chapitô, de Portugal, encantou o público com sua versão de Dom Quixote, assim como o grupo peruano Hugo y Inès, cujos integrantes propõem formas a partir de recortes de seus corpos em Cuentos Pequeños. A Cia. Philippe Genty foi representada por La Fin des Terres. Entre as maiores surpresas, uma versão violenta de Bambi, a cargo do grupo inglês Green Ginger.
A qualidade na escolha dos espetáculos brasileiros não foi menor. Como seria de se esperar, a Cia. Armazém retornou seguidas vezes ao Filo com trabalhos como Pessoas Invisíveis, Inveja dos Anjos e Toda Nudez será Castigada. A Tato Criação Cênica, de Curitiba, trouxe os singelos Tropeço e E se… Da mesma cidade, a Companhia Brasileira de Teatro, dirigida por Marcio Abreu, despontou com Volta ao Dia… e o Ateliê de Criação Teatral, projeto de Luiz Melo, com Cãocoisa e a Coisa Homem. De Blumenau, uma companhia com uma pesquisa consistente relacionada ao treinamento de Jerzy Grotowski: a Carona, que surpreendeu com Os Camaradas. A Casa Laboratório, conduzida por Cacá Carvalho como filial brasileira da Fondazione Pontedera Teatro, esteve com Os Figurantes. O Lume desembarcou com Café com Queijo e Shi-Zen, 7 Cuias. O Espanca! fez sucesso com Por Elise. A Amok deu provas de seu rigor com Cartas de Rodez e Macbeth. A Cia. dos Atores colheu elogios pela desconstrução realizada em Ensaio.Hamlet. A Cia. Teatro Autônomo enveredou pelo minimalismo das interpretações em Deve haver algum Sentido em mim que Basta. O Grupo XIX incluiu o público na encenação de Hygiene, procedimento também empregado, ainda que de modo diverso, por Dani Lima em Aquilo de que somos Feitos. E a Cia. Livre deu boas provas de suas instigantes investigações em Arena Conta Danton e VemVai – O Caminho dos Mortos.