Comédia com solenidade
Adalgisa Rosa em O Caixeiro da Taverna, espetáculo apresentado no Theatro Municipal nos últimos dias 11 e 12 (Foto: Daniel Ebendinger)
Na dramaturgia brasileira, Martins Pena é considerado o pioneiro da comédia de costumes. Esse gênero, que atravessa o teatro nacional (com legítimos representantes entre os autores de hoje), tem sua semente na Comédia Antiga praticada por Aristófanes durante o período da democracia grega, quando era possível falar sem rodeios sobre os assuntos ligados à vida na cidade e com linguajar popular. Pena abrasileirou o gênero por meio de comédias nas quais radiografou, pela via do humor, o cotidiano no Rio de Janeiro nas décadas de 1830 e 1840.
O Caixeiro da Taverna é uma peça que pertence à produção de uma primeira geração de autores de comédias de costumes, que desenvolveram textos com histórias marcadas por uma graça física traduzida em correrias, quiproquós, disfarces, trocas de identidade. Pena e outros dramaturgos que vieram a seguir conciliaram, dessa forma, uma ambição “documental” no que se refere aos hábitos de um Rio de Janeiro cada vez mais cosmopolita com o objetivo maior de divertir o espectador.
Nos últimos dias 11 e 12, O Caixeiro da Taverna foi apresentado, em formato de ópera, no Theatro Municipal, sob a regência de Guilherme Bernstein e direção cênica de Daniel Salgado. Para tecer observações técnicas sobre a linguagem da ópera é necessário um apuro específico, distinto das apreciações desse blog voltado, em boa parte, para a crítica teatral. Por isso, as observações, dentro desse campo, se restringem basicamente à percepção de um interessante contraste entre certa solenidade da ópera e a descontração da comédia, centrada, com frequência, no convívio das ruas e em seus tipos populares.
Apesar da mencionada conexão entre a comédia e o espaço da rua, O Caixeiro da Taverna se passa no ambiente fechado do título. No espetáculo chama atenção a minuciosa concepção da taverna e a sugestão do meio externo, do lado de fora, simbolizado por um poste (cenografia de Francisco Ferreira). É dentro da taverna que os personagens estabelecem vínculos e embates, manipulados por Manuel, que, mesmo já sendo casado com Deolinda, planeja se unir à Angélica, dona da taverna, para se tornar sócio dela – farsa devidamente explicada ao público através de solilóquios e diálogos. Em que pesem as iniciativas pouco éticas de seu protagonista, que não mede esforços para conquistar status, Pena optou por um desfecho condescendente para ele. A consciência de seus erros, de sua falha moral, o redime.
Cabe destacar o modo como as mulheres são retratadas na peça. Ainda que sejam enganadas por Manuel e que a figura masculina surja associada a uma espécie de garantia de segurança (a preocupação de Angélica em ter um sócio), elas evidenciam perfil ativo, sem postura meramente subserviente em relação aos homens. No espetáculo o jogo de oposição entre Angélica e Deolinda é realçado nos figurinos (de Renan Garcia). Enquanto a primeira ganha caracterização caricata, a segunda aparece vestida de acordo com o padrão tradicional da mocinha, da ingênua, mesmo que sua atitude diante de Manuel desconstrua, em algum grau, esse desenho.
Além de proporcionar a interação entre teatro e ópera – decorrente da sintonia entre o elenco (composto por Homero Velho, Carolina Morel, Adalgisa Rosa, Murilo Neves, Geilson Santos e Ludoviko Vianna) e os músicos (Felipe Arcanjo, Vicente Alexim, Márcio Zen, Dhyan Tofolli, Helena Camargo, Dalibor Svab, Pedro Amaral, Leonardo Fantini, Diego Paz, Lígia Fernandes, Pablo Uzeda, Janaína Salles e José Luiz de Souza), estes últimos dispostos numa das laterais do palco –, a realização de O Caixeiro da Taverna contribui para a difusão da obra de Martins Pena, que, como muitos autores brasileiros, vem sendo lembrado com constância reduzida.