Cena de Nossa Cidade, montagem de Antunes Filho para a peça de Thornton Wilder (Foto: Emidio Luisi)
Antunes Filho é um encenador que não se limita a destacar um dado enredo por meio dos textos, teatrais ou literários, que decide montar. Não é diferente em Nossa Cidade, de Thornton Wilder, espetáculo que teve passagem meteórica pelo Rio de Janeiro (pouquíssimas apresentações no Sesc Ginástico). Logo no início, quando o narrador/diretor de cena desponta como homem confinado em cadeira de rodas em decorrência da guerra, Antunes sinaliza que aborda a peça a partir da contemporaneidade.
Obviamente atravessado por seu tempo, Antunes traça uma panorâmica da história americana através do texto de Wilder. Articula passado e presente, cidade e país, trajetórias individuais e rumos da nação. É como se o diretor se descolasse, em certa medida, da peça para olhá-la em perspectiva, como faz Emily ao reviver, depois de morta, um dia de sua vida e perguntar: “pode algum ser humano compreender a vida enquanto a vive?”
As operações propostas por Antunes acerca do material original são questionáveis. Evidenciam, contudo, inquietação por parte do diretor, que procura presentificar Nossa Cidade. Grover´s Corners, a pequena cidade onde a história se desenrola durante as duas primeiras décadas do século XX, parece cristalizada, imune às transformações do mundo, mas, apesar do ritmo quase estagnado, o tempo passa e traz mudanças. Impotentes, os personagens são irremediavelmente afetados pelos acontecimentos, seja no que se refere à instância privada (a morte de Emily no parto), seja à esfera pública (a morte de George durante a Primeira Guerra Mundial).
Se o projeto revela coerência em relação à carreira de Antunes Filho no que diz respeito às incisões dramatúrgicas, a escolha de uma peça como Nossa Cidade favorece outra vertente do teatro do diretor: o despojamento estético. Nos últimos anos, Antunes vem concentrando as atenções em torno do trabalho do ator, a julgar pelas montagens das tragédias gregas e, em especial, pelas cenas que compõem Prêt-à-Porter – estas apresentadas em meio à intencional escassez de recursos das salas de ensaio, assim como a montagem de Falecida Vapt-Vupt. Nossa Cidade não conta com criações visuais do porte dos troncos de árvores sem copas de Vereda da Salvação ou dos aquários de Gilgamesh, espetáculos que, realizados durante a parceria entre Antunes e o cenógrafo J.C. Serroni, porém, não foram norteados por concepções estéticas meramente exuberantes. Em todo caso, essa nova encenação segue o caminho da economia.
É uma montagem que concilia sobriedade (na contenção das marcações em cena de configuração algo expositiva, no controle técnico dos atores que dosam a intensidade de suas presenças) com singeleza (a exemplo das pequenas luzes que irrompem no céu enquanto Emily dança com o vestido). Os elementos que integram a cena (mesas e cadeiras) são notadamente simples, comprovando determinação do diretor em não preencher o palco com objetos supérfluos. O cenário (direção de arte de Hideki Matsuka) realça o desejo de assinalar o teatral, ao invés de ocultá-lo. No fundo da cena há uma cortina preta, como a de um teatro, e por trás dela surge um painel que evoca, por meio de cores fortes próprias a um desenho infantil, a pequena cidade. Este painel estilizado é exposto apenas através de fragmentos – recusa à inteireza que estimula a imaginação do espectador e reafirma a disposição em não mostrar além do necessário.
O registro buscado junto aos atores também não procura esconder a construção. Atores que fazem personagens distantes de suas faixas etárias não camuflam contrastes diante do público. Estágio possivelmente mais delicado do método interpretativo formulado por Antunes Filho, a voz sobressai nas atuações, como se não houvesse muita preocupação em torná-la orgânica. Entretanto, a sensação de estranheza é minimizada ao longo da apresentação.
Seja como for, Antunes conduz um conjunto harmônico, o que não impede de elogiar o trabalho de Leonardo Ventura como o diretor de cena. Em alguns momentos, os atores lidam com objetos imaginários e Antunes destaca, através de procedimentos como este, o acontecimento teatral em detrimento de uma relação ilusionista com o público. Se a dramaturgia já promove um entrelaçamento entre tempos diversos, entre vivos e mortos, o diretor se afasta ainda mais das balizas impostas pelo realismo.
Nossa Cidade é uma montagem seca, austera, que, na contramão da espetaculosidade, propõe uma utilização discreta de seus recursos – além da mencionada cenografia, os figurinos (de Camila Nuñez), em tons neutros, a iluminação suave (de Edson FM e Elton Ramos) e a trilha sonora (de Raul Teixeira) em apreciável tom menor.