Distâncias em jogo
Emanuel Aragão em Hamlet – Processo de Revelação, trabalho dos irmãos Adriano e Fernando Guimarães (Foto: Ismael Monticelli)
Hamlet – Processo de Revelação, nova empreitada dos irmãos Adriano e Fernando Guimarães atualmente em cartaz no Teatro II do Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), parece ter sido concebida a partir de determinadas tensões, a começar pela contida no próprio subtítulo. O caráter definitivo insinuado pela palavra “revelação” é minimizado pelo termo “processo”, que sugere falta de conclusão, algo em transformação. O espectador assiste ao processo de revelação, ao invés de se deparar com a revelação em si, desse trabalho que não consiste numa montagem de Hamlet, a célebre peça de William Shakespeare, e sim num desvendamento de seus mistérios, o que não significa a proposição de uma interpretação única.
Em Hamlet, o teatro é visto como instrumento de revelação. É por meio dele que o protagonista descortina a verdade sobre o assassinato do pai pelo tio. No espetáculo do Coletivo Irmãos Guimarães, Emanuel Aragão empreende um ato de revelação ao trazer à tona fatos de sua vida (não por acaso, o ator assina a dramaturgia). Por um lado, a perda do pai é elemento de conexão entre ator e personagem; por outro, Emanuel Aragão se coloca como narrador, portando um “lugar” distanciado, mas não obrigatoriamente descomprometido.
Existe uma proposta de diminuição de distâncias – entre ator e personagem, entre espectador e encenação. Emanuel Aragão se aproxima da obra de Shakespeare sem reverência. Narra a jornada de Hamlet até o protagonista matar Polônio. Nesse instante particularmente desestabilizador para Hamlet, o ator passa a quebrar blocos de tijolos com uma marreta. Depois volta a contar a história de Shakespeare, afetado, porém, pelo grande esforço físico. No que diz respeito à fronteira entre espectador e espetáculo, uma luz suave repousa sobre o espaço do público ao longo da apresentação, marcando oposição ao habitual contraste entre palco aceso / plateia apagada. Os espectadores são avisados de que podem exercer participação durante a sessão (mas a interatividade direta não é estimulada), prática que, inclusive, tende a alterar significativamente a duração da encenação.
Emanuel Aragão, contudo, permanece ciente de que a anulação da hierarquia entre ator e espectador não é possível, já que ambos se encontram em planos e circunstâncias distintas. Talvez a preocupação em abordar Hamlet com coloquialidade, em linguagem contemporânea, de modo a torná-lo familiar à plateia, sinalize certa postura de superioridade em relação ao público, evidenciada na intenção em fazer com que tudo soe acessível, quase didático, sem as barreiras que uma escrita antes popular, hoje clássica, demarcaria. Em todo caso, vale mencionar que o tom informal adotado aqui visa a uma dissecação da obra e não a uma encenação calcada em artificial transposição de linguagem empregada como concessão para atingir uma faixa mais ampla de público.
Hamlet – Processo de Revelação comprova a fidelidade dos Irmãos Guimarães às diretrizes de seu teatro, principalmente no que se refere às apropriações personalizadas de obras (agora Shakespeare, com frequência Samuel Beckett) desconstruídas, como os tijolos que, agrupados em amontoados, são quebrados com contundência pelo ator, cena valorizada pela iluminação de Dalton Camargos e Sarah Salgado. Mas ao mesmo tempo em que priorizam recortes (nesse caso, o solilóquio “ser ou não ser”), os encenadores sublinham a necessidade de conhecer a peça de maneira vertical, na totalidade. A superfície que lembra cimento, mais um elemento da cenografia, a cargo dos encenadores e de Ismael Monticelli, remete, em dado momento, ao abismo, qualidade importante nos espetáculos dos Irmãos Guimarães, que se ariscam constantemente.