Musical contagiante com padrão de acabamento
Nicola Lama como Guido Contini em Nine, muiscal que encerrou temporada no último domingo (Foto: Marcos Mesquita)
Como o subtítulo indica, Nine tem ligação com o cinema de Federico Fellini – mais exatamente, com o filme Oito e Meio (1963), centrado no diretor Guido, que, em crise criativa, se interna num spa. As pressões do cotidiano suscitam evocação do passado (o elo com a mãe, as lembranças de infância, a opressão religiosa) num misto de realidade e delírio. A jornada de Guido foi adaptada para o formato de musical e desembarcou na Broadway no início dos anos1980, com música e letras de Maury Yeston e texto de Arthur Kopit. Na primeira década do século XXI, Rob Marshal assinou uma nova produção cinematográfica.
Em relação ao filme de Fellini, Nine – que chegou aos palcos brasileiros em versão da dupla Charles Möeller/Claudio Botelho, que saiu de cartaz no último domingo no Teatro Clara Nunes – soa mais condensado e, paradoxalmente, mais esgarçado. Em Oito e Meio, o enredo é menos importante que o universo singular descortinado diante do espectador. Já em Nine, os personagens e a situação-base são mais valorizados. Por isso, prevalece a sensação de que há pouca história – voltada para os vínculos turbulentos entre Guido e as diversas mulheres que o cercam, entre elas, a esposa, a amante, a mãe, a produtora, a atriz/musa, a crítica – para preencher duas horas de duração.
No entanto, a questão determinante transparece em Nine: a conexão entre vida e arte, que moveu Fellini ao realizar Oito e Meio. Sem ideia para um próximo projeto, Guido busca inspiração na própria vida, talvez ciente da impossibilidade de criar divorciado das experiências pessoais. Autocentrado, ele não só fala ininterruptamente sobre si como não enxerga os que estão ao seu redor, a exemplo da marcação em que dialoga com Claudia, mas sem olhar para ela, de frente para a plateia.
Nine reúne alguns elementos frequentes nos espetáculos de Charles Möeller (direção) e Claudio Botelho (versão brasileira / supervisão musical), como a influência do cinema e a habilidade em trabalhar com objetos reduzidos. Ainda que a cenografia de Rogério Falcão seja composta por uma estrutura de escada, a simplicidade e a preocupação com o detalhamento se mantêm, a julgar, no primeiro caso, pelo aproveitamento de cadeiras no centro do palco e, no segundo, pelas lâmpadas colocadas embaixo dos degraus. A inventividade fica especialmente evidenciada nos figurinos de Lino Villaventura, que priorizam o preto em tecidos de texturas distintas sem, porém, deixar de quebrar com o monocromático por meio de criações como os casacos da crítica e da atriz/musa e o vestido vermelho da amante. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros segue a tendência de contrastar a neutralidade do cenário com tonalidades intensas, não se limitando, contudo, a um mero desfile esfuziante de cores. A coreografia de Folies Bergères é a melhor entre as concebidas por Alonso Barros.
O bom resultado decorre do padrão de acabamento, marcante nos espetáculos de Möeller/Botelho, e da acertada condução do elenco. O Guido Contini de Nicola Lama permanece à beira de um ataque de nervos ao longo da sessão, mas o ator encontra variações que impedem o nivelamento do personagem, tornando-o crível. Lama se mostra bastante confortável em cena. Totia Meirelles imprime autoridade como a produtora Lili La Fleur, apresenta uma orgânica construção de sotaque e confirma suas qualidades interpretativas e técnicas, principalmente na cena do Folies Bergères. Malu Rodrigues se destaca pela belíssima voz e mescla malícia e infantilidade, características de Carla, a amante, mas deve tomar cuidado para não repetir uma linha de sensualidade empregada em trabalhos anteriores. Carol Castro está correta como Luisa Contini, a esposa, assim como Karen Junqueira, em menor participação, como Claudia, a atriz/musa. Sonia Clara empresta seu porte à mãe de Guido, se vale de sua expressiva máscara facial e realça o humor cortante da personagem. Myra Ruiz, em que pese sua potência vocal, compõe Sarraghina por meio de uma feminilidade estereotipada. Leticia Birkheuer não dota Stephanie, a crítica, de traços mais reconhecíveis e não alcança as exigências técnicas no número Cinema Italiano, no começo do segundo ato. Luiz Felipe Mello encanta o público como Guidinho, em particular na coreografia de Ti Voglio Bene / Be Italian. Ágata Matos, Camilla Marotti, Laís Lenci, Lola Fanucchi e Priscila Esteves desempenham com competência os pequenos papéis.