Cena atravessada por contrastes poderosos
Cena de Genealogia, primeira parte de Opus nº7, espetáculo apresentado na Mitsp (Foto: Ligia Jardim)
Atores jogam tinta preta sobre paredes brancas e transformam os borrões em desenhos que sugerem, com precisão, judeus ortodoxos. Em torno de óculos, pintam crianças de mãos dadas. Opus nº7 lembra que o teatro pode ser feito com pouco, que a limitação é a grandeza dessa arte. O encenador Dmitry Krymov se vale de sua experiência nos terrenos da cenografia e da pintura, mas não de modo exibicionista.
Nas imagens desenhadas não há rostos. É natural. Krymov fala sobre pessoas perseguidas – na primeira parte, intitulada Genealogia, os judeus, na segunda, denominada Shostakovich, o compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975) –, manipuladas como fantoches, anuladas ou exterminadas pelo regime em vigor.
Krymov oculta os rostos, mas não o restante do corpo. Mãos brotam em fraques pendurados, fragmentos de corpos surgem de dentro da parede. Há algo de sinistro nas imagens apresentadas pelo diretor no primeiro ato: as paredes são constantemente furadas, rasgadas, quebradas. Objetos que remetem ao Holocausto, como sapatos de crianças e óculos, são lançados. Mas, para além das associações objetivas, fica a impressão de que o interno subitamente irrompe como uma força que não pode mais ser contida. O sinistro também vem à tona em imagens poderosas, como a dos pianos enferrujados e meio arrebentados que se chocam de modo agressivo no segundo ato.
Ainda que não apareçam nos desenhos, muitos rostos atravessam a encenação de Opus nº7, tanto nas projeções de retratos quanto na relação de fotografias em papel. Em dado momento, as fotos são identificadas e breves histórias sobre aqueles indivíduos, rapidamente contadas. Krymov parece chamar atenção para uma noção de patrimônio, para a importância de uma visão de mundo que engloba o passado – e a memória enquanto apropriação personalizada dos fatos – e não uma limitada percepção do presente como instância recortada no tempo. Em determinados instantes, o que está congelado nas fotos – nesse sentido, atado ao passado – ganha vida – ou atualidade –, a exemplo das passagens em que elementos de fotos projetadas (uma bola, um carrinho de bebê) “pulam” para dentro da cena. A perspectiva histórica é realçada pela trilha sonora, marcada por sonoridade que se aproxima do sagrado, do ancestral.
No primeiro ato, o público, disposto de frente para o palco, se depara mais com um grupo do que propriamente com indivíduos; no segundo, quando retorna à sala e se acomoda ao redor da cena, o espectador constata a fragilidade do indivíduo, oprimido por impositivas regras oficiais, diante do autoritarismo do sistema. Se em Genealogia Krymov aborda admiravelmente o teatro como síntese, em Shostakovich preenche o espaço com elementos em escala gigantesca, dando vazão a certos contrastes – entre a dimensão inumana e o indivíduo impotente, entre a trilha algo grandiloquente e os momentos de silêncio potencializados por atores em registro mais contido, austero, hierático. Em Opus nº7, a plateia é confrontada com sons de um mundo aterrorizante, tanto no que se refere aos tiros, às bombas e às sirenes quanto aos passos de uma figura ameaçadora, mais do que suficientes para colocar os personagens em estado de suspensão.
Texto publicado no blog www.mitsp.org e no site www.teatrojornal.com.br