Flagrante da incomunicabilidade
Michel Blois. Leonardo Franco, Isabel Cavalcanti e Mabel Cezar em Adorável Garoto (Foto: Paprica Fotografia)
Em diversos momentos de Adorável Garoto, texto de Nicky Silver, os personagens parecem não se comunicar: como não se escutam não respondem ao que foi perguntado; ou respondem com considerável atraso em meio a diálogos entrecruzados que propositadamente dão a impressão de uma estrutura caótica. Os instantes em que os personagens expõem com maior nitidez aquilo que sentem são os narrativos, os pequenos solos contidos no texto de Silver.
Na ciranda concebida por Silver (Adorável Garoto foi traduzido por Roberto Bürguel e adaptado por Gustavo Klein) há um casal, Nan e Harry, de relação desgastada, que enveredou pelo terreno da agressão; uma amante, Delia, que, mergulhada em suas próprias carências, tem dificuldade de perceber a situação na qual está envolvida; uma psicanalista, Elizabeth, que se coloca como uma espécie de olhar de fora, ainda que também enredada em conflitos pessoais; e um filho, Isaac, que retorna para casa trazendo uma revelação desestabilizadora que se traduz um misto de sentimento genuíno com evidente barreira ética. O autor de Pterodátilos volta a confrontar a plateia com trama familiar, na qual rasgos de humanidade não são suficientes para contrabalançar vínculos arruinados ao longo do tempo.
Maria Maya, diretora da montagem que encerra temporada no Mezanino do Espaço Sesc no próximo domingo, realça a incomunicabilidade dos personagens através de marcações, a exemplo das realizadas ao redor da casa. A psicanalista surge em meio ao público, como figura externa (condição reforçada por um ou outro comentário que ela faz sobre a peça em si). Desvinculada do meio familiar – em que pese, contudo, mencionado contato no passado –, Elizabeth vai se inserindo aos poucos, mas sem chegar a interferir decisivamente.
A cenografia de Ronald Teixeira – composta pela moldura da casa e por um jardim de folhas secas – permite que o espectador tenha acesso ao interior da moradia e, consequentemente, ao funcionamento da família. A iluminação de Adriana Ortiz é crepuscular, valorizando o meio tom, mais o insinuado que o frisado. Os atores fornecem desenhos claros dos personagens. Michel Blois, apesar de uma composição corporal que sugere (sem muita necessidade) estranhamento, constrói Isaac com contenção e sutileza. Isabel Cavalcanti potencializa o descontrole e a insatisfação de Nan e se sai especialmente bem na primeira longa passagem com Harry. Leonardo Franco imprime adequada concretude a Harry. Raquel Rocha projeta a ingenuidade e falta de visão de Délia. Mabel Cezar interpreta a contundente e, ao mesmo tempo, defendida Elizabeth de maneira algo linear.