Contato ampliado com Nelson
Gláucio Gomes, Ingrid Conte e Anderson Cunha em À Sombra das Chuteiras Imortais (Foto: Flávia Fafiães)
Ao longo de sua trajetória à frente da companhia Quem são esses Caras?, Henrique Tavares vem acumulando as funções de diretor e dramaturgo ao encenar seus textos – Barbara não lhe Adora, Telecatch, Cine-Teatro Drive-in, Cidade Vampira (escrito em parceria com Fausto Fawcett) e Epheitos Kolaterais – Novas Metamorfoses. A conexão com a dramaturgia contemporânea também ficou evidenciada por meio de montagens de peças de Carla Faour – A Arte de Escutar, Açaí e Dedos e Obsessão –, que realizou ainda adaptações literárias – Nenê Bonet, oriunda de original de Janete Clair, e A Força do Destino, de Nélida Piñon. Mesmo que seja uma iniciativa desvinculada do grupo, À Sombra das Chuteiras Imortais, atualmente em cartaz no Teatro Sesi, representa uma continuidade do vínculo de Henrique Tavares com o texto brasileiro, a matéria-prima literária (via Faour) e a atmosfera rodrigueana (em Obsessão).
A espinha dorsal desse novo espetáculo é o conto O Grande Dia de Otacílio e Odete, devidamente amalgamado a outras crônicas de Nelson Rodrigues, Complexo de Vira-Latas, O Craque na Capelinha e O mais Belo Futebol da Terra. O diretor, responsável pela adaptação, centra a ação no relacionamento conjugal entre Otacílio e Odete a partir da desconfiança do marido de que a mulher o trai e da decisão de matá-la durante o jogo entre Brasil e Suécia na Copa do Mundo de 1958. Ao se debruçar sobre o material não-dramatúrgico do autor, Henrique Tavares evoca os trabalhos de outra companhia, hoje encerrada, o Núcleo Carioca de Teatro, capitaneada por Luís Artur Nunes. O diretor demonstra habilidade no entrelaçamento de diferentes textos em malha dramatúrgica que não só não resulta dispersa como não sobrecarrega a montagem, adequadamente concisa. Mas a cena parece morna, como que carente de pulsação sanguínea.
Henrique Tavares procura imprimir personalidade ao espetáculo por meio de uma direção de movimento que acentua o humor e de uma seleção musical que transcende, em certa medida, o contexto histórico, a julgar pela inclusão de Ponta de Lança Africano (Umbabarauma), de Jorge Ben. A cenografia despojada de José Dias, composta por um móvel, cadeiras e o elemento central do rádio, traz à tona a época referida. A iluminação de Aurélio de Simoni injeta cor em cena sóbria. É no rendimento do elenco que se encontra o maior problema de À Sombra das Chuteiras Imortais, tendo em vista que os atores (Anderson Cunha, César Amorim, Crica Rodrigues, Gláucio Gomes e Ingrid Conte), em graus variáveis, revelam dificuldade para superar a esfera do trabalho bem ensaiado para alcançar o espírito rodrigueano. As atuações surgem apoiadas em conhecido contraste entre a narração e a interpretação dos personagens (através de composições sem muito refinamento). Apesar das restrições, o espetáculo permite ao público ampliar o contato com a vasta obra de Nelson Rodrigues.