Corpo em sintonia com a alma
Julianne Trevisol e Amanda Vides Veras em Uma Vida Boa (Foto: Renato Mangolin)
O projeto de Uma Vida Boa parte de um trágico acontecimento real, ocorrido nos Estados Unidos, em 1993, que já gerou transposições para o cinema, a exemplo do filme Meninos não Choram, de Kimberly Peirce, destacando uma questão delicada: o descompasso entre corpo e alma simbolizado por uma mulher que sente como homem, foco também de outra produção, Vera, de Sergio Toledo. Primot concentra a ação em três personagens – a jovem B, que assume identidade masculina, L, moça por quem ela se apaixona, e J, homem que externa sua brutalidade ao descobrir sobre a constituição física de B.
A montagem de Diogo Liberano, em cartaz no teatro Oi Futuro/Flamengo, coloca o público diante de elementos cenográficos sugestivos na abordagem do pantanoso terreno da sexualidade, como biombos, transparências e espelhos (cenário de Brunella Provvidente). Esses objetos dimensionam a tentativa de ocultação do sexo de origem com o intuito de imprimir diante do mundo uma aparência mais sintonizada com a própria verdade, uma forma física com a qual B se identifica intimamente. Ela constrói uma personagem que espelha com exatidão seu modo de sentir.
Diogo Liberano valoriza a conexão entre os três personagens através de uma partitura de movimentos lentos, como se fossem interligados por uma espécie de fio invisível, perspectiva fortalecida pela expressiva iluminação (de Daniela Sanchez), que investe em recortes, além de inundar a cena de tonalidades intensas. Mas o diretor não perde de vista o desencontro entre os personagens, comprovado por falas aceleradas que evidenciam a falta de escuta, de interação, entre eles. Em todo caso, Liberano parece, em determinados momentos, ambicionar uma instância criativa dissociada da peça.
Os figurinos de Bruno Perlatto são precisos nas caracterizações dos personagens. A trilha sonora de Diogo Ahmed Pereira contribui para a atmosfera opressiva da cena. Amanda Vides Veras, apesar de demonstrar hesitação diante do texto, transmite a fragilidade e a potência de B. Julianne Trevisol e Daniel Chagas interpretam com competência personagens menos complexos.
Encenação concisa na duração que, porém, se torna um pouco dispersa ao se afastar, até certo ponto, do texto, Uma Vida Boa tem qualidade para sensibilizar o espectador diante do doloroso panorama apresentado.