Tomada de posição sem refinamento
Patricia Selonk e Otto Jr. em O Dia em que Sam Morreu (Foto: Juliana Hilal)
A Armazém Companhia de Teatro vem alternando encenações de textos já existentes, mais ou menos celebrados, com a produção de uma dramaturgia própria, concebida em parceria entre o diretor Paulo de Moraes e o autor Maurício Arruda Mendonça. O Dia em que Sam Morreu, espetáculo do grupo que estreou na última edição do Festival de Curitiba e faz temporada na Fundição Progresso, é o novo trabalho da dupla. Diferentemente de outras peças assinadas por Moraes e Mendonça, essa não é atravessada por evocação da vida na cidade do interior ou de uma juventude luminosa e nem por proposta de elo lúdico com o espectador favorecido pelo dispositivo cenográfico. Sobressai, isto sim, uma necessidade de frisar uma colocação referente ao estar no mundo, em especial no que diz respeito à consciência e à conduta ética de cada um no cotidiano.
Os autores destacam personagens dotados de posturas contrastantes, como Benjamin, cirurgião que se distanciou do que deveria ser o sentido de sua profissão numa jornada de crescente ganância e corrupção, e Samantha, juíza que proíbe o marido de privilegiá-la na fila para um transplante de coração. Há ainda Samir, antigo palhaço, agora vitimado pelo Alzheimer, que se tornou conhecido por não se vender por qualquer gargalhada do público, e Samuel, jovem inflamado contra o sistema perverso. Com exceção de Benjamin, os demais mencionados são escrupulosos, não fazem concessões para obterem vantagens. Samantha. Samir e Samuel, que poderiam ser apelidados de Sam, preservam certa pureza num mundo degradado. Os personagens de O Dia em que Sam Morreu surgem mais como representantes de uma série de tomadas de posição do que como portadores de estruturas humanas complexas, o que denuncia a limitação do texto.
Paulo de Moraes e Mauricio Arruda Mendonça não investem numa construção artística refinada. O debate ético que procuram promover, apesar de oportuno (até que ponto dá para manter a integridade total, desvincular-se por completo das próprias urgências?), soa óbvio. Há um tom de mensagem a ser transmitido ao público. Tudo fica um tanto evidente, a exemplo dos manequins que realçam o modo impessoal e destituído de afetividade como o outro é visto e tratado. Por meio de uma das primeiras falas de Benjamin (“Dessa vez eu encontro a alma”, afirma, de maneira debochada, ao “operar um manequim”), também vêm à tona conceitos de interioridade e exterioridade – bastante tensionados, ao longo do tempo, em relação aos sentidos convencionais (interior como espaço do sentimento, da alma, e exterior como capa enganadora, embalagem) com que, contudo, continuam sendo empregados – que, porém, não são avolumados no decorrer do texto.
Como é um dos autores da peça, Paulo de Moraes demonstra natural dificuldade em minimizar no palco as fragilidades dramatúrgicas. A utilização do microfone, elemento recorrente nos últimos tempos, para os personagens projetarem publicamente seus posicionamentos, resulta, em alguma medida, desgastada. O diretor imprime no espetáculo a marca do profissionalismo da companhia Armazém, mesmo que as criações sejam menos inspiradas que outras encenações do grupo. A cenografia de Paulo de Moraes e Carla Berri não é muito expressiva na sugestão de ambientes distintos a partir de um espaço-base. A iluminação de Maneco Quinderé insere cores fortes num visual asséptico. A música (a cargo de Ricco Viana), executada ao vivo, emoldura a ação. Os atores são inevitavelmente prejudicados pelas deficiências do texto. Em todo caso, Lisa E. Fávero, Marcos Martins e Otto Jr. têm bons momentos.
É possível que o projeto de O Dia em que Sam Morreu tenha nascido de uma inquietação genuína por parte dos artistas envolvidos, abalados pelos valores deformados, do funcionamento discriminatório, excludente, que impera no contexto atual. Entretanto, a realização não surge contaminada pela contundência do depoimento sincero, energia catártica que talvez servisse de contraponto aos problemas da montagem.
Gabriel Frazão
23 de abril de 2014 @ 12:48
Achei bastante interessante esse jogo de pontos de vista de cada personagem. Acaba que acrescenta mais uma camada, o jogo não fica somente na narrativa externa e comum a todos. E por ser assim, claro que é inevitável não se espelhar em algum deles, até porque todos os Sams são basicamente personificações do todo de nossa sociedade de hoje. Impossível ver o personagem Samuel e não pensar nas milhares de vozes revoltadas da internet. Agora, é verdade, a voz microfonada e o cenário “quebra-cabeças” me distanciaram desta intimidade da narrativa.