Festival de Curitiba segue apostando em mudanças
Kelly Eshima e Uyara Torrente em Para Ler aos Trinta (Foto: Marja Calafange)
É possível detectar tendências em meio à programação do Festival de Curitiba, que terminou no último dia 06. Em relação à Mostra Oficial, a curadoria (integrada por Celso Curi, Lúcia Camargo e Tania Brandão) valorizou trabalhos de companhias – Cia. dos Atores (Conselho de Classe, LaborAtorial, Como estou Hoje), Armazém (O Dia em que Sam Morreu), Omondé (Nem mesmo Todo o Oceano), Pia Fraus (Trangressões), Sala Escura de Teatro (Trilogia dos Sonhos: É Culpa da Vida que Sonhei ou dos Sonhos que Vivi, Memória Inventada no Sonho de Alguém, Pesadelo), Cia. Brasileira (Nus, Ferozes e Antropófagos, realizado a partir do intercâmbio com o coletivo Jakart/Mugiscué e o Centro Dramático Nacional de Limousin) –, espetáculos de mercado – A Arte da Comédia, A Toca do Coelho, Jim, Quem tem Medo de Virginia Woolf? – e apropriações de textos clássicos – duas versões de Ricardo III, Otelo, o citado Virginia Woolf?. Também sobressaiu o investimento em encenações internacionais – The Rape of Lucrece, sublinhando a constância de Shakespeare na seleção, Sonata de Otoño, Spam.
No que diz respeito ao Fringe – imensa faixa da programação inspirada no modelo do Festival de Edimburgo que reúne espetáculos incluídos por ordem de inscrição – o Festival de Curitiba seguiu o direcionamento dos últimos anos ao realçar escolhas de curadorias que servem como guias em meio à gigantesca oferta de produções. Mesmo que as montagens não inseridas dentro das curadorias tendam a desaparecer no plano geral, a medida é, sem dúvida, louvável, não só por suspostamente sinalizar qualidade em meio a um panorama tão amplo como por suscitar recortes interessantes. Nessa edição, o Fringe foi composto por mostras presentes em anos anteriores e por novas. São elas: Coletivo de Pequenos Conteúdos – abarcando trabalhos de curta duração de grupos de Curitiba –, ES em Cena – seleção de montagens capixabas –, Internacional de Solos – reunião de monólogos –, Ademar Guerra – concentrado de encenações de grupos do interior de São Paulo –, Ateliê de Histórias – voltada para a produção infanto-juvenil –, Ave Lola – dedicada ao repertório, ainda reduzido, da companhia –, Baiana – abraçando conjunto de espetáculos do estado –, Novos Repertórios – fornecendo apanhado das montagens de companhias de Curitiba –, Dramaturgia Sesi/Teatro Guaíra – centrada nas obras de autores iniciantes –, Seu Nariz – com foco no universo clownesco – e Sonora em Cena – priorizando canções autorais.
Entre os espetáculos do Fringe, cabe chamar atenção para alguns, como Billie, Não Vejo Moscou da Janela do meu Quarto e Para Ler aos Trinta. Trabalho sintético e intimista da Dezoito Zero Um Cia. de Teatro, com texto e direção de Alexandre França, Billie coloca o público diante de fragmentos da trajetória de Billie Holiday, dispostos em cena como pequenos e rápidos quadros. Mais do que pelo retrato traçado da cantora – a relação com os homens, as drogas –, Billie se destaca pela estrutura cênica, por uma iluminação que imprime atmosfera nostálgica, a cargo de Beto Bruel, e pela composição minuciosa da atriz Cássia Damasceno, em que pese, porém, um registro vocal um pouco artificial.
Em Não Vejo Moscou da Janela do meu Quarto, Silvana Garcia, responsável pela dramaturgia e direção, opera sobre As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, transportando a ação da peça escrita na primeira década do século XX para os anos 1950/1960, a julgar pelos elementos que compõem a ambientação e por referências (como à cadela russa Laika, lançada ao espaço em 1957). Como na dramaturgia do autor, as personagens manifestam anseios por mudanças, que acabam sendo devidamente abortados, materializados através de uma transição cenográfica (cenário de Ciro Schu). No início da apresentação, uma metade do palco está entulhada de objetos e a outra, vazia; a partir de determinado momento, os atores empreendem deslocamentos que, contudo, não parecem alterar os estados dos personagens. É como se o deslocamento espacial não interferisse significativamente no painel de derrocada. Trabalho em processo, Não Vejo Moscou da Janela do meu Quarto já conta com uma excelente interpretação de Maria Tuca Fanchin, bastante precisa na captura do tempo tchekhoviano.
Para Ler aos Trinta, primeira montagem da companhia Projeto Z, da diretora Nina Rosa Sá, traz à tona, através de dramaturgia não-linear (texto de Ligia Souza Oliveira), o descompasso entre desejo e realidade, a frustração decorrente da constatação de que diversas projeções não se concretizaram. Existe uma aproximação entre as questões abordadas e as atrizes, tendo em vista a simbiose entre personagens e intérpretes evidenciada durante a encenação. O caráter pessoal é reforçado por recortes de espaços afetivos (entre os elementos espalhados pelo palco há vinis, louças). As atrizes Kelly Eshima e Uyara Torrente demonstram controle em atuações norteadas pela intensidade emocional.
O crítico viajou a convite da organização do festival