Ficção atravessada pela realidade

Kelzy Ecard em Meu Caro Amigo, montagem em cartaz no Teatro Firjan Sesi (Foto: Renato Mangolin)
Quando Meu Caro Amigo começa, Kelzy Ecard caminha até o proscênio e se apresenta ao público, dando a impressão de que se expressará como atriz e não como personagem, em sintonia com a vertente documental, especialmente frequente no panorama teatral da última década. Mas não é o que ocorre. Kelzy assume a identidade de Norma, fã inveterada de Chico Buarque. Durante o espetáculo, Kelzy concilia de maneira hábil a interpretação de Norma com um tom levemente desconstruído que sugere certa proximidade entre atriz e personagem.
Seja como for, a ficção se estabelece de modo claro e Kelzy transmite à plateia a energia contagiante de Norma, que, como professora de história, utiliza as canções de Chico Buarque como material didático sobre momentos marcantes da vida do país. No plano da ficção, Norma fala a respeito do Brasil por meio das músicas de Chico. Na esfera da realização, Felipe Barenco, autor da peça, aborda décadas da trajetória brasileira através da jornada de Norma. Essa conjugação entre realidade e ficção remete, em alguma medida, à dramaturgia de Flavio Marinho.
No entrelaçamento do percurso pessoal de Norma, nascida em meados dos anos 1950, com os acontecimentos do Brasil, Barenco destaca o contexto da ditadura militar. Na juventude, Norma atravessa uma fase de revolução dos costumes no mundo e sua adesão à atmosfera de mudança a coloca em embate direto com o pai autoritário, personagem invisível, mas bastante mencionado na peça. Essa relação conflituosa ganha centralidade no texto.
Encenado há 15 anos, o espetáculo foi retomado e atualizado por meio de referências ao Brasil recente. É uma decisão compreensível, coerente com a proposta desse texto simpático e comunicativo. No entanto, a parte dos acréscimos é menos burilada em termos de dramaturgia.
Em todo caso, um musical como Meu Caro Amigo ocupa um lugar um pouco específico dentro das montagens filiadas ao gênero. O objetivo da concentração em torno de Chico Buarque não é biografar o cantor e compositor, corrente seguida por muitos espetáculos, principalmente a partir da segunda metade dos anos 1980. As músicas servem aqui a uma dramaturgia ficcional. Além disso, talvez aproveitando a profissão de professora da personagem, Kelzy/Norma faz breves comentários no meio das canções, característica dessa encenação valorizada pela direção musical de Marcelo Alonso Neves.
Independentemente dessas peculiaridades, o espetáculo, em cartaz no Teatro Firjan Sesi, se inscreve de forma harmoniosa na linha dos musicais de bolso com a qual a diretora Joana Lebreiro acumulou experiência ao longo dos anos em montagens voltadas para artistas brasileiros bem representativos (Antonio Maria, Ary Barroso, Mario Lago). O porte reduzido da encenação se traduz na eficiente funcionalidade de cenografia, figurino (ambos a cargo de Ney Madeira e Dani Vidal) e iluminação (de Paulo Cesar Medeiros).
Meu Caro Amigo é uma montagem sustentada pela articulação entre realidade e ficção na dramaturgia e, com mais discrição, no registro interpretativo de Kelzy Ecard, que, com presença cênica envolvente, vence os desafios do monólogo.
MEU CARO AMIGO – Texto de Felipe Barenco. Direção de Joana Lebreiro. Com Kelzy Ecard. Teatro Firjan Sesi (Av. Graça Aranha, 1). Seg. e ter., às 19h. Ingressos: R$ 40,00 e R$ 20,00 (meia-entrada).