Corajoso investimento no cinema autoral

A Mostra de Tiradentes vem afirmando uma identidade artística ligada a um cinema autoral, sem concessões, que desafia o público. Dessa 28ª edição, encerrada no último domingo sob a coordenação de Raquel Hallak d’Angelo, Fernanda Hallak d’Angelo e Quintino Vargas Neto, diretores da Universo Produção, saíram vencedores os longas-metragens Deuses da Peste (2024), de Tiago Mata Machado e Gabriela Luíza (Mostra Olhos Livres), Parque de Diversões (2024), de Ricardo Alves Jr. (Mostra Autorias), Um Minuto é uma Eternidade para quem está Sofrendo (2025), de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro (Mostra Aurora), e 3 Obás de Xangô (2024), de Sérgio Machado (Júri Popular).
O importante, porém, não é “tão-somente” informar o resultado. No início da Mostra, durante a apresentação da programação pelos curadores, uma inquietação fundamental surgiu na plateia: “onde vão parar os filmes exibidos na Mostra de Tiradentes?”, perguntaram. Afinal, a maioria das produções não chega ao circuito comercial ou, caso chegue, dificilmente alcança repercussão junto ao público. “Os filmes vão parar no HD. E, às vezes, o diretor perde o HD e o filme deixa de existir. Talvez muitos dos filmes exibidos na Mostra Aurora nem existam mais”, respondeu Francis Vogner dos Reis, coordenador curatorial e integrante da curadoria de longas-metragens (ao lado de Juliana Costa e Juliano Gomes), acerca da parte do festival, que, antes destinada a trabalhos de cineastas que tivessem realizado até três longas, agora ficou concentrada em filmes de estreia. Como se pode notar, a Mostra de Tiradentes representa um estímulo heroico a um cinema que não é abraçado pelo mercado exibidor. “Alguns diretores fazem seus filmes com dinheiro próprio. Como garantir a continuidade deles? A história do cinema brasileiro é feita de interrupções”, constatou Francis.
Esse convite ao debate desponta num instante favorável para o cinema brasileiro, celebrado pelo sucesso de Ainda Estou Aqui (2024), filme de Walter Salles que já levou quatro milhões de espectadores ao cinema e recebeu três indicações ao Oscar nas categorias filme, filme internacional e atriz (Fernanda Torres). Outra produção recente que fez bonito na bilheteria foi O Auto da Compadecida 2 (2024), de Guel Arraes e Flavia Lacerda. A receptividade a esses filmes é uma excelente notícia. Mas será que sinalizam uma retomada do prestígio do cinema brasileiro junto ao público? Ou são aclamações específicas decorrentes da repercussão internacional e do elo afetivo com um dado universo? Perguntas parecidas se estendem à produção estrangeira. Será que a boa ocupação das salas nas exibições de filmes como Conclave (2024), de Edward Berger, A Semente do Fruto Sagrado (2024), de Mouhammad Rasoulof, e A Substância (2024), de Coralie Fargeat, significa um retorno do espectador aos cinemas após a pandemia, quando muitos se acostumaram a consumir material audiovisual dentro de casa? Ou se trata “apenas” de um favorável momento pontual motivado pelo frisson do Oscar?
Historicamente, o cinema brasileiro viveu períodos de grande adesão de público, valendo lembrar das chanchadas da Atlântida, das pornochanchadas da Boca do Lixo e das aventuras de Os Trapalhões. Pela via da comédia ou do apelo erótico, tais produções, gestadas em décadas diferentes, atraíam enorme quantidade de espectadores. Mas, à medida que o tempo passou, o cinema deixou de ser uma diversão popular. Os preços dos ingressos subiram cada vez mais, o contexto político se revelou extremamente adverso (governo Collor, marcado pela extinção da Embrafilme) e apareceram novas formas de entretenimento impondo dura concorrência. Nos últimos anos, poucas produções conseguiram furar tantos obstáculos – basicamente os filmes protagonizados por Paulo Gustavo e por um grupo restrito de comediantes.
Mas há ainda um outro dado que não diz respeito a épocas particulares: a reduzida conexão entre um cinema investigativo ou de experimentação, como o priorizado na Mostra de Tiradentes, e uma faixa mais abrangente de público. Por isso, o investimento num evento cinematográfico com um recorte artístico ousado é bastante louvável. Ao invés de mirar numa aposta “segura” a partir de determinados indicativos de mercado, a Mostra procura, ao contrário, jogar luz sobre uma produção que não costuma ser valorizada nem pelo circuito exibidor, nem por uma plateia mais ampla.