Um espetáculo destemido – até certo ponto
Pedro Henrique Muller em Os Irmãos Karamázov, em cartaz até domingo no Sesc Copacabana (Foto: Lorena Zschaber)
A encenação de Os Irmãos Karamázov, em cartaz apenas até domingo no Sesc Copacabana (Arena), pertence ao conjunto de experiências voltadas para a transposição de material literário para o palco. Marina Vianna e Caio Blat, que dividem a direção, foram particularmente ambiciosos ao se debruçarem sobre o monumental romance de Dostoievski, que desembarca na cena em condensada versão de duas horas de duração. Na verdade, a semente desse projeto é antiga: a dramaturgia, de Blat e Manoel Candeias, foi concebida em 2001.
A materialização cênica dos textos literários segue diferentes critérios, como o realce do trânsito entre narração e vivência norteando o registro interpretativo do elenco e até a opção em não fazer cortes nos livros, valendo lembrar da vertente do romance-em-cena, capitaneado por Aderbal Freire-Filho, uma provocação que sinalizava que a teatralidade não reside na estrutura da dramaturgia escrita e sim na construção da cena. Mas, independentemente da condução adotada, tais iniciativas propõem, ainda que em graus variados, uma valorização da palavra, meta audaciosa tendo em vista a desenfreada velocidade do mundo contemporâneo que tanto dificulta a apreciação.
No que diz respeito à essa nova montagem – nascida da apropriação de uma obra caudalosa, impossível de ser abarcada em sua totalidade, como Os Irmãos Karamázov –, a valorização da palavra se dá em medida parcial. Os artistas assumem o risco: falam ininterruptamente o texto, “confrontando” a plateia com uma verborragia que, nos dias que correm, pode soar exasperante. Nesse sentido, o espetáculo marca uma postura de enfrentamento às resistências de muitos espectadores.
No entanto, nessa encenação a prioridade está na ação, na palavra corporificada, por meio de atores/personagens que (re)agem fisicamente ao impacto emocional dos acontecimentos. Parece haver uma preocupação em envolver o público através da agitação, de estímulos visuais e sonoros, características associadas, com frequência, a uma abordagem popular. Diante de certa recusa à interiorização, a natureza reflexiva do texto de Dostoievski perde espaço para o atrativo de trama que a história possui.
O caráter exteriorizado do espetáculo também se manifesta na exposição de procedimentos de uma cena anti-ilusionista. O ato teatral é frisado para o espectador, seja por meio da inclusão, no palco, de elementos constitutivos da montagem – os músicos Arthur Braganti e Thiago Rebello participam de forma ativa da encenação, a tradução na língua de sinais é incorporada na cena, contrastando com a verbalização do texto de Dostoievski –, seja através do descolamento entre atores e personagens. Há atores que não se fundem num único personagem pelo fato de acumularem mais de um. E outros que interpretam personagens sem se prenderem ao gênero. Essas opções, instigantes em si, tornam as atuações mais “visíveis”, minimizando, assim, a possibilidade dos atores desaparecerem por trás dos personagens e dos espectadores se projetarem alienadamente na cena.
Não significa que os intérpretes não estejam integrados com os personagens. No esforço de conciliação entre a atuação coral e as oportunidades individuais, o resultado obtido junto ao elenco é irregular, mas com alguns trabalhos de destaque. Caio Blat confirma o domínio da palavra após incursões pelo universo de escritores como Guimarães Rosa e o próprio Dostoievski. Pedro Henrique Muller envereda pela composição sem aderir à caricatura fácil. Sol Miranda imprime contundência que, porém, não nivela suas intervenções. E Luisa Arraes sustenta constante estado de passionalidade.
O maior entrosamento ocorre entre as partes criativas do espetáculo – a cenografia (de Moa Batsow), os figurinos (de Isabela Capeto) e a iluminação (de Gustavo Hadba e Sarah Salgado) com predomínio do branco, cada vez mais invadido, ao longo da montagem, pela intensidade do vermelho, símbolo do violento extravasamento que impera entre os personagens. O sangue surge de modo crescente nos rostos e nas roupas, rompendo com uma eventual aparência asséptica. As proposições mais interessantes ficam concentradas nos figurinos, uniformizados pela cor branca, mas heterogêneos, distantes de qualquer padronização.
No panorama da cena atual, Os Irmãos Karamázov desponta como um projeto destemido. Afinal, Marina Vianna e Caio Blat levam para o palco uma obra de grande dimensão e colocam o público diante do desafio da escuta. Essa ousadia, contudo, é relativizada por apelos à plateia contemporânea e por uma permanente evidenciação do sentir que afasta a montagem de notas mais sutis e profundas.
OS IRMÃOS KARAMÁZOV – Adaptação do livro de Dostoievski. Direção de Marina Vianna e Caio Blat. Com Babu Santana, Caio Blat, Lucas Oranmian, Luisa Arraes, Marina Vianna, Nina Tomsic, Pedro Henrique Muller, Sol Miranda. Sesc Copacabana/Arena (R. Domingos Ferreira, 160). Sex., sáb. e dom., às 20h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada), R$ 7,50 (associados do Sesc).