Os destaques da cena em 2024
Debora Falabella em Prima Facie (Foto: Annelize Tozetto)
ALGUMA COISA PODRE – Tendo William Shakespeare como um dos personagens centrais – e atravessado, portanto, por várias referências ao universo do dramaturgo –, esse musical dirigido por Gustavo Barchilon surpreende pelo humor irreverente e pela criatividade em diversos setores, principalmente no que diz respeito aos figurinos de Fábio Namatame. Também cabe elogiar o trabalho de Claudio Botelho na transposição das letras para o português e o rendimento do elenco, em especial o apreciável tempo de comédia de Bel Lima. Apesar de grandioso, o espetáculo não é engessado pelo tamanho da produção.
ARQUEOLOGIAS DO FUTURO – O solo interpretado por Maurício Lima – que assina dramaturgia e direção com Fabiano Dadado de Freitas – aborda a violência imposta a corpos negros e periféricos por meio de concepção cênica marcada por instigante interação com o multimídia. Sobressai a expressividade do corpo do ator, que transita com movimentos sinuosos, próprios de quem domina os códigos necessários à sobrevivência em campo minado. O espaço da comunidade, por outro lado, é a região do corpo liberto, talvez utópico, que se manifesta sem amarras e de maneira catártica.
DESERTO – À frente da Cia. Polifônica, Luiz Felipe Reis mergulha no universo do escritor Roberto Bolaño por meio de conjugação entre teatro e cinema, passado e presente, realidade e ficção. Estimula o espectador a traçar articulações, a completar imagens, numa encenação sem didatismo, nem hermetismo. O ator Renato Livera revela vínculo inquebrantável com o aqui/agora da cena, perceptível na instantaneidade da fala. Domina a palavra e, em algumas passagens, dá vazão a bem medido extravasamento físico.
HAIRSPRAY – Tudo funciona a contento nesse musical de grande porte, cuja origem remete ao ótimo filme de John Waters. Sem perder de vista o contexto de segregação racial da Baltimore do início da década de 1960, o espetáculo – idealizado por Antonia Prado, Tiago Abravanel e Tinno Zani – conquista pelo visual colorido e inventivo, evidenciado no cenário (de Rogério Falcão) e nos figurinos (de Bruno Oliveira), e pela sintonia do elenco, com certo destaque para Liane Maya.
ISMAEL SILVA – PROFESSOR SAMBA – Musical vibrante, que traz à tona a trajetória de Ismael Silva, sem, porém, biografá-lo convencionalmente. Bastante entrosados, os atores Édio Nunes (que divide a direção com Ana Veloso, autora do texto), Jorge Maia e Milton Filho interpretam o personagem-título. Determinante para o resultado, a direção musical de Wladimir Pinheiro.
LADY TEMPESTADE – Andréa Beltrão interpreta a destemida advogada Mércia Albuquerque, que defendeu presos políticos durante a ditadura no Brasil, além de se desdobrar em outras personagens, como A., a mulher que recebe os diários de Mércia, conforme a proposta dramatúrgica de Silvia Gomez. Conduzida pela diretora Yara de Novaes, Andréa sugere um gosto por pinceladas de composição, sem, contudo, enveredar por uma histriônica demonstração de versatilidade. A cenografia de Dina Salém Levy remete ao mar, mas como natureza gasta, desbotada, que esconde o proibido, o censurado, os corpos dos desaparecidos.
NÃO ME ENTREGO, NÃO! – Uma justa celebração a Othon Bastos, pela importância de sua carreira em variados meios artísticos e pelo fato de se manter, aos 91 anos, em plena atividade. Em cena, Othon (auxiliado por Juliana Medella) esbanja energia, flagrante na narração espontânea, no corpo em permanente movimento e na voz firme e contundente. Acumulando as funções de diretor e autor, Flavio Marinho proporciona que Othon trace, com informalidade, uma panorâmica de seu percurso.
ORDINÁRIOS – Espetáculo da companhia LaMínima, que, através das jornadas de soldados munidos de posturas tão distintas quanto inadaptadas ao contexto da guerra, presta uma homenagem ao teatro, sublinhada no encaminhamento da situação na parte final da apresentação. A sintonia entre os atores Fernando Paz, Fernando Sampaio e Filipe Bregantim é fundamental para o resultado dessa montagem dirigida por Alvaro Assad. Os três confirmam domínio físico da arte da palhaçaria, sem concessões ao exibicionismo técnico.
A PALAVRA QUE RESTA – A encenação dirigida por Daniel Herz a partir do livro de Stênio Gardel – sobre dois homens que se apaixonam e se deparam com a intolerância do meio em que se encontram inseridos – se destaca pela inventividade. Essa qualidade não se manifesta exatamente na história contada (apesar de sensibilizar o espectador), mas na forma de contá-la, na utilização dos elementos da cena como recursos de linguagem. A teatralidade da montagem deve ser creditada ainda ao elenco da Cia. Atores de Laura, habilidoso no trânsito entre narração e vivência, bem como no revezamento constante entre os personagens do livro de Gardel.
PRIMA FACIE – Estruturada como narração atravessada pelo impacto da vivência, a peça de Suzie Miller denuncia um sistema perverso que protege os homens diante de violências cometidas contra as mulheres. Sob a direção de Yara de Novaes, Débora Falabella demonstra admirável fluência e fôlego surpreendente na condução do texto. Ao domínio da palavra, a atriz acrescenta breves passagens de movimentação corporal desenvolta, especialmente na primeira parte da peça, quando a personagem ainda sustenta seu universo de certezas.
Leandro Castilho e Charles Fricks em A Palavra que Resta (Foto: Carolina Spork)