Entre a inquietação e a repetição
Renata Sorrah, Bianca Monicongo e Bárbara Arakaki (ao fundo) em Ao Vivo (Dentro da Cabeça de Alguém) (Foto: Nana Moraes)
SÃO PAULO – A instantaneidade do presente surge estampada nessa encenação da companhia brasileira de teatro, em cartaz, até domingo, no Teatro do Sesi. A conexão com o aqui/agora não se traduz tão-somente por meio de menções diversas ao contexto político. Ao Vivo (Dentro da Cabeça de Alguém), montagem assinada por Marcio Abreu, aborda os dias de hoje para frisar preocupação com a memória, com o que será lembrado por aqueles que sobreviverem para contar.
Como as lembranças são falhas, é bem provável que, no futuro, o tempo atual fique reduzido a uma imagem embaçada. Mas, ficcionalizadas na subjetividade de quem as evoca, as lembranças também são repletas de sabor, a exemplo da cena em que Renata Sorrah traz à tona tanto fatos marcantes da vida coletiva no Brasil quanto suas próprias experiências, em esfera familiar e profissional. Uma delas diz respeito a As Lágrimas Amargas de Petra von Kant – aclamada montagem do texto de Rainer Werner Fassbinder, dirigida por Celso Nunes, da qual participou, em 1982. A referência de As Lágrimas Amargas…, inclusive, norteou um dos espetáculos anteriores da companhia brasileira, com Sorrah: Preto.
Essa conjugação entre passado e presente retorna em Ao Vivo (Dentro da Cabeça de Alguém) por meio da inspiração em outra célebre encenação com Sorrah no elenco – A Gaivota, versão do diretor Jorge Lavelli para a peça de Anton Tchekhov, realizada em 1974. Mas, apesar da possibilidade de se estabelecer articulações entre esse novo espetáculo e o universo de Tchekhov – como será o mundo no futuro?, como os que “virão depois de nós” perceberão o tempo de hoje? –, o elo específico com A Gaivota se mostra algo frágil. Mesmo que existam eventuais diálogos instigantes entre os artistas da companhia e a peça, a ligação muitas vezes se resume à valorização de determinadas circunstâncias importantes no texto do dramaturgo russo – entre elas, a escravidão amorosa de Arkádina diante do amante Trigorin e o vínculo passional dela com o filho Treplev.
À frente da montagem, Marcio Abreu não aproveita como poderia a discussão artística contida em A Gaivota: o embate entre o teatro de mercado – bem-sucedido, mas avaliado, até certo ponto, como ultrapassado –, representado por Arkádina, e a cena simbolista – avançada, segundo pequeno grupo de visionários –, defendida por Treplev. “Precisamos de novas formas”, sublinha Treplev. A julgar por sua trajetória, a companhia brasileira se coloca ao lado de Treplev na prática de uma cena experimental e investigativa, com dramaturgia desconstruída e questionamento de fronteiras mantidas no teatro tradicional (realidade/ficção, ator/personagem, palco/plateia, vida/arte). Contudo, Ao Vivo (Dentro da Cabeça de Alguém) sinaliza repetição, seja na operação dramatúrgica sobre textos clássicos ou antigos que remete diretamente a um espetáculo anterior da companhia (Preto), seja nos elementos de cena (tela, microfone, mesa, cadeiras distintas), bastante frequentes nos palcos de hoje.
Ainda assim, a montagem propicia curiosas associações. Se na encenação de 1974 Renata Sorrah, na época uma intérprete em franca ascensão, fez a conflituada Nina, agora se aproxima de Arkadina, a atriz consagrada, mas de maneira crítica. Ao longo dos anos de parceria com a companhia brasileira de teatro, Sorrah não vem ocupando, na estrutura dos espetáculos, uma posição de protagonismo, apesar do inevitável destaque. A situação difere um pouco nessa montagem devido às citações a alguns de seus trabalhos emblemáticos – além de A Gaivota e As Lágrimas Amargas…, o filme udigrudi Matou a Família e foi ao Cinema (1969), de Júlio Bressane – e à proposta dramatúrgica. Em todo caso, não há uma centralização completa em sua presença. Os demais integrantes do elenco (Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Monicongo) ganham espaço considerável, mesmo que em medidas variáveis, cabendo elogiar a atuação sanguínea, pulsante e contundente de Monicongo. Renata Sorrah reafirma sua vibração e intensidade características, mas com inegável frescor – qualidade evidenciada na construção gestual e no domínio da palavra.
Ao Vivo (Dentro da Cabeça de Alguém) resulta de uma inquietação sincera em relação à apreensão limitada, ainda que afetiva, do tempo. Essa constatação atravessa o espetáculo, que encerra de modo coerente, em que pese a dificuldade em encontrar a cena final. Mas o problema não reside nos ajustes a serem feitos, e sim no duelo entre a autenticidade da reflexão e o investimento numa cena contemporânea que se renova menos do que parece.
AO VIVO (DENTRO DA CABEÇA DE ALGUÉM) – Texto e direção de Marcio Abreu. Com Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Monicongo. Teatro Sesi (Av. Paulista, 1313). Qui. a sáb., às 20h, dom., às 19h. Ingressos: Gratuitos.