A riqueza da simplicidade
Leandro Castilho e Charles Fricks em A Palavra que Resta, montagem da Cia. Atores de Laura (Foto: Carolina Spork)
Fundada no começo da década de 1990, a Cia. Atores de Laura, de início, optou por montagens a partir de dramaturgia própria, assinada – casos de Entrevista e Cartão de Embarque, ambos de Daniel Herz e Bruno Levinson – ou concebida em sistema de criação coletiva, ainda que atravessadas por referências explícitas – como Romeu e Isolda, que traz as citações no título, e Decote, inspirado no universo de Nelson Rodrigues. Em dado momento, passaram a encenar peças de autores renomados, como Molière (As Artimanhas de Scapino), William Shakespeare (Conto de Inverno), Friedrich Dürrenmatt (O Julgamento, adaptação de A Visita da Velha Senhora) e Martins Pena (O Pena Carioca). E inauguraram mais uma linha de trabalho, com a transposição de textos literários para o palco (O Filho Eterno, de Cristovão Tezza). A Palavra que Resta, atualmente em cartaz no Teatro Correios Léa Garcia, pertence a essa última vertente.
Em espetáculos originados de livros, o fundamental não está na substituição das características literárias – o caráter descritivo e a estrutura narrativa – pelas teatrais – o diálogo e a ação –, mas na construção da cena. É o que se notar em algumas experiências já realizadas. Entre os anos 1990 e 2010, Aderbal Freire-Filho deu vazão ao projeto do romance-em-cena (por meio de três montagens – A Mulher Carioca aos 22 Anos, de João de Minas, gestada na companhia Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, O que Diz Molero, de Dinis Machado, e O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho –, que tinha como regra a não adaptação da obra literária. O elenco deveria falar o texto do livro sem cortes e sem mudanças estruturais em termos de linguagem. Essas imposições levaram os atores a se alternarem entre narração e interpretação e a se desdobrarem entre diversos personagens, procedimentos que, ao invés de engessarem, reforçaram a teatralidade das encenações.
Mais uma experiência provocante: Bugiaria, montagem de Moacir Chaves, com a Péssima Companhia., a partir dos autos de um processo de inquisição contra o francês João Cointra, um material árido, sem vocação para o palco. O resultado surpreendente comprovava que o principal não reside na escolha de obras escritas para teatro, e sim no modo como o texto é transportado para a cena. Vale frisar que essa constatação não invalida uma tendência do teatro do século XXI (claro que numa perspectiva generalizada), no que se refere a um crescente desinteresse em relação às montagens de peças, tanto na esfera brasileira quanto na estrangeira, numa época como a de hoje, mais voltada para dramaturgia centrada na exposição de aspectos relevantes da vida do artista.
Em A Palavra que Resta, Daniel Herz adaptou o livro do escritor cearense Stênio Gardel. Uma história simples e dolorosa, sobre dois homens que se apaixonam e são confrontados com a intolerância do meio em que se encontram inseridos. A palavra de Gardel reverbera plenamente no público e tem importância inegável. Não por acaso, está presente no título do livro e é o enigma, indecifrável para o personagem analfabeto, impedido pelo pudor de buscar esclarecimento junto a pessoas próximas.
No entanto, como nos demais espetáculos mencionados, o determinante não é a operação entre literatura e dramaturgia. A teatralidade da montagem de Herz decorre do fato de os elementos constitutivos (cenário, figurino, iluminação, música) não se limitarem à ambientação, mas enunciarem, expressarem por meio de imagens. Assim, a noção de texto não fica restrita ao campo do escrito/falado. A cenografia e os figurinos de Wanderley Gomes evidenciam o caminho da neutralidade (o palco coberto por uma lona gasta, os figurinos com uma base única – o macacão). O acréscimo de adereços singelos e personalizados (como as estampas que diferenciam os figurinos), porém, individualizam as roupas e, consequentemente, os personagens, percepção bastante sintonizada com o texto de Gardel, um alerta à massificadora repressão dos sentimentos. Em contrapartida, quando os atores aparecem com roupas semelhantes, há uma proposta de jogo, com o mesmo personagem multiplicado. Os figurinos, em particular, traduzem sentidos.
A teatralidade da encenação deve ser creditada ainda ao elenco, habilidoso no trânsito entre narração e vivência, bem como no revezamento constante entre os personagens do livro de Gardel. Além disso, chama atenção o gesto interrompido, como o beijo. Afinal, no teatro, não há necessidade de concretizar as imagens. Cabe destacar a notável integração entre os atores da companhia – Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton, Verônica Reis –, qualidade que também se estende à atriz convidada – Valéria Barcellos. Maria Paula Marini permanece em plano mais discreto, possivelmente devido à circunstância da substituição de Ana Paula Secco na noite em que o espetáculo foi visto.
A Palavra que Resta é uma montagem que sobressai pela inventividade, não exatamente por causa da história que conta (apesar de sensibilizar o espectador) mas pela forma de contá-la. Ao utilizarem os componentes da cena como recursos de linguagem – como haviam feito, mesmo que de maneira distinta, em O Pena Carioca, espetáculo em que o cenário era constituído pelos figurinos –, os atores da companhia, conduzidos por Daniel Herz, apresentam uma encenação de excelência que valoriza a riqueza do teatro como manifestação artística.
A PALAVRA QUE RESTA – Adaptação de Daniel Herz para o livro de Stênio Gardel. Direção de Daniel Herz. Com Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton, Valéria Barcellos e Verônica Reis. Teatro Correios Léa Garcia (R. Visconde de Itaboraí, 20). Qui. a sáb. às 19h. Ingressos: de R$ 15,00 a R$ 80,00. Até sábado.