Diferentes versões autorais para uma mesma história
Alessandra Maestrini, Lilian Valeska, Carol Garcia e André Dias em Kafka e a Boneca Viajante: até amanhã no Teatro Clara Nunes (Foto: Ale Catan)
Dois espetáculos atualmente em cartaz se debruçam sobre a interação entre o escritor Franz Kafka e uma menina inconsolável após a perda de sua boneca. Um, destinado ao público adulto, é Kafka e a Boneca Viajante, que, dirigido por João Fonseca, cumpriu temporada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e encerra as apresentações, nesse domingo, no Teatro Clara Nunes. O outro, voltado à plateia infanto-juvenil, é A História de Kafka e a Boneca Viajante que, sob a direção de Isaac Bernat, estreou recentemente no Futuros. Ambos partiram da mesma base – o livro do escritor Jordi Sierra I Fabra – na produção de dramaturgias próprias.
Determinado a minimizar o sofrimento da menina, Kafka teria começado a escrever cartas para ela como se fosse a boneca em viagem pelo mundo. A história traz à tona o esforço, inevitavelmente limitado, de suprir uma ausência (morte). Mas também destaca as infinitas aberturas para a imaginação a partir, no caso, da leitura das cartas fictícias. Ao ouvir as cartas lidas por Kafka, a menina fabrica as suas imagens. Uma amplitude ligada, de alguma maneira, à experiência vivenciada pelo espectador no teatro, uma manifestação artesanal, de restritas possibilidades visuais, que, justamente por isso, estimula quem assiste a projetar universos imaginários.
Em Kafka e a Boneca Viajante, Rafael Primot assina o texto, mantendo o foco na conexão entre Kafka e a menina. Há, contudo, momentos em que os atores saem dos personagens e fazem breves comentários, em intencionais quebras da ilusão. Nesses instantes, decorrentes da dramaturgia ou da direção, o caráter lúdico se desfaz e o texto se torna esgarçado. Em A História de Kafka e a Boneca Viajante, Julia Bernat, encarregada do texto, concentra na relação entre os personagens principais, sem interferências dispersivas.
João Lucas Romero e Laura Becker em A História de Kafka e a Boneca Viajante (Foto: Dalton Valério)
As concepções estéticas das montagens são bem distintas. No espetáculo de João Fonseca, cores intensas tomam conta da cena. O vermelho da cenografia de Nello Marrese e o azul da iluminação de Paulo Cesar Medeiros contrastam com os tons fechados dos expressivos figurinos de João Pimenta. O selo é elemento fundamental no cenário – há um grande, encravado no palco – e, perifericamente, uma mesa e uma cadeira sinalizam, de modo discreto, a atividade profissional de Kafka. Na montagem de Isaac Bernat, sobressai uma árvore de madeira, escolha justificada na passagem em que Kafka relata sobre a suposta jornada da boneca em Burkina Faso e faz referência à tradição do griot, objeto de pesquisa do diretor.
A música é componente realçado nas duas encenações. Em Kafka e a Boneca Viajante, a direção musical foi exercida por Tony Lucchesi e em A História de Kafka e a Boneca Viajante, por Pedro Luís. Nesse terreno, o primeiro espetáculo gera certo estranhamento devido à inclusão de canções conhecidas e heterogêneas, opção que destoa em meio a uma proposta artística consideravelmente autoral.
No que diz respeito às interpretações, os caminhos também foram diversos. As construções físicas e vocais imperam em Kafka e a Boneca Viajante (direção de movimento de Marcia Rubin). É o que se pode perceber na composição da boneca de Alessandra Maestrini – atriz que confirma a voz tecnicamente burilada e evita impor sua forte personalidade cênica sobre a personagem –, na postura irrequieta da menina de Carol Garcia – em criação que escapa da armadilha da caricatura –, no perfil soturno e contido do Franz Kafka de André Dias e na presença atenta de Dora, esposa de Kafka, feita por Lilian Valeska – os dois últimos integrantes do elenco acumulando, em cenas curtas, os papéis do soldadinho de chumbo e da gaivota. Em A História de Kafka e a Boneca Viajante, João Lucas Romero interpreta, com fluência, um Kafka enérgico, sanguíneo, e Laura Becker faz a menina sem chegar a imprimir uma característica mais específica.
Proposições para um enredo único, Kafka e a Boneca Viajante e A História de Kafka e a Boneca Viajante se distinguem nos vários campos de criação: operações dramatúrgicas, concepções estéticas e registros interpretativos. Os elos estabelecidos com os espectadores, evidentemente, são diferentes.
KAFKA E A BONECA VIAJANTE – Texto de Rafael Primot. Direção de João Fonseca. Com Alessandra Maestrini, André Dias, Carol Garcia e Lilian Valeska. Teatro Clara Nunes (R. Marquês de São Vicente, 52/3º andar). Hoje às 20h30 e amanhã às 19h. Ingressos: De R$ 19,50 a R$ 140,00.
A HISTÓRIA DE KAFKA E A BONECA VIAJANTE – Texto de Julia Bernat. Direção de Isaac Bernat. Com João Lucas Romero e Laura Becker. Futuros (R. Dois de Dezembro, 63). Sáb. e dom., às 16h (hoje e amanhã sessões extras às 18h). Ingressos: R$ 20,00 (meia-entrada) e R$ 40,00.