Desejo de surpreender
Guida Vianna e Silvia Buarque em A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe (Foto: Nil Caniné)
Registros distintos atravessam a dramaturgia e a encenação de A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, peça de Daniela Pereira de Carvalho dirigida por Leonardo Netto, atualmente em cartaz no Teatro Poeirinha. O texto evidencia proximidade com a vertente realista por meio de flagrantes de confronto entre mães e filhas, apresentados em linguagem cotidiana. As personagens trazem à tona vivências extremadas, mas facilmente reconhecíveis pelo público, relacionadas à incompreensão, falta de aceitação e incapacidade de lidar com as especificidades alheias. A peça pertence a uma tradição dramatúrgica voltada para o ajuste de contas, filiação perceptível em situações de embate que levam à exposição de verdades até então ocultadas, de fatos que permaneceram interditados durante longo período.
Daniela Pereira de Carvalho relativiza essa linha realista – mas sem se desconectar dela – através de arroubos poéticos que irrompem em dados instantes, particularmente nos de breve narração, e de um corte seco na transição entre as duas partes bem definidas dentro do texto. Essas partes, localizadas em épocas variadas, são interligadas pelos elos familiares entre personagens femininas de gerações diversas, portadoras de visões de mundo divergentes. Entre elas despontam conflitos e tentativas de estabelecer ou ressuscitar vínculos afetivos. Há referência a uma outra camada de tempo, anterior às ações da peça e evocada por meio de palavras, que remete à juventude desestabilizada de uma das personagens.
Essa estrutura intencionalmente partida faz com que as atrizes – Guida Vianna e Silvia Buarque – interpretem, cada uma, duas mulheres de uma família. A ideia de ter as mesmas atrizes em personagens diferentes, apesar de essa mudança não ocorrer dentro de um único segmento do texto, é mais um elemento que suaviza – sem, contudo, anular – a adesão da peça à gramática realista.
Seja como for, a interação entre as personagens, ainda que considerando a excepcionalidade dos acontecimentos descortinados, está atrelada à fala do dia a dia. A concepção estética do espetáculo parece caminhar separadamente da peça. Ronald Teixeira propõe uma ambientação, bonita em si, distante da esfera cotidiana que marca o enfrentamento entre as personagens. A espacialidade – tomada por janelas e portas suspensas, folhas secas e malas (essas últimas, aliás, traduções imagéticas recorrentes em abordagens ligadas à passagem do tempo) – tende a seduzir a plateia, acomodada nas laterais do Teatro Poeirinha, com a cena disposta no centro.
A criação visual de uma montagem não precisa necessariamente obedecer às indicações da peça e nem deve se limitar a ser uma reprodução fidedigna desta. Em A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe, porém, a cenografia e os figurinos (a cargo de Ronald) dão a impressão de terem sido pensados para gerar não uma fricção, um atrito, e sim um certo efeito de contraste em relação à peça. Os figurinos (em especial, o usado por Guida Vianna na primeira parte) se impõem no espetáculo ao invés de se integrarem ao todo de maneira orgânica.
Leonardo Netto não resolveu esse descompasso, o que torna a encenação desagregada. Mas o diretor se mostra habilidoso na condução das atrizes. Guida Vianna, atriz de voz contundente e construções físicas realçadas, alcança notável interiorização, principalmente na segunda parte do espetáculo, quando projeta a ansiedade e a angústia da mãe, a carga de não-dito, por meio de olhar lancinante. Silvia Buarque dá vazão à agressividade e à receptividade das filhas em cada uma das partes sem incorrer em oposições reducionistas.
A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe é um espetáculo movido pelo desejo de surpreender a plateia, a julgar por uma assinatura estética envolvente, mas algo arbitrária, e por uma história que esconde um segredo, mas antecipado pelo espectador antes da revelação. Há, em todo caso, momentos em que Daniela Pereira de Carvalho transmite as experiências dolorosas que assombram as personagens através de poética delicada. O título da peça sinaliza essa qualidade, também presente em proposições artísticas, a exemplo das sutis gradações da iluminação de Paulo Cesar Medeiros, que compõem o espetáculo.
A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe – Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de Leonardo Netto. Com Guida Vianna e Silvia Buarque. Teatro Poeirinha (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb. às 20h, dom. às 19h. Ingressos: R$ 80,00 e R$ 40,00 (meia-entrada).