Um Hamlet sem subserviência
Cena de Hamlet, espetáculo que abriu a atual edição do Festival de Curitiba (Foto: Teatro La Plaza)
Em determinado momento da versão da companhia peruana Teatro La Plaza para Hamlet, perguntam ao ator Jaime Cruz se está em cena como Jaime ou como Hamlet e ele diz: como “Jaimlet”. A resposta sintetiza, de alguma forma, a proposta artística do espetáculo, escolhido para abrir o 31º Festival de Teatro de Curitiba, no palco do Guairão. Sob a condução da diretora Chela De Ferrari, responsável pela dramaturgia escorada na célebre peça de William Shakespeare, os atores, portadores de Síndrome de Down, se afastam de interpretações consagradas, tanto no que se refere ao texto original quanto ao modo de representar os personagens. Realizam uma apropriação, na qual, em certo grau, aproximam as questões que perpassam a obra da realidade que os atravessa.
O deslocamento no mundo é uma possível conexão entre o personagem Hamlet e os atores dessa montagem, ainda que não se deva perder de vista as diferenças. O descompasso de Hamlet com a maioria que o rodeia decorre de uma reverberação interna dos acontecimentos relacionados ao assassinato de seu pai. Já a distância imposta, com frequência. às pessoas com Síndrome de Down, habitualmente postas à margem da sociedade, surge do preconceito social diante de uma dada configuração física – portanto, de uma percepção restrita à aparência corporal, ao externo. Enquanto o protagonista de Shakespeare, a partir do instante em que é confrontado com a verdade revelada pelo fantasma do pai, acentua a falta de pertencimento ao contexto que o cerca, o elenco do Teatro La Plaza dá vazão a um espetáculo que reivindica uma justa integração.
Num plano geral, a montagem demonstra uma perspectiva crítica em relação a padrões estéticos pré-estabelecidos. Problematiza a limitação que normalmente confina os artistas, muitas vezes avaliados de acordo com o phisique du role. Em esfera mais localizada, esse trabalho nasceu da especificidade corporal comum aos atores, que se colocam como bloco e também individualmente. Todos têm Síndrome de Down e todos podem ser Hamlet. Não por acaso, o Hamlet que desponta no palco não é um só. O protagonista é partilhado pelo elenco, ao invés de feito por um único intérprete. Os atores, porém, não aparecem massificados, como conjunto indistinto, até porque uma mesma condição física é experenciada de maneiras diversas.
Fundado nas vivências concretas e subjetivas dos artistas, esse trabalho frisa sua autenticidade e evidencia uma natureza intransferível, na medida em que não há como outros atores simplesmente reproduzirem as marcações. Como constata Álvaro Toledo, que faz parte do elenco, após tentar imitar a movimentação física de Laurence Olivier no Hamlet de 1948, “para mim, copiar não é atuar”. Chela De Derrari não investe em caminhos mais seguros na abordagem da peça e estimula o elenco a se aproximar do texto numa jornada, nesse sentido, mais verdadeira. A verdade se constitui, inclusive, como a luta do personagem-título, que se vale do teatro como instrumento de denúncia. Afinal, é por meio de uma representação que Hamlet expõe aos demais as circunstâncias do assassinato de seu pai.
Nesse Hamlet contemporâneo e editado, que narra e encena a peça de Shakespeare, os atores (além dos citados Álvaro e Jaime, Cristina León Barandiarán, Diana Gutierrez, Lucas Demarchi, Manuel García, Octavio Bezerra e Ximena Rodríguez) usam roupas do dia a dia, sem qualquer ambição de fidelidade histórica. O olhar lançado sobre o texto é dessacralizado e o espetáculo busca a potência do inacabado, do esboço, do rascunho. Há constantes menções ao processo criativo, à fase de levantamento do trabalho. Não significa que a montagem não possua estrutura cênica, comprovada na própria presença dos atores e na interação com o multimídia que rende bons momentos, a exemplo da solução encontrada para a morte de Ofélia.
Nessa encenação de Hamlet, apresentada anteriormente no festival Mirada e no Sesc Consolação, o corpo é um elemento fundamental. Cabe destacar que o espetáculo começa com a imagem de um nascimento e termina com os atores verbalizando, apesar de brevemente, questões primordiais, em especial sobre a morte.