Ecos de Ibsen e Tchekhov
Apesar da distância no tempo e no espaço, Cerca Viva, texto de Rafael Souza-Ribeiro em cartaz no Teatro Firjan/Sesi, remete, em alguma medida, às dramaturgias do norueguês Henrik Ibsen e do russo Anton Tchekhov – em particular, suas peças Casa de Bonecas e As Três Irmãs.
Como o original de Ibsen – escrito nas últimas décadas do século XIX –, o texto de Rafael – produção recente, mas com história ambientada nos anos 1950 – destaca o processo de libertação de uma personagem feminina protegida numa espécie de redoma, em especial no que diz respeito à estrutura estável do casamento. Tanto a Nora, de Ibsen, quanto a Lúcia, de Rafael, cumprem, pelo menos até dado momento, as funções destinadas a uma esposa nos moldes tradicionais, ainda que a primeira tome iniciativas ocultas e que a segunda manifeste, na esfera conjugal, a insatisfação com um cotidiano quase imposto.
Os pontos de ligação entre os textos não excluem, logicamente, as diferenças. A questão da maternidade é um elemento em comum, que, porém, ganha desdobramentos distintos em cada peça. No polêmico final de Casa de Bonecas, Nora rompe não só com o casamento, mas com o convívio com os filhos, como necessidade de proclamar a sua independência e encontrar um lugar no mundo. Em Cerca Viva, a perspectiva da gravidez interfere na postura de Lúcia. Outro tópico de aproximação: o contexto econômico dos dois casais (Nora-Helmer/Lúcia-Luiz). Contudo, a situação financeira de Nora é mais sólida que a de Lúcia, levada a se mudar para uma cidade do interior, mesmo que com determinada projeção (Volta Redonda), devido às oportunidades profissionais do marido.
Cerca Viva também lembra As Três Irmãs, peça sobre personagens que não conseguem concretizar os próprios planos, como o ansiado retorno a Moscou, No texto de Rafael, Lúcia é uma mulher sufocada na província que sonha com a volta para a capital, status que o Rio de Janeiro portava na década de 1950. No interior chegam ecos da cidade cosmopolita (a rivalidade entre Emilinha Borba e Marlene) e do país (uma anunciada vinda do presidente da República), que geram frisson, mas insuficiente para apaziguar as expectativas.
Como nas peças de Tchekhov, o público se depara com existências frustradas, projetos abortados, vidas em suspenso. Regina é uma atriz retirada há anos do ofício. Lúcia se vê impossibilitada de exercer a profissão de professora de francês. Engenheiro, Luiz, o marido, fica decepcionado com o resultado do seu trabalho num instante fundamental. Talvez a nuance em relação às peças do autor russo resida no fato de que em Cerca Viva os personagens partem para a ação, mesmo que lentamente. De certo modo, Lúcia e Luiz caminham em sentidos opostos, mas ambos rumo ao desconhecido – ela ao desejar a autonomia na cidade grande, ele ao avançar para um Brasil cada vez mais remoto.
Se Ibsen e Tchekhov são autores apressadamente classificados como realistas, a montagem dirigida por Cesar Augusto coloca o realismo em tensão. Esse estranhamento se dá na cenografia de Elsa Romero e Luiz Henrique Sá, que traz a estrutura externa de uma casa, a moldura destituída de preenchimento, um pouco como a estabilidade ilusória dos anos 1950. E o afastamento do realismo ocorre ainda no registro interpretativo do elenco, estabelecido na construção da peça, que faz os atores transitarem entre a narração e a vivência das personagens, oscilação praticada com considerável fluência. Camila Nhary projeta, com contundência, o crescente descontentamento de Lúcia, mas sem reduzi-la a uma nota única, desprovida de variação. Angela Rebello, com apreciável timming, conserva na voz o glamour de atriz de Regina, resquício de uma época que não volta mais. Gabriel Albuquerque desenha, com precisão, o marido vinculado a tradições. Sávio Moll concilia, na composição de Valcir, trabalhador da região, o acento de humor com o peso de uma mentalidade reacionária.
Por meio desse último personagem, o autor parece buscar um elo com os dias de hoje, apesar de não haver, nesse texto, articulações diretas com a atualidade e de o pensamento retrógrado não ser exclusividade de um período específico. Cerca Viva é uma peça que transcende – sem diminuir a importância – a sua localização histórica, suscitando associações com um passado mais distante e com o presente. São características do texto devidamente valorizadas na montagem.
Cerca Viva – Texto de Rafael Souza-Ribeiro. Direção de Cesar Augusto. Com Camila Nhary, Angela Rebello, Gabriel Albuquerque e Sávio Moll. Teatro Firjan/Sesi (Av. Graça Aranha, 1). Seg. e ter. às 19h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada).