Ato de revelação
Em A Hora do Boi, montagem em cartaz no Teatro Poeirinha, há movimentos que estimulam a aproximação e o distanciamento do espectador. Por um lado, os realizadores procuram fazer com que o público estabeleça um envolvimento com a história, centrada no vínculo afetivo entre um capataz e um boi – vínculo ameaçado pelos interesses do patrão. Por outro, essa adesão emocional é dosada por meio de momentos de suspensão, nos quais o ator/personagem quebra a quarta parede e fala diretamente com a plateia, e por citações diversas e explícitas a escritores (Guimarães Rosa, Euclides da Cunha) e músicas (Cálice, Admirável Gado Novo).
Há, como se pode notar, uma ambição considerável movendo esse trabalho conciso. Na esfera temática sobressai o que deve estar na origem desse projeto, nascido de argumento do próprio ator, Vandré Silveira, e elaborado por Daniela Pereira de Carvalho, autora do texto: a conexão extracotidiana, a possibilidade de um elo lancinante entre um homem e um animal, transcendendo as limitações de uma realidade pragmática. O público acompanha a jornada de um homem em duelo interior, confrontado com uma estrutura de funcionamento perversa e mobilizado por um sentimento imperativo, incompreensível no universo que o rodeia.
As referências estão ligadas a esses conteúdos descortinados ao longo do texto. Não foram introduzidas de modo postiço na dramaturgia. A crueza de uma geografia singular remete a Os Sertões, de Euclides da Cunha. E o embate do homem consigo mesmo, o assombro frente ao impacto provocado pelo outro, evoca o monumental Grande Sertão: Veredas. Há mais elementos próximos da obra de Rosa, em especial a apresentação do ato de revelação de um homem através da desconstrução de sua couraça com o intuito de radiografar sua interioridade (sua alma?), perspectiva reforçada pela cenografia de Carlos Alberto Nunes, composta por carcaças de animais. Um homem mostrado ao avesso, conforme sugerido no figurino, a cargo de Nunes.
A maneira como as canções são inseridas na dramaturgia – ditas ao invés de cantadas – faz com que soem como um texto interno do capataz, perplexo diante do que sente. Mas, apesar de pertencente a um mundo duro e cruel, ele não permite que esse estado de estranhamento reprima suas ações, norteadas pela natureza visceral da comunicação com o boi, passionalidade realçada nos tons quentes da iluminação de Renato Machado e Anderson Ratto. A organicidade alcançada na encenação de André Paes Leme, refletida na integração entre as criações artísticas, contrasta com uma intencional artificialidade, evidenciada na determinação em descolar, em algum grau, o espectador da história, em lembrá-lo de seu lugar dentro de um acontecimento teatral que se assume como tal.
Esses diferentes planos lançados no texto e destacados na encenação – o dentro e o fora da história – também se materializam na interpretação de Vandré Silveira, que transita entre personagens distintos (ainda que não por todos, na medida em que a opressão do patrão surge simbolizada, em off, na voz de Claudio Gabriel) sem enveredar pelo exercício exibicionista do virtuosismo. Aliados importantes da atuação, a direção de movimento de Toni Rodrigues e Paula Aguas, marcante na parte final, e a preparação vocal de Claudia Elizeu.
A Hora do Boi é uma montagem que, sem se valer de procedimentos interativos, ativa a presença do espectador. Investe no envolvimento, mas evita que o trabalho seja acessado de forma inteiramente ilusionista.
A Hora do Boi – Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de André Paes Leme. Com Vandré Silveira. Teatro Poeirinha (R. São João Batista, 104). De qui. a sáb., às 21h, dom. às 19h. Ingressos: R$ 60,00, R$ 30,00 (meia-entrada).