Teatro do corpo e da morte
SANTOS – A sexta edição do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, que ocorreu na cidade de Santos no último mês de setembro, proporcionou ao público contato com uma cena de nacionalidades diversas. A produção brasileira foi representada por companhias como Imbuaça, Mungunzá, Elevador Panorâmico e de Heliópolis. Já no panorama estrangeiro, artistas renomados, como Guillermo Calderón e Sergio Blanco, e coletivos de variados países – entre eles, Portugal (nação homenageada), Argentina, Espanha e Peru. Diante do conjunto de espetáculos do festival surgem múltiplas possibilidades de recortes temáticos ou estéticos.
A conexão entre corpo e morte esteve presente, em medidas distintas, em algumas montagens, como Cuando Pases sobre mi Tumba, texto e direção de Sergio Blanco, Fuck me, com dramaturgia e direção de Marina Otero (também em cena), e Discurso de Promoción, trabalho do Grupo Cultural Yuyuchkani dirigido por Miguel Rubio Zapata.
Produção do Uruguai, Cuando Pases sobre mi Tumba traz o vínculo entre corpo e morte desde a sinopse. O dramaturgo Sergio Blanco se coloca como personagem da própria obra no que define como uma autobiografia ficcionalizada. No texto, Blanco é um personagem determinado a fazer suicídio assistido. Não há motivo aparente que justifique a decisão e, de qualquer modo, essa questão não é esmiuçada ao longo do texto. O foco recai sobre a relação entre o Blanco fictício e um jovem necrófilo. Não existe a intenção de estabelecer contato afetivo/sexual antes da morte de Blanco – só depois.
Há, como se pode perceber, uma projeção para além da vida, um sentido de transcendência. Essa característica é evidenciada desde o início da apresentação, quando os personagens discorrem sobre suas mortes. O mesmo acontece, ao final, com a descrição dos fatos posteriores ao falecimento de Blanco. Os personagens falam a partir do lugar da pós-morte, que os permite ter uma visão retrospectiva completa de suas jornadas. A finitude não é, em si, um encerramento, um limite.
Talvez por isso, os personagens relatem sobre suas próprias mortes de maneira contida, sem passionalidade. Surgem em cena bem vestidos e narram ao público suas experiências, distantes de arroubos viscerais. Fazem diante da plateia uma explanação não exatamente fria, mas algo asséptica. Também é o caso do personagem do médico no instante em que expõe acontecimentos terríveis de seu passado. É como se as tragédias que os atravessam não dissessem diretamente respeito a eles, como se fosse possível realizar uma espécie de descolamento. De certa forma é isso que Blanco faz ao transferir a um ator a função de interpretá-lo – a caminho da morte.
A conjugação entre corpo e morte é marcante na obra de Sergio Blanco e, não por acaso, outros textos dele são mencionados com constância. Em Cuando pases sobre mi Tumba são estimuladas associações com Tebas Land e, em especial, A Ira de Narciso. Na primeira peça, Blanco se inspira no Mito de Édipo para entrelaçar duas situações: a interação entre um dramaturgo e um jovem condenado por matar o pai; e o processo de ensaios do espetáculo concebido por esse autor junto a um jovem ator. Os maus-tratos físicos impostos pelo pai ao filho e a violência com que o filho mata o pai são elementos bastante importantes nessa peça. Na segunda, Blanco se vale do mecanismo da autoficção ao se colocar como um escritor que, em passagem por Liubliana para ministrar uma palestra sobre o Mito de Narciso, conhece um rapaz por meio de aplicativo e, após uma noite de sexo, se depara com uma mancha de sangue no tapete. As instâncias físicas de prazer e dor ganham destaque num texto que dialoga com a estrutura do suspense. Outra peça vem à tona – também interpretada por Gilberto Gawronski, que levou A Ira de Narciso ao palco: Ato de Comunhão, de autoria do italiano Lautaro Vilo. O texto foi concebido a partir do depoimento do técnico de computação Armin Meiwes, que afirmou ter devorado o engenheiro Bernd Jürgen com o consentimento deste. Centrado no elo visceral entre corpo e morte, o relato se tornou ainda mais perturbador na performance de Gawronski. E cabe lembrar de A Casa que Jack Construiu (2018), filme em que Lars von Trier promove associações entre corpo, morte e obra de arte por meio de um serial killer (papel de Matt Damon) que comete uma série de assassinatos e reúne os corpos na construção da casa perfeita que ambiciona.
Voltando à programação do Mirada, Fuck me, trabalho da Argentina, pode ser articulado com o teatro de Sergio Blanco ao trazer uma artista – Marina Otero – como personagem da própria obra. Aqui um dos bailarinos diz fazer o papel de Otero. O procedimento da transferência, portanto, é posto em prática. Além disso, os bailarinos receberam a incumbência de reproduzir coreografias de Otero. Mas não há como reproduzi-las. Por mais fiel que se procure ser, as apropriações e, consequentemente, as modificações em relação ao material original se tornam inevitáveis.
Ao contrário de Blanco, contudo, Otero não é “apenas” uma artista referida. Ela está em cena. Afirma que passou por uma cirurgia grave, por uma experiência próxima da morte. Por isso, se movimenta com contenção – daí a necessidade de transferir para os bailarinos a tarefa de dançar. No entanto, ela desconstrói, ao final, essa anunciada restrição ao apresentar um trabalho físico vigoroso e resistente, aparentemente disposta a testar os próprios limites. Otero fala sobre seu corpo. Descreve um corpo em sacrifício, mas ardente. É um corpo específico, assim como os de cada um dos bailarinos. Há uma preocupação em sinalizar que a percepção dos corpos não deve ficar reduzida a uma primeira impressão. Afinal, o corpo mais forte pode ser o mais sensível. Mas Fuck me é uma obra sobre corpos reveladores na instância da superfície, da aparência, do externo, do visível, do desnudamento literal (todos se apresentam nus, inclusive Otero).
Encenação do Peru, Discurso de Promoción também investe na conjugação entre corpo e morte. Joga luz sobre corpos invisibilizados, que não aparecem na pintura de um grande quadro oficial. No quadro não constam a violência sofrida pelos índios, a esterilização das mulheres, a exploração sexual de meninas e os demais excluídos sociais. A montagem demonstra adesão a uma inquietação contemporânea ao questionar a versão tradicional da história, que prioriza os dominadores em detrimento dos dominados.
O público é envolvido na comemoração da história oficial – relativa aos 200 anos de independência do Peru, realizada por diretores, professores e estudantes de uma escola. Na primeira parte do espetáculo é instaurada uma atmosfera de celebração eufórica. Em determinado momento ocorre a desconstrução dessa celebração e o público é deslocado, tanto espacialmente quanto da posição de participante de uma festividade esfuziante. A desconstrução de uma imagem idealizada e desvinculada de uma realidade caótica e massacrante é, de certa maneira, simbolizada pelos manequins compostos por partes desconexas que não se juntam num corpo uno, coerente. Intimamente atada à história do Peru, a encenação, porém, almeja uma abrangência planetária ao projetar imagens de autoridades opressivas, ditatoriais, espalhadas pelo mundo.
O corpo foi frisado nos espetáculos que integraram a programação do Mirada – na exposição de condições físicas particulares dos artistas, no revisionismo histórico e na concepção de narrativas ficcionais. Vale citar ainda Hamlet – trabalho do Teatro La Plaza, coletivo do Peru, uma apropriação dramatúrgica de Chela de Ferrai para a peça de William Shakespeare, com atores portadores de Síndrome de Down –, O que meu corpo nu te conta? – do Coletivo Impermanente, sob a direção de Marcelo Varzea – e BaqueStriBois – do Osikán / Vivero de Creación, de Cuba. Essas criações lembram que o teatro é uma manifestação artística atravessada pelo corpo e pela morte. No primeiro caso por se tratar da base do ofício do ator, seu instrumento de trabalho. No segundo porque uma apresentação nunca é igual à outra, na medida em que não há repetição possível. Nesse sentido, o encerramento de cada sessão de um espetáculo se impõe como um momento de luto por algo que jamais poderá ser recuperado.
Nelson Rodrigues de Souza
25 de outubro de 2022 @ 19:55
Uma pequena correção: quem fez “A Casa Que Jack Construiu” de Lars Von Trier foi Matt Dilon e não Matt Damon.
danielschenker
25 de outubro de 2022 @ 20:55
Muito obrigado, Nelson Rodrigues de Souza. Acabei de corrigir.