Questionamento subjetivo sobre o futuro
Karen Coelho em Onde estão as Mãos esta Noite (Foto: Bruno Batista)
No início do segundo ato de Esperando Godot há uma rubrica informando que a árvore, mencionada no começo do primeiro ato, agora tem quatro ou cinco folhas. Essa sinalização sugere que o tempo não se encontra congelado, apesar da estrutura circular da célebre peça de Samuel Beckett.
Em Onde estão as Mãos esta Noite, trabalho dirigido por Moacir Chaves e interpretado por Karen Coelho que está sendo apresentado em plataforma virtual, a repetição é elemento realçado num cotidiano aparentemente sem perspectivas em meio a uma sensação bastante esgarçada de tempo, a ponto de a “personagem” – não há uma personagem convencionalmente construída e a atriz insinua, em dados instantes, certo descolamento em relação a uma persona específica – mandar e-mails para si como modo de “preencher as horas que se acumulam”.
Mas, como em Esperando Godot, os dias repetitivos fazem com que diferenças sutis sejam percebidas. Até porque não há como repetir, da mesma maneira, aquilo que aconteceu. Uma constatação que, inclusive, diz respeito ao ofício do ator em teatro, manifestação artística problematizada nesse período de pandemia no qual o encontro presencial entre atores e espectadores se revela impossível. Se, de acordo com o clichê, o teatro nasce e morre a cada noite diante do espectador, talvez caiba, aqui, destacar mais a questão da morte, tendo em vista que uma apresentação nunca será semelhante à outra. Pode ser melhor, mas não dá para fazer exatamente igual. Não há como trilhar pontes em direção ao passado.
Em todo caso, existe um evidente encaminhamento rumo a interrupção de uma aparente estagnação. A neutralidade do figurino vai sendo, aos poucos, decomposta à medida em que a “personagem” inclui adereços e muda a expressão do rosto, aparentemente com a intenção de sair e romper um estado, concreto e subjetivo, de isolamento. Essa circunstância atual – traduzida por meio de termos como extinção e medo, de impressões como a de “pessoas correndo da morte”, da preocupação em ressaltar a importância de “seguir vivo e não desaparecer” – culmina numa pergunta que transcende a projeção prática da administração da vida cotidiana no futuro: “onde vamos pôr as mãos quando estivermos novamente uns diante dos outros, quando estivermos diante da liberdade?”
Sob a condução de Moacir Chaves, Karen Coelho se mantém “próxima” do espectador virtual desde o momento em que entra no cômodo de casa e posiciona a cadeira perto da câmera. Por meio do aparato tecnológico, a atriz, geograficamente distante dos espectadores, gera uma sensação de proximidade. O movimento de proximidade se materializa de forma mais contundente quando a atriz se coloca diante da câmera em close, como se quisesse suprimir o distanciamento – objetivo inviável do ponto de vista concreto, mas não do subjetivo, a julgar pela reverberação que um trabalho, ainda que virtual, pode provocar no espectador. Há, claro, uma alteração da dinâmica própria do teatro presencial, não só no que se refere à interação entre quem está em cena e quem está na plateia como dos espectadores entre si. O formato, porém, aproxima o multimídia do presente. É uma apresentação realizada no instante imediato, ao contrário do cinema, uma arte vinculada ao passado que reprisa constantemente as mesmas imagens diante de espectadores que, contudo, as vivenciam de maneira inédita.
A sensação de proximidade dos espectadores em relação à atriz promovida pela câmera permite a observação de um trabalho detalhista, minucioso, própria a salas de porte reduzido. Uma possibilidade que compensa, pelo menos em parte, a frieza decorrente do fato de a encenação não acontecer como uma experiência comum, na qual todos os envolvidos partilham o mesmo espaço. Os movimentos físicos de Karen Coelho não ilustram o texto. Eventualmente, simbolizam o que é dito, mas sem reiterar os sentidos das palavras. Durante a maior parte do tempo, prevalece a formalização de um gestual construído (há um breve desarme da expressão, logo no início), que frequentemente sugere aprisionamento, angústia, agonia – características reforçadas pela execução em ritmo frenético.
O registro interpretativo se afasta do naturalismo, contrastando, em algum grau, com uma concepção espacial, que dialoga com o realismo, do cômodo onde a “personagem” se encontra. Mas, também acerca da espacialidade (direção de arte de Luiz Wachelke), a construção chama atenção, pela escolha dos elementos, pela disposição dos mesmos e pelo predomínio de determinadas cores. Onde estão as Mãos esta Noite se impõe como uma proposta dentro de um formato que certamente não substitui o acontecimento teatral ao vivo, mas suscita instigantes articulações.