Nuances de um teatro sintético
Ricardo Martins e Roger Gobeth em Maratona de Nova York (Foto: Renato Mangolin)
As montagens de Billdog 2, dirigida por Gustavo Rodrigues e Joe Bone (com supervisão artística de Guilherme Leme Garcia), e Maratona de Nova York, por Walter Lima Jr., em cartaz, respectivamente, no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil e na Casa de Cultura Laura Alvim, se conectam na prática de um teatro destituído de elementos dispersivos, no que diz respeito aos reduzidos recursos de cena, e na concentração nos trabalhos de atores, que se submetem à exaustão física.
A exigência sobre o corpo é lançada pelos dramaturgos – o inglês Joe Bone, autor de Billdog 2, e o italiano Edoardo Erba, que assina Maratona de Nova York – em propostas diversas. No primeiro caso, o ator (Gustavo Rodrigues) é desafiado a se multiplicar em dezenas de personagens, que interagem de maneira incessante ao longo do texto; no segundo, os atores (Roger Gobeth e Ricardo Martins), que interpretam personagens individualizados (Steve e Mario), são incumbidos de passar quase toda a apresentação em movimento constante, tendo em vista que os dois dialogam enquanto treinam para a maratona do título.
A filiação a um teatro econômico, calcado na figura do ator, não anula a possibilidade de concepções cênicas arrojadas. Apesar das cenografias e dos figurinos resumidos ao básico, fiéis às visualidades sinalizadas nos textos, os espetáculos têm na iluminação criações de destaque. Em Billdog 2, a luz (de Aurélio de Simoni) avoluma, adensa, produz atmosfera na cena (com a contribuição do músico Tauã de Lorena, que executa a trilha sonora composta por Ben Roe). Em Maratona de Nova York, a luz (de Wagner Pinto) sugere o percurso percorrido pelos personagens, transcendendo, porém, a esfera do concreto.
Os atores se veem diante de riscos diferentes. Gustavo Rodrigues revisita as características do primeiro Billdog e oferece ao público um exercício de versatilidade que realiza com dedicação contundente. O ator particulariza o desenho de cada personagem e comprova domínio de suas potencialidades expressivas. Ao não recorrer a figurino e maquiagem para distinguir as personagens (o que provavelmente não seria possível devido à quantidade deles), o ator acentua a natureza teatral, o que contrasta com o elo do texto de Bone com manifestações artísticas distintas, como o cinema e os quadrinhos. Em que pese o caráter sintético do projeto, as referências, o número de personagens e o enredo intrincado geram, ao contrário, uma impressão de excesso. De qualquer modo, tanto esforço merecia ser canalizado para um material dramatúrgico menos estéril, dada a sensação de vazio que atravessa a jornada do protagonista matador. A atenção do público é sustentada pela atuação de Gustavo Rodrigues e não pela trama descortinada diante dos seus olhos, que dificilmente deixa maiores lembranças no espectador.
Gustavo Rodrigues em Billdog 2 (Foto: Guarim de Lorena)
Em Maratona de Nova York, os atores correm durante grande parte da apresentação. Na história do teatro, encenadores defenderam a exaustão do ator como meio para alcançar o desbloqueio, a libertação da necessidade de manter o controle. Mas aqui o treinamento se torna o fim. O condicionamento físico é importante para que os atores suportem a empreitada e, sobretudo, para permitir que o cansaço – próprio de personagens que parecem evoluir rumo à superação dos limites do corpo – não seja o único dado determinante na forma de dizer o texto de Erba (em tradução de Beti Rabetti). As intencionalidades dos personagens – um mais enérgico e revoltado, o outro mais frágil e vulnerável, ambos trazendo à tona fragmentos de suas vidas – devem ser preservadas para além do esgotamento corporal, preocupação perceptível nas atuações de Roger Gobeth e Ricardo Martins, que obedecem as marcações dinâmicas da cena, evidenciadas nas variadas disposições espaciais da corrida.
Billdog 2 e Maratona de Nova York despontam como encenações que representam um teatro voltado para o mínimo, centrado no ator, arquitetado em seu despojamento, ainda que até mesmo esse perfil seja eventualmente problematizado nas realizações.