Corpos em agonia e êxtase
A Armazém Companhia de Teatro vem investindo, ao longo do tempo, no texto, seja no que se refere ao material produzido dentro do grupo, seja no que diz respeito a peças fechadas assinadas por dramaturgos renomados que ganham leituras autorais do coletivo. Com Angels in America, em cartaz no Teatro Riachuelo, a companhia realiza, possivelmente, sua empreitada mais ambiciosa ao encenar as duas partes (O Milênio se Aproxima e Perestroika) da obra de Tony Kushner, que podem ser assistidas em separado ou em sequência, experiência que soma cinco horas de duração.
A montagem dirigida por Paulo de Moraes acompanha, de certa maneira, a estrutura do texto, que oscila entre a radiografia de uma determinada época e a suspensão do real. Kushner propõe uma imersão na Nova York da era Reagan, com os acontecimentos do mundo interferindo diretamente nos relacionamentos, a julgar pelo surgimento da Aids e pelo conflito ideológico entre democratas e republicanos. Os textos – traduzidos por Maurício Arruda Mendonça, dramaturgo da companhia – entrelaçam as jornadas de dois namorados, um deles com Aids, de um advogado com perfil onipotente (Roy Cohn), confrontado com a própria impotência à medida em que a doença toma conta de seu corpo, e de outro advogado, casado, que se descobre homossexual. Submetidos ao abandono ou à aridez emocional, eles estabelecem surpreendentes vínculos de afeto com desconhecidos. Apesar da concretude do panorama descortinado – com direito à “presença” de figuras reais, como Cohn e Ethel Rosenberg –, a corporificação do irreal (anjos, morte) também irrompe em cena, indicando que o autor conjuga as situações vivenciadas pelos personagens no cotidiano com seus instantes de sonho ou delírio, que, contudo, refletem bastante suas condições existenciais.
Não por acaso, Paulo de Moraes não concebe uma cena a partir de moldura realista. A opção decorre da dificuldade de reconstituir cada ambiente onde a história se desenrola. Mas não só isso. Está ligada à trajetória de uma companhia que privilegia o simbólico, o caráter sugestivo das imagens. O diretor, responsável pela cenografia ao lado de Carla Berri, cria uma cena destituída de excessos, composta por banco, ventiladores e um teto rebaixado, que, à primeira vista, sinaliza opressão, impressão, porém, que contrasta com as imagens exibidas (céu, água), a cargo de Rico e Renato Vilarouca, sobre essa superfície. Maneco Quinderé valoriza a luz horizontal, posicionada nas laterais da cena, destacando tanto os momentos intimistas por meio do foco quanto os catárticos através do movimento feérico da iluminação, com uso contido de cores fortes. Os figurinos de Carol Lobato não se limitam à evocação do universo yuppie. Há uma intencional estranheza na sobreposição de tonalidades, às vezes sutis, nos trajes.
Os atores realçam as características centrais dos personagens. Jopa Moraes transmite a tenacidade de Prior Walter no apego à vida. Lisa Eiras materializa o rito de passagem de Harper Pitt. Luiz Felipe Leprevost projeta com firmeza a inconstância emocional de Louis Ironson. Marcos Martins tem intervenções mais discretas. Patrícia Selonk marca sua interpretação por relativa contenção, seja quando evidencia a composição (o Rabino), seja quando os traços das personagens se mostram mais suavizadas (Hannah Pitt e Ethel Rosenberg). Ricardo Martins imprime crescente consistência dramática ao percurso desestabilizador de Joe Pitt, cabendo chamar atenção para a cena do primeiro encontro presencial com a mãe. Sérgio Machado potencializa a amoralidade de um sempre enérgico Roy Cohn. Thiago Catarino se afasta um pouco de um registro realista, em participações nas quais o corpo sobressai de modo mais intenso.
Vale lembrar que o corpo virtuoso é uma das diretrizes do trabalho da Armazém Companhia de Teatro, que promove a conexão entre vertentes apenas aparentemente destoantes: o teatro físico e o da palavra. Em Angels in America, o texto, pelo volume e pela densidade, impera. Mas a obra de Kushner coloca o espectador diante de corpos em agonia, devido à doença, e em êxtase, ao realizarem desejos até então reprimidos. E no espetáculo de Paulo de Moraes o corpo permanece como importante elemento constitutivo da cena.