Figuras sem rosto num mundo claustrofóbico
FESTIVAL DE CURITIBA – Chão de Pequenos, montagem da Companhia Negra de Teatro, de Belo Horizonte, apresentada no Festival de Curitiba, é estruturada a partir da conciliação de procedimentos contrastantes: a concretude dos depoimentos em off sobre a problemática da adoção e a movimentação poética dos atores que dimensiona, sem reiterar, o desamparo dos personagens, dois meninos, um negro e um branco, confinados, à espera de uma família que os acolha.
Os diretores Tiago Gambogi e Zé Walter Albinati propõem uma espessura entre esses planos, um voltado à documentação da realidade e o outro mais aberto à subjetividade, à livre interpretação do espectador. À medida que a encenação avança, aumenta a fricção entre as diferentes camadas de leitura porque os dois extremos – os depoimentos e a partitura corporal diretamente relacionada à dança – são cada vez mais realçados.
A articulação entre vertentes distintas, revelada na construção da cena, já está presente na dramaturgia (assinada pelos atores Felipe Soares e Ramon Brant e por Ana Maria Gonçalves, estimulados por provocação de Grace Passô) que, desenvolvida a partir de um esquete, entrelaça o individual (as jornadas de personagens singulares, com suas dores particulares) e o coletivo (os personagens como símbolos de uma condição no mundo e não como pessoas isoladas). Certas referências podem vir à tona, seja no que diz respeito a textos que mesclaram o dramático com o épico, como em determinada fase do Teatro de Arena, seja a peças ligadas ao universo dos personagens, como Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos. Mas essas evocações se diluem no decorrer da sessão. O texto segue outros caminhos, afastando-se, por exemplo, da crueza constante da dramaturgia de Marcos.
Gambogi e Albinati fazem com que as criações que integram a encenação não se restrinjam à contextualização dos personagens. Extraem expressividade da síntese. Os figurinos de Bárbara Toffanetto são compostos por blusas gastas e dotadas de elasticidade que permite que os atores/personagens se fechem dentro delas. Tornam-se figuras sem rosto, o que acentua a sensação de claustrofobia e falta de identidade diante de um mundo que os rejeita. A cenografia de Albinati é formada por dois pequenos armários utilizados como refúgios onde ambos dormem. Associada ao cenário, a iluminação de Cristiano Diniz projeta imagens de cela, valorizando as perspectivas limitadas dos personagens. A trilha sonora de GA Barulhista se aproxima mais do âmbito do sonho, da suspensão do cotidiano, do que da afirmação do real. Também responsável pela direção de movimento, Gambogi conduz os atores em coreografia sincronizada, que sugere trajetórias parecidas, mas não idênticas, conforme destacado ao final, quando o destino de cada um aponta para rumos divergentes. Por isso, a dança não foi concebida como um espelhamento perfeito entre os atores.
Uma montagem como Chão de Pequenos demonstra sintonia com uma das principais questões debatidas durante o Festival de Curitiba: a conexão entre teatro e dança. Uma tendência constatada através da inclusão, na Mostra Oficial (no Fringe é difícil verificar, dada a extensão da programação), de espetáculos de dança, casos de Olympia, O que Podemos Dizer do Pierre, solos de Vera Manteiro, Para que o Céu não Caia, de Lia Rodrigues, Protocolo Elefante, do grupo Cena 11, e Quando se Calam os Anjos, da Curitiba Cia. de Dança.
Não são poucos os trabalhos que investem no intercâmbio entre manifestações diversas, que apostam na derrocada das características delimitadoras de cada arte. A conjugação é, sem dúvida, fundamental, mas talvez caiba perguntar se a preservação de fronteiras (de alguma fronteira) entre as artes implica necessariamente em reducionismo, em banalização de suas potencialidades criativas. Até que ponto o tensionamento de definições padronizadas deve levar à anulação das especificidades de cada arte?
É uma indagação que transcende essa montagem, que evidencia o emprego teatral dos elementos inseridos no palco. Chão de Pequenos realiza uma combinação provocativa, não exatamente orgânica entre os planos (a dança, o texto, o off), tendo em vista que, ao invés de se dissolverem, permanecem expostos, em intencional atrito.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br