Corpos confrontados com o limite
Deborah Evelyn é Amanda em Fluxorama (Foto: André Gardenberg)
Reunião de solos escritos por Jô Bilac, Fluxorama foi encenado anteriormente com proposta diversa, na qual atores (Inez Viana, Rita Clemente e Vinicius Arneiro) dirigiam uns aos outros. A nova montagem, em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), ganhou o acréscimo de mais um monólogo (Medusa) aos três já existentes (Amanda, Luiz Guilherme e Valquíria) e é assinada por uma única diretora – Monique Gardenberg – que conduz quatro atores – Deborah Evelyn, Emílio de Mello, Luiz Henrique Nogueira e Marjorie Estiano (os dois primeiros entraram no lugar de Juliana Galdino e Caco Ciocler, que fizeram a temporada paulistana).
Bilac parece ter se inspirado ao longe no irlandês Samuel Beckett. O otimismo da Winnie de Dias Felizes, inquebrantável apesar dos movimentos cada vez mais reprimidos devido ao corpo paulatinamente soterrado, vem à tona na jornada de Amanda. Talvez pela perspectiva concreta da morte diante dos crescentes impedimentos físicos, ela procura manter contato, nem sempre entusiasmado, com aqueles que a rodeiam, com tudo o que resta. A perda gradual dos sentidos estimula a sua imaginação, a invenção de uma realidade paralela.
Luiz Guilherme, mais do que se opor à finitude, recusa-se a morrer deprimido. Ele sofreu um grave acidente de carro. Imobilizado e ferido dentro do automóvel, tenta não se desesperar. Para tanto, adota postura, até certo ponto, racional por meio da enumeração dos afazeres do cotidiano. Não consegue, porém, deixar de lembrar de um relacionamento intenso.
A derrocada do controle decorrente da exaustão da maratonista Valquíria, manifestada através da expressão de palavras desconexas, evoca o monólogo ininteligível de Lucky em Esperando Godot ou a desarticulação entre o movimento da boca e o pensamento em Eu Não. Em Medusa, o personagem também demonstra dificuldade para domar o fluxo de pensamento. Afinal, não atinge concentração suficiente para abstrair os ruídos externos (e internos) em momento de meditação.
A maioria dos personagens se torna menos inteligível à medida que os solos avançam. A desconexão não está presente “apenas” nos discursos, mas na própria forma da escrita (o programa do espetáculo reúne as quatro pequenas peças), que valoriza as reticências em detrimento de estruturas mais conclusivas. Com exceção de Amanda, a construção dramatúrgica que soa mais sólida, os textos de Fluxorama evidenciam um grau de dispersão que pode afastar o espectador. Contudo, a dispersão é uma espécie de defesa dos personagens diante do confronto com a morte ou, pelo menos, com situações extremadas.
Centrados em corpos levados ao limite, os textos de Bilac oferecem desafios interessantes e contrastantes aos atores, em especial no que se refere à inação de Luiz Guilherme, personagem de Luiz Henrique Nogueira, e à corrida sem trégua de Valquíria, papel destinado a Marjorie Estiano. Deborah Evelyn dosa com habilidade as gradações emocionais em Amanda e Emílio de Mello comprova seu domínio interpretativo em Medusa.
Monique Gardenberg imprime bom acabamento ao espetáculo, a julgar pelas projeções da cenografia de Daniela Thomas e Felipe Tassara (com coordenação de Camila Schmidt) que contextualizam de maneira detalhada as histórias (a sala em Amanda, a floresta em Luiz Guilherme, as ruas de São Paulo, à noite, em Valquíria e o banheiro em Medusa), pelos figurinos de Cassio Brasil, adequados aos perfis e às circunstâncias dos personagens, pela iluminação, a cargo da diretora, reveladora de variações sutis, e pela música de Philip Glass, que emoldura a cena.
carmattos
25 de fevereiro de 2017 @ 01:28
Esta peça é ótima e a montagem, excelente. Palavra de irmão isento 🙂