História escrita a sangue
Cena de Leite Derramado, montagem de Roberto Alvim para o livro de Chico Buarque (Foto: Edson Kumasaka)
Nessa transposição do romance homônimo (Leite Derramado) de Chico Buarque para o palco, apresentada recentemente no Teatro Sesc Ginástico, o diretor Roberto Alvim percorre, por meio do protagonista, o aristocrata centenário Eulálio D’Assumpção, “um labirinto de 500 anos”. O personagem externa saudade do glamour do passado e perplexidade diante das transformações decorrentes da passagem do tempo (“Acabo de me lembrar que o casarão não existe mais”, “O jardim virou estacionamento da embaixada da Dinamarca”).
O apego a um período de pompa e a desconexão com o presente – características de Eulálio, que ficou reduzido a um “rosto na moldura dourada” – evocam a dramaturgia de Anton Tchekhov. Contudo, mais do que o contraste entre passado e presente, Buarque capta – e Alvim ressalta nessa sua versão cênica – a perpetuação do preconceito, da lógica da exclusão, questão que pode remeter, longinquamente, ao virulento cinema de Sergio Bianchi, em especial ao filme Quanto Vale ou é por Quilo? (2005). Trata-se de um discurso potente, mesmo que realçado com certa reiteração durante o espetáculo. De qualquer modo, Roberto Alvim estabelece uma relação criativa com a obra original, procurando extrair um sumo, a partir de uma leitura autoral, ao invés de se limitar a descortinar um enredo diante do público.
O diretor assina uma montagem rigorosa, valorizada pelo trabalho de Juliana Galdino. A atriz incorpora Eulálio, personagem que porta o acúmulo de seus descendentes. Mas a incorporação não deve ser entendida como ausência de técnica. Ao contrário, a técnica se manifesta nos primeiros momentos da atriz em cena, como se a construção não tivesse sido encoberta por completo, impressão, porém, que logo se desfaz. A atuação de Galdino, minuciosa desde a sua aparição inicial, se torna rapidamente orgânica. Caio D’aguilar, Diego Machado, Luís Fernando Pasquarelli, Marcelo Gritten, Nathalia Manocchio, Renato Forner e Taynã Marquezone evidenciam integração à proposta do espetáculo, centrado, em todo caso, no inegável domínio interpretativo de Galdino.
Como Galdino, Eulálio ocupa um lugar absoluto na cena. No começo da montagem, atores surgem com máscaras que parecem escafandros. Uma despersonalização que acentua a figura de Eulálio, apesar de, como os demais personagens, ele despontar mais como símbolo de uma determinada visão de mundo do que propriamente como uma individualidade. O protagonista traz à tona uma perspectiva histórica – mas nem didática, nem linear (“As pessoas vão se amontoando de qualquer jeito na vida da gente”) –, também sugerida na cenografia, a cargo do próprio Alvim, na qual os muros se impõem como uma sucessão de barreiras. A iluminação de Domingos Quintiliano oscila entre o glacial e o pulsante, destacando, no segundo caso, a continuidade de uma história escrita a sangue.