A personagem como identidade
Suzana Castelo e Darwin Del Fabro em Lili (Foto: Lucio Luna)
Em Lili, texto de Walter Daguerre inspirado nos diários de Lili Elbe – que nortearam o filme Garota Dinamarquesa (2016), de Tom Hooper – a noção de personagem vem à tona não como uma máscara postiça portada por aquele que atua. Ao contrário, a personagem se constitui, aos poucos, como identidade. É o que se pode notar na trajetória de Einer Wegener, que começou a posar para as telas da esposa, Gerda Gottlieb, e, de início de forma despretensiosa, passou a usar trajes femininos em eventos sociais. Mas Einer se identificou cada vez mais com a alma feminina até se perceber como “uma mulher trancafiada num corpo de homem”. Decidiu, então, realizar a cirurgia de troca de sexo numa época (as primeiras décadas do século XX) embrionária em relação aos estudos nesse terreno.
A montagem de Susana Ribeiro, em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, descortina Einer por meio da instalação de fios que integra o cenário de Beli Araujo, uma espécie de biombo transparente que potencializa a ideia da personagem como instância reveladora, ao invés de ocultadora, do indivíduo. Einer atua como mulher. A atuação, porém, não se reduz a um fingimento; leva, isto sim, a um encontro com a sua verdade, a um apaziguamento do descompasso entre corpo e alma, tema abordado com bastante propriedade no filme Vera (1987), de Sergio Toledo. Esses conteúdos também são realçados pelas transparências, constantes durante a encenação, presentes nos diversos véus e nos figurinos de Antônio Medeiros (cabendo, em todo caso, fazer restrição ao primeiro concebido para Gerda). Rodrigo Belay insere a cor através da iluminação à medida que o espetáculo avança e a música de Ricco Vianna é mais interveniente que o necessário.
Nessa montagem destinada a dois atores, Darwin Del Fabro apresenta gradações mais sutis que Suzana Castelo, mas essa diferença decorre, pelo menos em parte, do fato de Einer despontar como um personagem mais nuançado que Gerda. De qualquer modo, as atuações são valorizadas pela direção de movimento de Renato Vieira, determinante em algumas cenas, como a da cirurgia. Lili se conecta a trabalhos recentes voltados para o campo da sexualidade, como Tran_se, com Joelson Gusson, e Lady Christiny, com Alexandre Lino. Cada uma das encenações possui certas especificidades. Em Lili, a produção artística – as telas de Gerda, os diários de Einer ou ainda o corpo dele, uma obra em transformação – está em pauta ao longo do processo de transição física atravessado pelo personagem.