Coerência e contraste
Depois de Incêndios, o dramaturgo libanês Wajdi Mouawad confirma, em Céus, a determinação em reler a tragédia grega à luz da contemporaneidade. Essa influência não se manifesta tão-somente nos desdobramentos extremados das relações entre pais e filhos destacados nesse texto, centrado nos esforços de uma equipe – formada por Blaise Centier, Charlie Eliot Johns, Vincent Chef-Chef, Dolores Haché e pelo novo integrante, Clément Szymanowski, o único capaz de elucidar o misterioso desaparecimento de Valery Masson – para desarticular um atentado terrorista. O elo com a tragédia vem à tona, em especial, no contraponto entre a firmeza individual e a regra instituída, que remete ao confronto entre indivíduo e Estado frequente nas tragédias gregas, realçada aqui no instante em que Chef-Chef é convencido pelo grupo a dar continuidade ao trabalho, a despeito das ordens para interrompê-lo.
Mouawad intercala esferas de ação: há os personagens superiores em hierarquia aos que estão em cena, mencionados, mas invisíveis aos olhos dos espectadores, e os personagens propriamente ditos da peça, confinados num bunker, captados em conjunto (unidos ou em conflito, porém engajados no objetivo comum de deter o atentado) e em separado em seus universos privados. Diretor da montagem (e atuando no vídeo como Masson) em cartaz no Teatro Poeira, Aderbal Freire-Filho entrelaça esses planos com habilidade num espetáculo marcado por ritmo azeitado.
Como em outras montagens assinadas por Aderbal é possível perceber uma tendência do encenador a se afastar da dinâmica realista. Os procedimentos que colocam o realismo em tensão nem sempre se revelam orgânicos, a julgar pelas breves inclusões do público na cena e pelas sugestões de espelhos falsos (na tela de fundo que compõe o cenário ocorrem projeções de imagens de espectadores diversos dos que estão assistindo ao espetáculo).
Há uma austeridade que atravessa a montagem, particularidade que também guarda conexão com a tragédia, presente na cenografia de Fernando Mello da Costa, nos figurinos de cores neutras (só o de Eliot Johns destoa um pouco dessa condução) de Antônio Medeiros e na iluminação de intensidade medida de Maneco Quinderé. Já a música de Tato Taborda contrasta com a secura das demais criações ao evocar a leveza de números circenses, escolha que atrita de modo interessante com o suspense crescente da peça de Mouawad, dado valorizado na encenação de Aderbal, que, contudo, toma o devido cuidado para não mirar apenas no caráter de trama evidenciado no texto.
O resultado alcançado junto aos atores, que permanecem nas laterais do espaço quando seus personagens estão fora do foco da ação, é irregular. Isaac Bernat transmite segurança como Centier, líder inicial das operações, em interpretação destituída de excessos. Rodrigo Pandolfo potencializa no corpo a inquietação e o descontentamento de Chef-Chef, elementos imperantes na virada do personagem. Charles Fricks estabelece contracena fluente com o filho, Viktor (Antonio Rabelo, em vídeo), mas se distancia da contenção própria da tragédia com o derramamento emocional de sua cena final. Silvia Buarque imprime máscara dramática que sublinha a carga de Haché. Felipe de Carolis procura dimensionar o deslocamento de Szymanowski dentro do grupo, o que justifica, em parte, certa linearidade numa atuação que, de qualquer maneira, poderia ser mais nuançada.
Em Céus, o público deve reconhecer características da dramaturgia de Mouawad e da direção de Aderbal (que esteve à frente de Incêndios), o que não significa que esse espetáculo se apresente como uma mera repetição de propostas.