Luminosidade triste que atravessa gerações
Marcelo Morothy e Virgínia Buckowski em Cais ou Da Indiferença das Embarcações (Foto: Ale Cabral)
Em Cais ou Da Indiferença das Embarcações, Kiko Marques, autor do texto, concilia as instâncias do dramático e do épico ao focar nas jornadas de personagens específicos – pertencentes a diferentes gerações que moram em Ilha Grande ou seguem vinculados a essa localidade depois de terem saído de lá – e, a partir das trajetórias deles, apresentar um breve panorama do Brasil ao longo de décadas do século XX (as menções ao presídio, as referências ao comunismo). A história é narrada (por um barco, que “sabe” de tudo, papel de um ator que permanece com o texto na mão, “fora” da cena) e, ao mesmo tempo, vivenciada pelos personagens. No primeiro caso impera o passado (ou o passado presentificado pelo ato de contar), próprio da narração; no segundo, a sintonia com o aqui/agora, com o instante imediato da revelação dos acontecimentos.
A saga não é disposta em ordem cronológica. Há um constante vai e vem de épocas. Mas as três gerações de personagens que integram a “trama”, desencadeada a partir de um relacionamento extraconjugal, são expostas com bastante clareza. Talvez o intuito de Marques com o rompimento da estrutura tradicional, linear, dos planos temporais seja levar o público a perceber que o presente é atravessado por reverberações do passado. O autor propõe articulações entre as gerações e faz com que os personagens contemplem a si mesmos em períodos distintos e se vejam em perspectiva, graças a certo distanciamento histórico. Marques procura destacar personagens atados aos imbróglios familiares. O passado é herança, e, às vezes, âncora. Além disso, a julgar pela cena final, a história não se desenvolve em linha reta, mas se repete, indefinidamente, num círculo sem fim. O autor assina um texto de teor poético, evidenciando que seu objetivo não se resume a mostrar desdobramentos algo novelescos.
Montagem da Velha Companhia dirigida por Kiko Marques (também no elenco), em cartaz apenas até domingo no Mezanino do Sesc Copacabana, Cais ou Da Indiferença das Embarcações prima pelas escolhas discretas, mas expressivas, a exemplo da música suave (tocada ao vivo por Bruno Menegatti e Tadeu Mallaman), da luz triste – dos verões – que domina a cena (iluminação de Alessandra Domingues), dos figurinos que evocam, sem sublinhar, épocas e do cenário sugestivo do cais do título, potencializando a importância do mar para os personagens (ambos os quesitos, criações de Chris Aizner). Não por acaso, o barco adquire especial relevância como elemento simbólico, familiar, afetivo por concentrar tempos.
Apesar das pequenas variações de rendimento, as interpretações dos atores (Alejandra Sampaio, Kiko Marques, Marcelo Diaz, Marcelo Laham, Marcelo Morothy, Marco Aurélio Campos, Maurício de Barros, Patrícia Gordo, Roberto Borenstein, Rose de Oliveira, Tatiana de Marca e Virgínia Buckowski) são preenchidas de intencionalidades. Há cuidado em evitar a caricatura nas composições mais marcadas. Cais ou Da Indiferença das Embarcações valoriza o ato de contar (e escutar) uma história, um prazer antigo sintetizado ao final, quando os atores se distribuem pelo espaço para simplesmente acompanhar a fábula descortinada diante de todos.