A ampliação do horizonte teatral
Cidade Correria, montagem do Coletivo Bonobando, em cartaz até segunda-feira no Espaço Cultural Sergio Porto (Foto: Maira Barillo)
Em determinado momento de Cidade Correria, encenação do Coletivo Bonobando que encerra temporada na próxima segunda-feira no Espaço Cultural Sergio Porto, o palco é dividido com fita em pequenas áreas. Os espaços se tornam compartimentados e os territórios, minados. A imagem desponta como a espinha dorsal desse trabalho, centrado na realidade de uma cidade cindida como o Rio de Janeiro, na qual as regiões mais valorizadas (Zona Sul e Centro) concentram grande parte das atenções (não por acaso, da atividade teatral) e as demais ficam condenadas ao quase esquecimento. Um quadro discriminatório que dificulta o acesso a realizações de grupos oriundos da periferia – como esse, criado em 2014 em residência artística no Teatro da Laje, na Arena Carioca Dicró, na Penha, como informa o programa do espetáculo, a Cia. Marginal, do Complexo da Maré, responsável por montagens como Ô, Lili e, mais recentemente, Eles não usam Tênis Naike, e o Grupo Código, de Japeri, só para citar outros exemplos –, seja pelos obstáculos enfrentados para conseguir penetração no meio mais abastado, seja pela reduzida disponibilidade do espectador para se distanciar do circuito da cidade ao qual se acostumou.
Mesmo apresentado num espaço fechado, Cidade Correria destaca a geografia do Rio de Janeiro, perspectiva evidenciada ao longo do espetáculo, como na cena em que a participação do público é requisitada (sem interatividade artificial) para trazer à tona a dinâmica territorial da favela (ruas ou vielas) e o instante em que ator afirma morar na “favela da favela”. Ainda que as experiências pessoais tenham servido de matéria-prima na estruturação desse trabalho dirigido por Adriana Schneider e Lucas Oradovschi, a montagem não segue trilha tradicionalmente confessional. Concebida em criação coletiva a partir dos textos O Bebê de Tarlatana Rosa, de João do Rio, A Última Chuva do Prisioneiro, de Mia Couto, O Duelo entre a Criança que Diz Sim e a Cidade que Diz Não, de Thiago Rosa, Banzeiro, de Ricardo Cotrim, Cidade Correria 1, de Thiago Florencio e Cidade Correria 2, de Daniel Guimarães, a dramaturgia, como se pode perceber, mescla autores renomados e contemporâneos, a obra literária e a escrita urgente que visa à cena, as esferas do real e do poético (como no trecho final da sessão, em que os atores soltam pipas). A potência do trabalho sobrevive a eventuais irregularidades, a julgar por certa discrepância entre o strip-tease que dimensiona os lugares normalmente relegados aos negros na sociedade e o debate inicial, atravessado por referências evocadas de modo inconsistente, sobre o teatro que se deseja praticar.
A limitação de recursos é revertida como força expressiva do grupo, que faz teatro com poucos elementos (um sofá gasto no início, objetos acrescentados e retirados a cada passagem, deixando o palco vazio). Os atores – Daniela Joyce, Hugo Bernardo, Igor da Silva, Jardila Baptista, Karla Suarez, Livia Laso, Marcelo Magano, Patrick Sonata, Thiago Rosa, Vanessa Rocha – compensam fragilidades técnicas com inegável comprometimento. Cidade Correria merece ser visto tanto por suas qualidades quanto por alargar o horizonte da cena existente no Rio de Janeiro.