Saborosa visita ao universo de Nelson Rodrigues
Nilton Bicudo em Myrna sou eu (Foto: João Caldas)
No decorrer dos anos 1990 e 2000, o Núcleo Carioca de Teatro, grupo conduzido por Luís Artur Nunes, se debruçou sobre a obra não dramatúrgica de Nelson Rodrigues em espetáculos como A Vida como ela é, O Menino de Paixões de Ópera e Correio Sentimental de Nelson Rodrigues. Essa última encenação trazia à tona as crônicas redigidas por Nelson, sob o pseudônimo de Myrna – que surgiu substituindo outra identidade feminina criada pelo escritor, Suzana Flag, nome com que estampava o folhetim Meu Destino é Pecar. Monólogo com Nilton Bicudo, dirigido por Elias Andreato, atualmente em cartaz no Teatro Poeira, Myrna sou eu – Consultório Sentimental de Nelson Rodrigues, também é norteado, como o próprio título indica, pelo material publicado como Myrna no jornal Diário da Noite, em 1949.
Nessa montagem, Myrna, ao invés de responsável por uma coluna de jornal, transmite conselhos sentimentais num programa de rádio a partir da leitura de cartas enviadas pelos ouvintes. Myrna se relaciona com eles de maneira direta, impulsiva, sem distanciamento, perspectiva evidenciada não só pelo tom com que comenta as cartas como pela diferenciada composição de voz para cada um dos interlocutores invisíveis. Além dos textos assinados como Myrna, a dramaturgia conta com uma referência a Toda Nudez será Castigada, peça de Nelson, no instante em que a personagem se afasta de seus ouvintes para mergulhar na conturbada vida pessoal, e com frases célebres do autor, que, por serem bastante conhecidas, tendem a soar desgastadas. Um exemplo é a citação que abre o espetáculo: “Toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo”.
Mas eventuais reparos na costura dramatúrgica (Elias Andreato responde por adaptação e roteiro) não ocultam as importantes qualidades de Myrna sou eu, encenação plenamente sustentada pela interpretação de Nilton Bicudo, que revela construção minuciosa, a julgar pelo domínio corporal e vocal. O ator não limita o trabalho à caracterização (visagismo de Allex Antonio e Emi Sato); ao contrário, apropria-se da feminilidade. Sem enveredar por linha apelativa, diverte o público graças a precisa noção de timing. O colorido de sua atuação faz com que a situação-base (Myrna diante das cartas dos ouvintes) não se torne repetitiva ao longo de pouco mais de uma hora de duração. Elias Andreato concentra a montagem na presença do ator e oferece ao espectador um aroma nostálgico por meio do mural de fundo formado por colagem com publicações e propagandas de época (cenário a cargo do diretor) e dos jingles que emolduram a cena. O figurino de Fabio Namatame concilia sobriedade e passionalidade (elemento realçado através da inclusão do vermelho, cor imperante na iluminação de Adriano Tosta).
Montagem de porte reduzido, valorizada pelo ótimo trabalho de Nilton Bicudo, Myrna sou eu proporciona à plateia uma saborosa visita ao universo peculiar de Nelson Rodrigues.