A contracena dos tempos

Cena de Bom Dia, Eternidade, encenação apresentada na Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba (Foto: Humberto Araujo)
CURITIBA – Em Bom Dia, Eternidade, encenação de Luiz Fernando Marques (Lubi) que reúne uma banda composta por músicos idosos e atores do grupo O Bonde, diferentes camadas de tempo se entrelaçam. Essa articulação se manifesta por meio da conjugação entre passado e presente (ainda que o título do espetáculo aponte para a transcendência de períodos delimitados), tanto no campo temático quanto na conexão entre teatro e cinema.
Na esfera do tema, a interação entre tempos distintos está na base da história, centrada na abrupta e violenta remoção de uma família negra que mora na periferia de São Paulo, em 1964, e o reencontro dos irmãos, nos dias de hoje, ao conquistarem o direito de recuperar a terra roubada.
No que diz respeito ao cinema e ao teatro, um jogo de oposição se estabelece. O primeiro é destacado como forma artística atada ao passado, na medida em que consiste na reexibição de material já gravado (apesar do espetáculo mesclar sequências pré-gravadas com cenas registradas e projetadas no instante da apresentação), e o segundo como vinculado ao presente, por acontecer no aqui/agora, diante do espectador.
Luiz Fernando Marques, em sintonia com a dramaturgia de Jhonny Salaberg, proporciona uma contracena dos tempos. Há um constante espelhamento entre atores e músicos de idades variadas – com os mais jovens reproduzindo gestos e externando as vivências dos mais idosos e, ocasionalmente, dando vazão a números de dança.
Mas algo não se mistura na estrutura do espetáculo: a natureza poética da dramaturgia burilada e a concretude dos depoimentos dos músicos, projetados nas cortinas estampadas da cenografia. Mesmo que a realidade esteja entranhada na proposta dramatúrgica, há diversos momentos em que ficção e documentário surgem como linguagens divorciadas.
Por mais contundentes e oportunos que sejam os depoimentos – que trazem à tona as jornadas pessoais e profissionais dos músicos, os obstáculos enfrentados em decorrência do preconceito racial e da sexualidade –, o impacto da montagem reside na evocação de lembranças familiares, com a casa e a figura da mãe como personagens fundamentais, como elementos ausentes, mas onipresentes.
A mãe aparece nos permanentes relatos dos filhos a partir de um quadro com sua imagem. E a casa é representada principalmente pelo espaço do quintal, símbolo da união de uma família que, obrigada a se separar com a remoção, fortalece os laços após a morte da mãe. Um espaço que não é materializado diante do público, e sim sugerido por meio de objetos afetivos (animal de cerâmica, vestido, rádio, pano de prato e, em especial, as cortinas rendadas e estampadas) que integram a cenografia do próprio Luiz Fernando Marques. As cortinas não são posicionadas no fundo do palco do Teatro da Reitoria, mas dividem o espaço da cena e o da banda.
A cenografia é não só expressiva como sintética, preocupação que também transparece no trabalho de direção, a exemplo da representação das árvores do quintal nos corpos dos músicos, dispostos, em breves passagens, de costas para a plateia. A concepção cênica é favorecida pela iluminação de Matheus Brant, que oscila entre as cores intensas que inundam a cena e tonalidades crepusculares.
O elenco do grupo O Bonde (Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves) demonstra habilidade com o texto e no manejo dos objetos. Os músicos Cacau Batera, Luiz Alfredo Xavier, Maria Inês e Roberto Mendes Barbosa emocionam o público com a exposição de seus percursos atravessados pela superação de adversidades.
Bom Dia, Eternidade é um espetáculo que se alonga além do necessário e que nem sempre promove o entrosamento entre linguagens (ficção e documentário). O espectador, porém, tende a sair sensibilizado com a revelação das trajetórias dos músicos e com o brilho de uma dramaturgia que aborda as calorosas vivências nos quintais familiares.