Entretenimento com verniz refinado
Rodrigo Simas e Carla Salle em Shakespeare Apaixonado, montagem de Rafael Gomes em cartaz no 033 Rooftop (Foto: João Caldas)
SÃO PAULO – A concepção do espaço cênico se impõe na montagem de Shakespeare Apaixonado. O público é introduzido em ambiente que reproduz, evidentemente que com liberdade de adaptação, características do teatro elisabetano, em especial no que diz respeito ao tablado estruturado como arena de três lados.
Diferentemente do modelo histórico, a céu aberto, o espaço onde a apresentação acontece é fechado. Se no período elisabetano o caráter popular se manifestava por meio das reações externadas por parte considerável da plateia, que acompanhava às representações no pátio, em pé, no espetáculo atual o público é devidamente acomodado em mesas compridas posicionadas em frente ao palco e em arquibancadas, sem incentivos à interação. Além disso, a montagem está em cartaz em endereço pouco acessível às massas: o 033 Rooftop, localizado no luxuoso Complexo JK Iguatemi.
Aos espectadores dispostos nas mesas é oferecida uma experiência gastronômica: podem fazer refeições enquanto assistem ao espetáculo, possibilidade que inevitavelmente dispersa a conexão dessa parcela da plateia com a cena. Seja como for, o cenário de André Cortez, inspirado no referencial histórico elisabetano, afirma teatralidade através de alçapões no palco que permitem amplas variações de espacialidades (navio, quarto, etc.). Conta com portas ao fundo e um pequeno balcão que serve a passagens específicas do texto.
As citações ao teatro da transição do século XVI para o XVII estão na base do filme de John Madden (1999), que gerou essa peça de Lee Hall. Em comparação com o filme existem alterações, que, porém, não se constituem como mudanças determinantes em relação à história original. Grande dramaturgo do período, William Shakespeare é, como o título anuncia, o protagonista dessa aventura amorosa centrada na criação de uma de suas peças mais conhecidas, a tragédia romântica Romeu e Julieta.
Em Shakespeare Apaixonado, o célebre dramaturgo vive uma paixão conturbada com Viola, moça arrebatada pelo teatro, que deseja atuar numa época em que esse ofício era proibido para as mulheres. O nome de Viola leva a uma menção direta, ao final, a mais uma peça de Shakespeare, Noite de Reis. Outras figuras ilustres do período histórico atravessam o texto, a exemplo de um dramaturgo bastante importante, ainda que não tão incensado – Christopher Marlowe.
O diretor Rafael Gomes permanece no terreno do clássico, mas como referência e não como filiação dramatúrgica. Não lida com a densidade de peças que já encenou, como Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, e Gota D’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, ou com a ousadia de Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes, de Rainer Werner Fassbinder. Envereda aqui por entretenimento com verniz refinado. Sem a ambição de realizar uma apropriação autoral de materiais consagrados, sua condução é menos inventiva que a de montagens anteriores.
O traço mais perceptível de sua assinatura reside no investimento em registro de humor histriônico, elemento diverso do filme, mais contido, e marcante nas atuações de parte do elenco. Na pele do vilão cômico Lorde Wessex, Gustavo Vaz diverte com as entonações vocais e a maleabilidade física. Rael Barja, como Henslowe, também adere, com certa eficiência, à construção exteriorizada, mas o destaque destinado ao personagem – e, consequentemente, as chances interpretativas do ator – diminuem ao longo da apresentação.
O par central fica a cargo de Rodrigo Simas e Carla Salle – ele dá vazão a um Shakespeare ágil e vigoroso no elo com Viola e os outros personagens e ela faz Viola de maneira algo impessoal, sem uma linha de atuação mais realçada. O papel da Rainha Elizabeth I não desafia Ana Lucia Torre, mas, mesmo assim, a atriz projeta, na exata medida, as tiradas irônicas e sarcásticas do texto.
Eventuais oscilações interpretativas não chegam a comprometer o equilíbrio encontrado nos demais componentes artísticos do espetáculo. A iluminação de Wagner Antônio revela hábil alternância entre a luz aberta, propícia aos momentos de humor e de reunião conjunta de personagens, e a intimista, voltada para os instantes mais concentrados da peça. Os figurinos de Ligia Rocha, Marco Pacheco e Jemima Tuany têm como qualidades o detalhismo e o bom acabamento.
Shakespeare Apaixonado é uma montagem que carece de uma direção mais personalizada. Evoca o período elisabetano por meio de um padrão de produção apreciável e envolvente como reconstituição, mas distante do apelo popular próprio da época. Estabelece, contudo, comunicação com o público graças, em grau significativo, a uma ocasionalmente bem-sucedida comicidade expansiva.
SHAKESPEARE APAIXONADO – Texto de Lee Hall a partir do filme de John Madden. Direção de Rafael Gomes. Com Rodrigo Simas, Carla Salle, Ana Lucia Torre, Gustavo Vaz, Rael Barja, Fafá Rennó, Dagoberto Feliz, Leandro Villa, Davi Novaes, Vinicius Salgueiro, Dom Capelari. 033 Rooftop (Av. Juscelino Kubitschek, 2041). Qui. e sex., às 19h30. Sáb. e dom., às 15h e 19h30. Ingressos: de R$ 19,80 a R$ 290,00.