Inventivo texto cênico
Débora Falabella em Prima Facie, montagem de Yara de Novaes em cartaz no Teatro Adolpho Bloch (Foto: Annelize Tozetto)
Prima Facie, peça de Suzie Miller, tende a afetar o público por meio da contundente denúncia de um sistema perverso que protege os homens diante de violências cometidas contra as mulheres. A autora concebeu uma estrutura claramente dividida em duas partes, cada uma representativa dos polos emocionais – a segurança decorrente das sucessivas conquistas profissionais e a vulnerabilidade gerada por um fato traumático – vivenciados pela personagem, a advogada Tessa.
Ela cruza de um extremo ao outro, da posição de ataque à de vítima, de maneira brusca. A transição é demarcada por uma passagem de tempo. O espectador é informado sobre ela através de recurso de projeção, no fundo do palco. Trata-se de um lapso de tempo, “não um intervalo e sim um hiato, uma fenda”, entre a cena anterior e o que virá a seguir. Esse hiato é um ponto enigmático, que pode assinalar, além da realidade objetiva, uma sensação subjetiva dentro de um texto, de resto, sempre direto. Tessa se refere ao choque que sofreu como acontecimento ocorrido poucas horas antes (portanto, não teria havido intervalo de tempo significativo). Mas depois a personagem menciona um arco temporal (“763 dias”, ela diz), destacando o prolongamento de sua via-crúcis existencial.
Seja como for, a fenda desponta como um símbolo. É através dela que Tessa, confrontada com a própria impotência diante da injustiça do mundo, consegue continuar sua jornada. A importância dessa brecha, determinante à sobrevivência da personagem, ganha visualidade concreta na montagem de Yara de Novaes por meio de uma pequena abertura no espaço cenográfico. Os conteúdos do texto surgem traduzidos, materializados, nos diversos setores de criação que integram a encenação. Por isso, o espetáculo, em cartaz no Teatro Adolpho Bloch, não se restringe à transmissão ao público de uma relevante mensagem de alerta, o que seria limitado sob o ponto de vista artístico.
O cenário de André Cortez traz elementos de ambiente corporativo – cadeiras, bancos, mesas, latas de lixo – em disposição vertical que realça a hierarquia das relações e a ambição de ascensão profissional/social. A alteração na disposição desses componentes da cena, na segunda parte do espetáculo, acompanha a abrupta mudança atravessada pela personagem. Os painéis de fundo sugerem uma solidez, não por acaso, desestabilizada à medida que a narrativa avança. E cabe chamar atenção para o equilíbrio cromático e a expressiva valorização de cores neutras (cinza, caramelo).
Os figurinos de Fabio Namatame são facilmente manipulados por Débora Falabella em rápidas trocas durante a apresentação. O predomínio do preto contrasta de modo intencional com a blusa rosa, que destoa da sobriedade do restante das roupas de Tessa. Tanto a blusa quanto a sobreposição desconjuntada de peças do figurino evidenciam o desajuste que a personagem sente de dado momento em diante. A iluminação de Wagner Antonio recorta o espaço – parede e chão – em formas geométricas, diminui de intensidade nas exposições das experiências mais íntimas de Tessa e se torna fria, dura, na revelação do trauma. Nesse instante – e na conclusão –, a atriz fala o texto no proscênio, indicando quebra brechtiana, mas sem se distanciar da personagem. A trilha sonora de Morris pontua a gravidade do ato que leva à virada de Tessa.
Débora Falabella interpreta Tessa numa peça estruturada como narração vivenciada. A personagem relata ao leitor/espectador (e, numa cena, para a câmera) aquilo que passou, mas sem afastamento emocional. A atriz demonstra admirável fluência e fôlego surpreendente na condução do texto. Constrói Tessa – sua firmeza e fragilidade – com exatidão e insere eventuais composições vocais de personagens circunstanciais sem enveredar pelo virtuosismo. Ao domínio da palavra, Débora Falabella acrescenta breves passagens de movimentação corporal desenvolta, especialmente na primeira parte da peça, quando a personagem ainda sustenta seu universo de certezas.
A dramaturgia de Prima Facie guarda possíveis conexões com outro espetáculo realizado por Yara de Novaes e Débora Falabella (mas tendo ambas como atrizes, sob a direção de Grace Passô): Contrações, texto de Mike Bartlett. Mesmo que em proporções distintas, nas duas peças a fronteira entre o público e o privado é demolida e a intimidade, devassada. Particularmente nessa nova montagem, as questões abordadas não ficam circunscritas ao plano do discurso. O texto se estende aos demais componentes da encenação e também aparece corporificado no trabalho da atriz.
PRIMA FACIE – Texto de Suzie Miller. Direção de Yara de Novaes. Com Débora Falabella. Teatro Adolpho Bloch (R. do Russel, 804). De qui. a sáb. às 20h e dom. às 18h. Ingressos: R$ 100,00/R$ 50,00 (meia-entrada), às qui. e sex.) e R$ 150,00/R$ 75,00 (meia-entrada) aos sáb. e dom.