Alessandra Maestrini, Lilian Valeska, Carol Garcia e André Dias em Kafka e a Boneca Viajante: até amanhã no Teatro Clara Nunes (Foto: Ale Catan)
Dois espetáculos atualmente em cartaz se debruçam sobre a interação entre o escritor Franz Kafka e uma menina inconsolável após a perda de sua boneca. Um, destinado ao público adulto, é Kafka e a Boneca Viajante, que, dirigido por João Fonseca, cumpriu temporada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e encerra as apresentações, nesse domingo, no Teatro Clara Nunes. O outro, voltado à plateia infanto-juvenil, é A História de Kafka e a Boneca Viajante que, sob a direção de Isaac Bernat, estreou recentemente no Futuros. Ambos partiram da mesma base – o livro do escritor Jordi Sierra I Fabra – na produção de dramaturgias próprias.
Determinado a minimizar o sofrimento da menina, Kafka teria começado a escrever cartas para ela como se fosse a boneca em viagem pelo mundo. A história traz à tona o esforço, inevitavelmente limitado, de suprir uma ausência (morte). Mas também destaca as infinitas aberturas para a imaginação a partir, no caso, da leitura das cartas fictícias. Ao ouvir as cartas lidas por Kafka, a menina fabrica as suas imagens. Uma amplitude ligada, de alguma maneira, à experiência vivenciada pelo espectador no teatro, uma manifestação artesanal, de restritas possibilidades visuais, que, justamente por isso, estimula quem assiste a projetar universos imaginários.
Em Kafka e a Boneca Viajante, Rafael Primot assina o texto, mantendo o foco na conexão entre Kafka e a menina. Há, contudo, momentos em que os atores saem dos personagens e fazem breves comentários, em intencionais quebras da ilusão. Nesses instantes, decorrentes da dramaturgia ou da direção, o caráter lúdico se desfaz e o texto se torna esgarçado. Em A História de Kafka e a Boneca Viajante, Julia Bernat, encarregada do texto, concentra na relação entre os personagens principais, sem interferências dispersivas.
João Lucas Romero e Laura Becker em A História de Kafka e a Boneca Viajante (Foto: Dalton Valério)
As concepções estéticas das montagens são bem distintas. No espetáculo de João Fonseca, cores intensas tomam conta da cena. O vermelho da cenografia de Nello Marrese e o azul da iluminação de Paulo Cesar Medeiros contrastam com os tons fechados dos expressivos figurinos de João Pimenta. O selo é elemento fundamental no cenário – há um grande, encravado no palco – e, perifericamente, uma mesa e uma cadeira sinalizam, de modo discreto, a atividade profissional de Kafka. Na montagem de Isaac Bernat, sobressai uma árvore de madeira, escolha justificada na passagem em que Kafka relata sobre a suposta jornada da boneca em Burkina Faso e faz referência à tradição do griot, objeto de pesquisa do diretor.
A música é componente realçado nas duas encenações. Em Kafka e a Boneca Viajante, a direção musical foi exercida por Tony Lucchesi e em A História de Kafka e a Boneca Viajante, por Pedro Luís. Nesse terreno, o primeiro espetáculo gera certo estranhamento devido à inclusão de canções conhecidas e heterogêneas, opção que destoa em meio a uma proposta artística consideravelmente autoral.
No que diz respeito às interpretações, os caminhos também foram diversos. As construções físicas e vocais imperam em Kafka e a Boneca Viajante (direção de movimento de Marcia Rubin). É o que se pode perceber na composição da boneca de Alessandra Maestrini – atriz que confirma a voz tecnicamente burilada e evita impor sua forte personalidade cênica sobre a personagem –, na postura irrequieta da menina de Carol Garcia – em criação que escapa da armadilha da caricatura –, no perfil soturno e contido do Franz Kafka de André Dias e na presença atenta de Dora, esposa de Kafka, feita por Lilian Valeska – os dois últimos integrantes do elenco acumulando, em cenas curtas, os papéis do soldadinho de chumbo e da gaivota. Em A História de Kafka e a Boneca Viajante, João Lucas Romero interpreta, com fluência, um Kafka enérgico, sanguíneo, e Laura Becker faz a menina sem chegar a imprimir uma característica mais específica.
Proposições para um enredo único, Kafka e a Boneca Viajante e A História de Kafka e a Boneca Viajante se distinguem nos vários campos de criação: operações dramatúrgicas, concepções estéticas e registros interpretativos. Os elos estabelecidos com os espectadores, evidentemente, são diferentes.
KAFKA E A BONECA VIAJANTE – Texto de Rafael Primot. Direção de João Fonseca. Com Alessandra Maestrini, André Dias, Carol Garcia e Lilian Valeska. Teatro Clara Nunes (R. Marquês de São Vicente, 52/3º andar). Hoje às 20h30 e amanhã às 19h. Ingressos: De R$ 19,50 a R$ 140,00.
A HISTÓRIA DE KAFKA E A BONECA VIAJANTE – Texto de Julia Bernat. Direção de Isaac Bernat. Com João Lucas Romero e Laura Becker. Futuros (R. Dois de Dezembro, 63). Sáb. e dom., às 16h (hoje e amanhã sessões extras às 18h). Ingressos: R$ 20,00 (meia-entrada) e R$ 40,00.
A memória do teatro vive em permanente risco. Mesmo nos dias de hoje, quando a preocupação com o registro dos espetáculos é notadamente maior que em décadas anteriores, não há como reter o acontecimento teatral. Uma apresentação é sempre diferente da outra. E, por mais longeva que seja a carreira de determinada montagem, a última noite inevitavelmente chegará.
Os melhores registros não reproduzem o momento imediato de conexão entre ator e espectador. Mas são fundamentais, ainda mais numa época em que a quantidade de programas impressos é cada vez menor. Um livro como Festival de Teatro de Curitiba (Edições Sesc São Paulo), que traz uma seleção de fotos de espetáculos captados por Lenise Pinheiro ao longo de 30 anos – 1992 a 2022, excetuado 2021 por causa da pandemia – de cobertura do evento, é, sem dúvida, um feito muito importante. Reúne preciosos instantâneos de cenas de montagens emblemáticas. Depois do lançamento na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba, o livro ganha hoje nova sessão de autógrafos, no Sesc Pompeia, em São Paulo, acrescida de conversa entre Lenise e a dramaturga Luh Maza, com mediação de Gabriela Melão.
Se no monumental Fotografia de Palco, publicação dedicada ao ator e fotógrafo Fredi Kleemann, Lenise dividiu a vasta seleção de fotos em capítulos voltados para recortes das encenações (figurinos, cenários, iluminação), em Festival de Teatro de Curitiba o destaque recai sobre os rostos dos intérpretes, em close, apesar de várias fotografias evidenciarem as cenas de maneira ampla, panorâmica.
A trajetória de Lenise no Festival de Curitiba já tinha rendido, em 2022, uma exposição, intitulada Viva! 30 Anos, disposta no vão livre do Museu Oscar Niemeyer. Vale lembrar que Lenise também lançou um livro em homenagem ao Teatro Oficina (Fotografias – Teatro Oficina), no qual documentou os espetáculos desde a reabertura da companhia, rebatizada de Uzina Uzona – de As Boas a Cacilda!!!. Em relação a Festival de Teatro de Curitiba, livro intercalado com depoimentos de artistas e da própria Lenise, não há como mencionar todos os espetáculos representados por meio das fotos, mas cabe ressaltar alguns, ano a ano:
1992
Sonhos de uma Noite de Verão
Direção: Cacá Rosset
Elenco: Grupo Ornitorrinco
As Boas
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Elenco: Teatro Oficina/Uzyna Uzona. Ator convidado: Raul Cortez
Miriam Virna, Cleani Marques e Catarina Acioly em Ir e Vir, parte do projeto Felizes para Sempre, dos Irmãos Guimarães (Foto: Lenise Pinheiro)
2004
O que Diz Molero
Direção: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Chico Diaz, Augusto Madeira, Orã Figueiredo, Raquel Iantas.
Agreste
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: Joca Andreazza e Paulo Marcello
2005
Foi Carmem
Direção: Antunes Filho
Elenco: Centro de Pesquisa Teatral (CPT)
Hysteria
Direção: Luiz Fernando Marques
Elenco: Grupo XIX de Teatro
Baque
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Deborah Evelyn. Emílio de Mello, Carlos Evelyn
2006
A Descoberta das Américas
Direção: Alessandra Vanucci
Elenco: Julio Adrião
Otelo da Mangueira
Direção: Gustavo Gasparani
Elenco: Marcelo Capobiango, Claudia Ventura, Susana Ribeiro, Gustavo Gasparani, Ana Carbati, Patrícia Costa, Jorge Medina, Juliana Clara, Lilian Valeska, Sheila Mattos, Pedro Lima, Marcelo Vianna, Erika Riba, Sueli Guerra, Anderson Mello, Aldri Anunciação, Rodrigo França, Jurema da Mata, Jorge Maya
2007
A Alma Imoral
Direção: Amir Haddad
Elenco: Clarice Niskier
A Hora e a Vez de Augusto Matraga
Direção: André Paes leme
Elenco: Vladimir Brichta, Fábio Lago, Jackson Costa, Ernani Moraes, Pedro Gracindo, Georgiana Góes, Marcelo Flores, Adriano Saboya, Cyda Morenyx, Francisco Salgado
Besouro Cordão de Ouro
Direção: João das Neves
Elenco: Alan Rocha, Ana Paula Black, Cridemar Aquino, Gilberto Santos da Silva Laborio, Iléa Ferraz, Leticia Soares, Mauricio Tizumba, Nívea Magno, Raphael Garcia, Sergio Pererê, Valéria Monã, Victor Alvim Lobisomem, William de Paula, Wilson Rabello
2008
Aqueles Dois
Direção e atuação: Cia. Luna Lunera
2009
Rainhas
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Georgette Fadel e Isabel Teixeira
O Estrangeiro
Direção: Vera Holtz
Elenco: Guilherme Leme Garcia
A Mulher que Escreveu a Bíblia
Direção: Guilherme Piva
Elenco: Inez Viana
2010
Till, a Saga do Herói Torto
Direção: Júlio Maciel
Elenco: Grupo Galpão
In On It
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras
Memória da Cana
Direção: Newton Moreno
Elenco: Os Fofos Encenam
Simplesmente Eu, Clarice Lispector
Direção: Amir Haddad
Elenco: Beth Goulart
Vida
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
2011
Inverno da Luz Vermelha
Direção: Monique Gardenberg
Elenco: Marjorie Estiano, Rafael Primot, André Frateschi
Sonhos para Vestir
Direção: Vera Holtz
Elenco: Sara Antunes
Oxigênio
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Sua Incelença, Ricardo III
Direção: Gabriel Villela
Elenco: Clowns de Shakespeare
2012
Julia
Direção: Christiane Jatahy
Elenco: Julia Bernat, Rodrigo dos Santos
De Verdade (Ou a Mulher Certa)
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Kika Kalache e Guilherme Piva
Palácio do Fim
Direção: José Wilker
Elenco: Vera Holtz, Camila Morgado e Antônio Petrin
O Idiota: Uma Novela Teatral
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Mundana Companhia de Teatro
A Peça do Casamento
Direção: Pedro Brício
Elenco: Guida Vianna e Dudu Sandroni
O Jardim
Direção: Leonardo Moreira
Elenco: Cia. Hiato
Estamira – Beira do Mundo
Direção: Beatriz Sayad
Elenco: Dani Barros
Ato de Comunhão
Direção e atuação: Gilberto Gawronski
Luis Antonio-Gabriela
Direção: Nelson Baskerville
Elenco: Cia. Mungunzá de Teatro
Gilberto Gawronski em Ato de Comunhão (Foto: Lenise Pinheiro)
2013
Esta Criança
Direção: Marcio Abreu
Elenco: Companhia Brasileira de Teatro
Pólvora e Poesia
Direção: Marcio Aurélio
Elenco: João Vitti e Leopoldo Pacheco
2014
Contrações
Direção: Grace Passô
Elenco: Debora Falabella e Yara de Novaes
Cais ou Da Indiferença das Embarcações
Direção: Kiko Marques
Elenco: Velha Companhia
Quem tem Medo de Virginia Woolf?
Direção: Victor Garcia Peralta
Elenco: Zezé Polessa, Daniel Dantas, Erom Cordeiro e Ana Kutner
BR Trans
Direção e atuação:Silvero Pereira
2015
Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Luciano Chirolli, Gilda Nomacce, Nana Yazbek, Felipe Aidar
2016
Um Bonde Chamado Desejo
Direção: Rafael Gomes
Elenco: Maria Luisa Mendonça, Eduardo Moscovis, Virginia Buckowski, Donizeti Mazonas, Fabrício Licursi, Fernanda Castello Branco e Matheus Martins
Urinal
Direção: Zé Henrique de Paula
Elenco: Núcleo Experimental
Caranguejo Overdrive
Direção: Marco André Nunes
Elenco: Aquela Companhia
2017
Antígona
Direção: Amir Haddad
Elenco: Andréa Beltrão
A Casa dos Budas Ditosos
Direção: Domingos Oliveira
Elenco: Fernanda Torres
2018
A Ira de Narciso
Direção: Yara de Novaes
Elenco: Gilberto Gawronski
Tom na Fazenda
Direção: Rodrigo Portella
Elenco: Armando Babaioff, Gustavo Vaz, Kelzy Ecard e Camila Nhary
Grande Sertão: Veredas
Direção: Bia Lessa
Elenco: Caio Blat, Luisa Arraes, Luiza Lemmertz, Leon Góes, Daniel Passi, Leonardo Miggiorin, Balbino de Paula.
Cena de Sonho de uma Noite de Verão, encenação da Trupe Ave Lola (Foto: Maringas Maciel)
Reproduzir no palco a natureza esplendorosa minuciosamente descrita por William Shakespeare nas páginas de Sonho de uma Noite de Verão é uma tarefa quase impossível. Ana Rosa Genari Tezza, à frente da Trupe Ave Lola e dessa montagem do grupo (atração do Fringe na recém-encerrada edição do Festival de Curitiba), não procura reconstituir tais imagens. Ao contrário, investe na síntese. É justamente a construção da cena a partir de elementos reduzidos que acentua a teatralidade desse trabalho.
Na contramão dos aparatos tecnológicos, essa encenação busca estimular a imaginação do espectador por meio de recursos restritos – basicamente lençóis e praticáveis. Há pouco mais na ambientação cenográfica de Daniel Pinha, como a cortina de tiras vermelhas, cor também escolhida para o chão. Mesmo com o impacto do vermelho, a concepção estética é marcada pelo predomínio do branco e do preto dos figurinos de Ana Rosa Genari Tezza e Helena Tezza, com destaque para transparências.
A percepção de que a arte teatral independe de um acúmulo de objetos surge manifestada na própria peça de Shakespeare. Como afirma o carpinteiro Pedro Cunha, um dos integrantes da representação preparada para a cerimônia de casamento de Teseu e Hipólita, “essa nesga de grama será nosso palco”.
Personagens reais e fantásticos se mesclam nessa peça, ambientada, em boa parte, num bosque nas proximidades de Atenas. Nessa fantasia amorosa, oscilante entre sonho e realidade, jovens, confrontados com a intolerância dos mais velhos, simbolizada por Egeu, fogem para não se separarem. Os quiproquós emocionais incluem Hérmia, Helena, Lisandro e Demétrio, que têm seus sentimentos momentaneamente alterados por uma espécie de poção mágica pingada nos olhos pelo irrequieto duende Bute.
Os trabalhadores, que experimentam o ofício da atuação nos mencionados ensaios para a representação, acabam sendo inseridos numa teia de enganos que agita esse suave exemplar da dramaturgia de Shakespeare. Ao ensaiarem o interlúdio, os trabalhadores se conscientizam da distância entre ator e personagem. Falam sobre a importância de alertar o público para o fato de que não estão se fundindo, se amalgamando, aos personagens, mas que permanecem descolados deles, apesar de portarem as identidades ficcionais durante a apresentação.
Ainda que envolva o leitor/espectador na atmosfera de um mundo delirante e febril (como a paixão), Shakespeare rompe com a ilusão ao frisar o teatro como fingimento, como artifício. Em sintonia com essa perspectiva, o elenco da Trupe Ave Lola – formado por Cesar Matheus, Helena de Jorge Portela, Helena Tezza, Kauê Persona, Larissa de Lima, Marcelo Rodrigues, Pedro Ramires, Wenry Bueno e Willa Thomas – não encarna os personagens, não some por trás deles, mas se dedica a um registro em que a interpretação intencionalmente aparece, assim como a qualidade no dizer o texto.
A opção por Sonho de uma Noite de Verão é coerente com a trajetória da Trupe Ave Lola, que costuma se afastar do realismo e enveredar pela trilha do onírico. A conexão do público com o espetáculo é favorecida pelo espaço de apresentação – uma tenda, erguida na sede da companhia – que realça o caráter lúdico da empreitada.
Leandro Knopfholz e Fabíula Bona Passini dividem a direção do Festival de Curitiba (Foto: Annelize Tozetto)
Ao chegar à 32ª edição, o Festival de Curitiba evidencia preocupação com a preservação de suas características centrais, mas sem ceder à acomodação. Permanecem a programação dividida entre mostra oficial (rebatizada de Mostra Lucia Camargo, em homenagem a uma das curadoras do festival, que morreu em 2020) e Fringe. Dentro disso, porém, diversas propostas despontaram ao longo do tempo. A mais recente é a Mostra Surda de Teatro, voltada para montagens concebidas em torno do protagonismo de artistas surdos.
No que se refere à programação oficial, os grupos de curadores têm mudado. Já estiveram nessa função os críticos Alberto Guzik, Macksen Luiz e Tania Brandão, os jornalistas João Cândido Galvão e Celso Curi, a gestora cultural Lucia Camargo, o diretor Marcio Abreu e o ator Guilherme Weber. No momento, a curadoria é assinada pela produtora Daniele Sampaio, pela atriz Giovana Soar e pelo crítico Patrick Pessoa.
O Fringe, que surgiu em 1998 seguindo o modelo do Festival de Edimburgo, foi criado com o objetivo de apresentar ao público um apanhado da cena brasileira através da oferta de espetáculos reunidos por inscrição e não por seleção. Depois o Fringe passou a contar com mostras internas que, de alguma maneira, localizam o espectador em meio à variedade de atrações.
As alterações que vêm marcando o festival também estão ligadas à troca ou da inclusão de nomes na direção do evento. Em 1992, o festival era capitaneado por Carlos Eduardo Bittencourt, Cássio Chameki, César Heli Oliveira, Leandro Knopfholz e Victor Aronis. Aos poucos, os sócios migraram para outros projetos. Leandro e Cássio, por exemplo, foram trabalhar na prefeitura de Curitiba. A condução do festival ficou a cargo, entre 2001 e 2007, de Victor, que se distanciou para se dedicar ao Festival de Dança de Joinville. Hoje Leandro se encontra à frente do festival juntamente com Fabíula Bona Passini, que, no decorrer do tempo, exerceu funções diferentes dentro do festival: apoio na bilheteria, recepcionista, produtora e, agora, diretora. O festival, felizmente, está com as próximas edições garantidas, graças ao patrocínio trienal da Petrobras.
Entrevista / Leandro Knopfholz
Como era a estrutura de programação nos primeiros anos do festival?
O festival começou em 1992. Mas o primeiro Fringe aconteceu em 1998. Desde o início havia a Programação Associada, que reunia os espetáculos em cartaz em Curitiba. Em 1997 conheci o Fringe no Festival de Edimburgo. Sugeri que fizéssemos aqui também. Mapeamos mais de 100 possíveis salas de apresentação em Curitiba, mas poucas se encontravam em estado de utilidade. Equipamos minimamente as salas e inauguramos o Fringe. Oferecíamos, além da sala, som, luz e um profissional. O Fringe ganhou projeção. Também seguindo o exemplo de Edimburgo, onde o Fringe é uma grande feira, comecei a convidar programadores.
O Fringe se propõe a ser um espaço democrático, que reúne centenas de espetáculos por inscrição. Mas em que medida essa democratização é possível quando, por questões econômicas, a maior parte dos espetáculos que participa do festival é do Sudeste?
Sempre quis ter espetáculos de todos os estados do Brasil. Em determinado momento achamos que o Fringe ficou confuso e passamos a organizar mostras internas.
Como surgiram essas mostras?
Em 2003, Diogo Portugal nos procurou e propôs uma mostra de stand-up. Assim surgiu o Risorama. Depois, inspirado no Taste, realizado em Edimburgo, criamos o Gastronomix. Não inventei nada; copiei. Mas fui o primeiro a copiar. Também fizemos a mostra XXX, voltada para espetáculos eróticos, e outras: MishMash, Mostra dos Excluídos.
A partir da sua memória emotiva, quais os espetáculos que você destacaria ao longo dessas 32 edições do festival?
Sonho de uma Noite de Verão, com direção do Cacá Rosset, A Bao a Qu, da Companhia dos Atores, As Boas, do Teatro Oficina, A Vida é Sonho, assinado por Gabriel Villela, The Flash and Crash Days, espetáculo do Gerald Thomas, Corra enquanto é Tempo, A Farsa da Esposa Muda, A Rua da Amargura – esses três do Grupo Galpão –, Nova Velha História, encenação do Antunes Filho, Roberto Zucco, montagem de Nehle Franke, Angeli, d’Os Parlapatões, a Trilogia Bíblica (Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse 1,11) concebida por Antonio Araujo no grupo Teatro da Vertigem, A Máquina, espetáculo de João Falcão, 25 Homens, com direção de François Kahn, e Needles and Opium, assinado por Robert Lepage. Apesar de Curitiba ser considerada uma cidade careta, tivemos apoio para trazer espetáculos polêmicos, como O Melhor do Homem, encenação do Ulysses Cruz que foi cancelada em São Paulo por causa da temática gay, e os mencionados Sonho de uma Noite de Verão e as encenações da Trilogia Bíblica. A questão da inclusão veio depois. Nesse sentido, outro trabalho que integrou a programação foi BR Trans, solo de Silvero Pereira.
Como se dá a divisão de tarefas entre você e Fabíula na direção do festival?
Fico com a parte de patrocínio e orçamento. Aliás, graças ao patrocínio trienal da Petrobras – a primeira vez que conseguimos –, as edições de 2025 e 2026 já estão garantidas. Fabíula fica voltada para produção e programação. Mas pretendo me afastar. Estou cansado. Tenho aceitado “não” como resposta muito rápido e isso não é bom.
Entrevista / Fabíula Bona Passini
Como começou a sua ligação com o Festival de Curitiba?
Sou de Xanxerê, município de Santa Catarina. Comecei a fazer teatro aos 11 anos. Vim para Curitiba cursar faculdade de teatro já por causa do festival. Queria muito trabalhar no festival. Em 2009 abriu uma vaga de apoio na bilheteria. Naquela época, os ingressos não eram vendidos online – só fisicamente. O meu trabalho consistia em conversar com as pessoas na fila para que quando chegasse a hora de comprar já soubessem o espetáculo que iriam assistir. Em 2010 abriu uma vaga de recepcionista. Consegui a vaga. Depois comecei a me envolver com produção executiva e a vontade de ser atriz foi diminuindo. Em determinado momento fiz a direção de produção do festival. Em 2019, Leandro me chamou para a direção do festival. Mas o evento foi cancelado em 2020 por causa da pandemia.
O festival vem mudando os curadores nos últimos anos. Essas mudanças refletem, de alguma maneira, alterações no perfil da programação?
Peguei o momento de passagem da curadoria de Celso Curi, Lucia Camargo e Tania Brandão para Guilherme Weber e Marcio Abreu. Agora a curadoria é assinada por Daniele Sampaio, Giovana Soar e Patrick Pessoa. Estabelecemos que cada grupo de curador deve permanecer no festival durante dois anos. Acho que Daniele, Giovana e Patrick continuam, de certa maneira, o trabalho de Guilherme e Marcio, no que se refere à preparação de um público para o teatro alternativo. Hoje a curadoria se preocupa em convidar artistas e grupos que nunca vieram ao festival. Em todo caso, diversidade é fundamental. Precisamos ter comédias como Duetos e trabalhos identitários como Manifesto Transpofágico. Em alguns casos, o festival convida diretamente espetáculos, como foi o caso de O que nos mantém Vivos?, mas a curadoria abraça essa escolha.
No decorrer do tempo, o Fringe vem passando por alterações, não? Essa parte do festival, destinada à reunião de espetáculos por ordem de inscrição e não a partir de uma seleção, começou a contar com mostras internas.
Depois da pandemia, pensei: ou o Fringe muda ou termina. Não adiantava mais abrirmos um cadastro e fornecermos um espaço. Muitos espetáculos vinham enfrentando problema de falta de público. Também havia a questão da troca incessante de cenários em espaços que abrigavam várias montagens. Criamos um sistema de inscrições de mostras e, a partir daí, selecionamos 10. Cada mostra recebe R$ 5 mil, o espaço e a hospedagem. Estabelecemos que cada companhia deve apresentar quatro espetáculos e uma ação formativa. Além disso, criamos a rodada de negociações: programadores de espaços de diversas cidades vêm assistir aos espetáculos. Isso deu muita vida ao Fringe.
A escolha dessas mostras implica numa curadoria?
Não propriamente. Não olhamos para os espetáculos individualmente, e sim para as propostas das mostras.
O Festival de Curitiba é fundamentalmente destinado à produção teatral brasileira, com raras aberturas para espetáculos internacionais. Há intenção de incluir montagens estrangeiras ou prevalece o desejo de manter o perfil nacional? Na mostra oficial (Lucia Camargo) costumamos ter um espetáculo internacional. Esse ano teríamos três. Mas, por questões econômicas, precisamos tirá-los. Não tínhamos confirmação de patrocinador. Ano que vem queremos fazer uma Mostra Latina.