Sugestivo desenho de imagens
Miriam Mehler, Bruno Fagundes e André Torquato em A Herança (Foto: Gisela Schlogel)
Matthew López fez de A Herança um texto estruturado sobre acúmulos ao entrelaçar as jornadas amorosas de alguns personagens, distribuídos por uma variedade de ambientes, em meio a evocações do passado e projeções de futuro. Materializar no palco essa sucessão de tempos e lugares se constitui como um considerável desafio da encenação dessa peça extensa, dividida em duas partes, ambas apresentadas, alternadamente, no decorrer da rápida temporada no Rio de Janeiro, que termina domingo, no Teatro Clara Nunes.
Diante de todo esse somatório, Zé Henrique de Paula, diretor da montagem, optou pela subtração. A cena sintética, marcada pela quase ausência de elementos, estimula o espectador a imaginar as locações por onde os personagens transitam – os amplos apartamentos de Nova York e a casa de campo (a “casa curativa”) que remete diretamente a Howards End, propriedade central do romance de E.M. Forster, a principal referência de López na escrita de A Herança.
A opção pela redução pode ser constatada na cenografia do espetáculo (a cargo de Zé Henrique), basicamente limitada a um fundo de madeira clara, objetos básicos, cotidianos e utilitários e araras com figurinos dispostos. Por trás do cenário, o público vê as engrenagens do espaço do teatro. Essa exposição dos bastidores realça o ato teatral como construção. Nesse sentido, a cena se evidencia como tal diante do espectador, ao invés de ser ocultada para transmitir a sensação de vida verdadeira, não representada.
Essa concepção está sintonizada com o texto de López, que tematiza a obra em processo. Além de mostrar as intrincadas histórias conjugais dos personagens, de revelá-los por meio de seus percursos afetivos, o autor destaca a criação dramatúrgica em si e faz menções diretas a E.M. Forster. O escritor, inclusive, aparece como personagem e a cena se divide entre narração e vivência dos acontecimentos.
Mesmo que essa esfera da criação dramatúrgica pudesse ter sido inserida de forma um pouco mais orgânica dentro do texto, o aproveitamento do universo de Forster é bastante saboroso. Há citações a livros como Maurice e Uma Janela para o Amor, mas a conexão mais forte se dá com Howards End – obras transportadas para o cinema por James Ivory.
Em relação a Howards End, López mudou o contexto histórico e o sexo dos personagens, concentrando-se mais no vínculo estabelecido entre Henry e Margaret (identidade alterada, em A Herança, para Eric). Existem outras correspondências como entre o personagem que faz com que Henry se sinta ameaçado – Jackie (no filme) e Leo (na peça). Mais importante do que essas eventuais associações, porém, é a mescla de períodos históricos – a revolta de Stonewall em 1969, a epidemia da Aids nos anos 1980, a disputa eleitoral entre Hillary Clinton e Donald Trump em 2016 –, devidamente conjugados com as trajetórias individuais. Essas articulações aproximam A Herança, em certa medida, de Angels in America, de Tony Kushner.
Na parte em que traz à tona a disputa Clinton/Trump, pertencente ao passado recente, López expõe o confronto entre diferentes posturas ideológicas, suscitando analogia com as polarizações de hoje. Mas o maior mérito do texto não parece residir nessa ligação ou no envolvimento provocado por um formato de peça que tangencia o novelão, e sim na apresentação de distintas possibilidades de administração de experiências sofridas, de heranças ruins. Enquanto personagens sucumbem diante da dificuldade de lidar com traumas, outros adquirem condição psicológica para superar um conjunto de adversidades.
Bruno Fagundes e Marco Antônio Pâmio: elenco em sintonia (Foto: Jonatas Marques)
Fora do campo temático, López oferece oportunidades aos atores, seja na contracena, seja, em especial, nos solilóquios. O solo mais marcante é o de Marco Antônio Pâmio na primeira parte de A Herança. Tanto como Forster quanto como Walter – personagens que, de modos diversos, destoam do restante, o primeiro por se tratar de uma figura real, ainda que integrada dentro da narrativa, e o segundo, por causa da faixa etária –, Pâmio domina a palavra com maestria.
Os demais atores demonstram entrosamento com a linha da encenação. Rafael Primot concilia com habilidade agitação física e contundência verbal. André Torquato evita a oposição esquemática nas composições de dois personagens de origens sociais contrastantes. Bruno Fagundes imprime uma dose de suavidade ao rapaz que descobre na ajuda ao outro uma motivação de vida. Reynaldo Gianecchini, apesar da rigidez corporal, projeta as ambiguidades de um personagem permanentemente defendido em relação à intimidade no contato humano. Felipe Hintze fica encarregado dos momentos de humor mais abertos, expansivos. Em participação no segundo espetáculo, Miriam Mehler investe em atuação próxima ao emocional, registro que a atriz exerce de maneira fluente. Davi Tápias, Haroldo Miklos, Gabriel Lodi, Cleomácio Inácio, Rafael Américo e Wallace Mendes têm funções mais episódicas, com mais chances na segunda parte do que na primeira.
O caráter discreto e, ao mesmo tempo, propositivo da direção de Zé Henrique de Paula se estende à iluminação, com sutis gradações, de Fran Barros e Túlio Pezzoni, e à trilha sonora de Fernanda Maia. Responsável pelos figurinos, Fábio Namatame distingue os personagens: os jovens ganham um perfil descolado, ao passo que Forster/Walter surge austero – e entre os dois extremos se encontra a elegância informal de Henry.
Encenar uma peça caudalosa como A Herança é, nos dias de hoje, um feito raro e, sem dúvida, corajoso. Contando com um elenco afinado, capaz de valorizar a palavra, Zé Henrique de Paula prioriza a sugestão de imagens em detrimento da concretização delas em cima do palco.
A Herança – Texto de Matthew López. Direção de Zé Henrique de Paula. Com Bruno Fagundes, Reynaldo Gianecchini, Miriam Mehler, Marco Antônio Pâmio, Rafael Primot, André Torquato, Felipe Hintze, Davi Tápias, Haroldo Miklos, Gabriel Lodi, Cleomácio Inácio, Rafael Américo e Wallace Mendes. Teatro Clara Nunes (R. Marquês de São Vicente, 52 / 3º andar). Sáb., às 20h e dom., às 19h. Ingressos: de R$ 50,00 a R$ 130,00.