Instigante diálogo com Machado de Assis
Sérgio Machado e Jopa Moraes em Brás Cubas, montagem da Armazém Companhia de Teatro (Foto: Mauro Kury)
Ao longo dos anos, a Armazém Companhia de Teatro vem alternando a montagem de textos próprios, assinados por Maurício Arruda Mendonça (ocasionalmente em parceria com o diretor Paulo de Moraes), com a de material já existente, oriundo de manifestações artísticas diversas (teatro, literatura, quadrinhos). Quando se debruçam sobre obras concebidas previamente por autores variados, os integrantes do grupo se dedicam a apropriações dos originais, ao invés de levá-los ao palco de maneira tradicional com o intuito de “tão-somente” transmitir um determinado enredo ao público. Brás Cubas, encenação que encerra temporada no próximo domingo no Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), é uma produção dramatúrgica da companhia (escrita por Arruda Mendonça), mas formulada a partir de um diálogo com o emblemático livro de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas).
Não por acaso, numa cena do espetáculo, Machado de Assis – que surge como personagem – problematiza a liberdade do teatro em relação à literatura. Parece uma saudável provocação dos artistas da Armazém Companhia, que priorizam operações dramatúrgicas que destituem a integridade dos textos com o objetivo de realizar articulações a partir deles. O grupo se autoriza a agir com essa liberdade, “dialogando” com os autores que encenam, na contramão de uma postura subserviente. Na dramaturgia, que entrelaça planos temporais, Machado interage com seus personagens, em especial Brás Cubas. Há o Brás narrador, que, morto, conta a sua jornada ao público, e o Brás vivo, que experimenta os acontecimentos no instante em que são evocados. O texto começa pela morte do personagem, regride até o nascimento para, então, expor as ocorrências em seu percurso.
Dessa forma, Brás Cubas desponta como uma explanação não-linear, nunca didática. O uso da parede como quadro onde palavras são escritas a giz visa mais à expressão “caótica” do pensamento do que a uma organização metódica. Na estrutura da dramaturgia sobressai o procedimento da edição, utilizado na apresentação de uma história revelada por meio da memória (mesmo que aqui a memória não seja um terreno tão impreciso ou pantanoso), com mortos se misturando aos vivos, especificidade que remete a uma célebre peça, homenageada por Paulo de Moraes e Maurício Arruda Mendonça: Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues (“As mulheres só deviam amar meninos de 17 anos”, afirmam, reproduzindo a frase de Madame Clessi).
Há uma sintonia entre a proposta cênica/dramatúrgica e as demais criações – materializações visuais das questões abordadas no espetáculo. O cenário de Carla Berri e Paulo de Moraes consiste em fragmentos de ambientes poluídos por marcas de presença. Entre os elementos centrais, a moldura de uma tela vazia, imagem que simboliza o estímulo para que cada espectador preencha com associações pessoais. Esse “vazio” contrasta com um acúmulo de objetos, alguns trazendo à tona a infância, entulhando intencionalmente uma das laterais. Apesar desse excesso, sobra espaço para que parte da engrenagem do palco permaneça à vista do público, realçando o fato de se estar diante de um ato teatral. Os figurinos de Carol Lobato são compostos por transparências em cores distintas, sugerindo um caráter insinuante reforçado pela iluminação de Maneco Quinderé, que, porém, oscila, de modo expressivo, entre o meio-tom e a luz mais aberta.
Na direção musical, Ricco Vianna valoriza a mescla de tempos que atravessa a encenação, a julgar pelas inclusões da modinha História do Brasil e a canção It’s a Long Way. Mas são momentos isolados. As camadas temporais se fundem mesmo nas breves passagens com coreografia, que, inclusive, tornam o espetáculo mais pulsante, rompendo certa contenção física, sensação destoante da gerada por outras montagens da Armazém Companhia, repletas de vigor corporal. No elenco, vale destacar a fluência narrativa de Jopa Moraes, seguro no manejo da palavra, a contundência de Bruno Lourenço, perceptível desde a primeira cena, e, principalmente, a habilidade de Felipe Bustamante no domínio de climas emocionais – a rigidez e um humor algo malicioso – em suas intervenções.
Brás Cubas evidencia o investimento numa dramaturgia, que, além dos temas citados, procura traçar um oportuno panorama da sociedade do século XIX, no que diz respeito às regras sociais, às relações clandestinas e, com mais relevo, à escravidão (logo no início do espetáculo há uma referência à Lei do Ventre Livre e à escravização de africanos). Ainda que nem sempre o resultado corresponda à ambição – a descoberta do remédio para aliviar a depressão da humanidade é mencionado rapidamente –, Paulo de Moraes conduz uma instigante incisão sobre a obra de Machado de Assis.
Brás Cubas – Dramaturgia de Maurício Arruda Mendonça. Direção de Paulo de Moraes. Com Sérgio Machado, Jopa Moraes, Bruno Lourenço, Isabel Pacheco, Felipe Bustamante e Lorena Lima. Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66). De qua. a sáb. às 19h, dom. às 18h. Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia-entrada).