Um destemido Hamlet no caos do século XXI
Fredericco Restori em Hamlet, filme de Zeca Brito. (Foto: Edison Vara)
Zeca Brito propõe uma articulação entre a turbulenta realidade brasileira que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e Hamlet, a tragédia de William Shakespeare. O elemento de conexão mais evidente é a rebeldia, comum ao protagonista da célebre peça e ao líder estudantil interpretado, no filme, por Fredericco Restori.
O Hamlet de Fredericco não é a única voz corajosa que passa pela tela ao longo da projeção. Na verdade, todos os jovens despontam com rostos inflamados e discursos contundentes, destemidos na ocupação das escolas em oposição ao governo de Michel Temer. O vilão – na peça, o Rei Claudio, que mata o irmão, pai de Hamlet – tem mais de uma feição no filme. São os envolvidos na disputa pelo poder, os que possuem cargos públicos, mas não atendem às demandas dos menos abastados. É, numa abordagem mais ampla, o sistema.
Nesse filme de ação, os jovens, aconselhados por mestres como o professor Jean-Claude Bernardet, não hesitam em externar suas reivindicações por meio de atos. A câmera é intencionalmente instável, de modo a transmitir para o espectador uma sensação de calor do momento, autenticidade realçada na opção pelo preto e branco. Há muito espaço para o conflito – não apenas entre os jovens e o governo, mas entre os estudantes, que nem sempre concordam em relação à maneira como a ocupação nas escolas está sendo realizada.
Nos embates, a certeza parece imperar. É o que move o Hamlet de Shakespeare, que, informado pelo fantasma do pai, se vale do teatro para denunciar o crime do tio. Tom igualmente assertivo atravessa o Hamlet de Fredericco, que também recorre ao próprio pai (o ator Marcelo Restori). No entanto, o personagem da peça e o do filme perdem o controle e enveredam pela desestabilização emocional, ainda que, no caso do segundo, em escala reduzida, marcadamente quando surge atormentado por vozes internas.
O fato é que, apesar de toda a (aparente?) certeza, há uma grande dúvida ou incógnita: o futuro. Os jovens clamam por um futuro com mais oportunidades e condições justas que não sabem se conseguirão usufruir ou se só será vivenciado pelas gerações seguintes. Nesse sentido, lutam pelos que virão depois, perspectiva que remete ao final da peça Tio Vanya, de Anton Tchekhov.
Esse Hamlet radiografa o espírito desbravador da juventude, registrado com seus skates e cadarços desamarrados, distante de estereótipos nos campos da sexualidade e do comportamento, mesmo que essa questão apareça sintetizada numa única (e, por isso, deslocada) indagação: “Por que só mulher pode usar maquiagem?”. Comprometido, como os jovens que filmou, Zeca Brito mostra o rosto, num breve instante, quando discute com uma repórter de televisão.
O resultado saiu consagrado do Festival de Gramado com os Kikitos de melhor, filme, direção, ator (Fredericco Restori), fotografia (Bruno Polidoro, Joba Migliorin, Lívia Pasqual e Zeca Brito) e montagem (Jardel Machado Hermes).