Vingar como vingança
Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar
Siba
Zaratustra, Camila Moura, Jefferson Melo, Natalia Brambila, Ramires Rodrigues e Anderson Oli em Nem Todo Filho Vinga, montagem que será apresentada no Museu da Maré na quinta, sexta e sábado dessa semana (Foto:Thiago Santos)
Viviane da Soledade
Se no Brasil nem todo filho vinga desde os primórdios do período colonial, a resistência sempre foi a maior vingança contra o racismo. Desde então é sabido de quem o filho não vinga. A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1852-1936) tornou-se uma referência imagética do embranquecimento das pessoas negras no Brasil por ter sido apresentada no I Congresso Universal das Raças, em Londres, pelo cientista João Batista de Lacerda em 1911, então diretor do Museu Nacional[1]. Essa é uma evidência de que a arte sempre flertou com o projeto eugenista de embranquecimento da população brasileira. Como essa pintura, muito foi produzido nas artes para implantar o imaginário racista de extermínio da população negra, um projeto que não vingou.
Se por um lado o projeto de liquidação dos negros no Brasil não se efetivou, tendo em vista que mais de 54% da população se autodeclara como negra, por outro a tentativa de genocídio negro vai se sofisticando. Conforme dados do IBGE, em 2014, 76% das pessoas mais empobrecidas no Brasil são negros e negras. A pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça[2] anunciou a diferença entre negros e brancos, especialmente no que diz respeito aos domicílios localizados em assentamentos “subnormais”[3] como favelas em comunidades vulneráveis. Apesar de todas as adversidades socioeconômicas e raciais,a Cia. Cria do Beco estreou o espetáculo Nem Todo Filho Vinga, dirigido por Renata Tavares, em 2022, no Museu da Maré. Em 2019, a companhia teatral foi o primeiro grupo favelado a ganhar o Festival de Teatro Universitário (FESTU), com o prêmio de melhor esquete em 2019. A cena curta tornou-se um espetáculo que estreou no Museu da Maré, origem do grupo formado por jovens artistas negros, universitários e moradores do Complexo de Favelas da Maré. Além disso, o Museu da Maré é responsável pelo fomento do importante projeto Entre Lugares, voltado para o ensino de teatro para jovens do Morro do Timbau. Não é à toa que o espetáculo tem como cenário a Maré, um dos mais importantes complexos de favelas do Rio de Janeiro devido à sua extensão territorial, alto quantitativo de moradores, diversidade cultural e articulação comunitária extremamente sofisticada.
Nem Todo Filho Vinga é um texto inédito de Pedro Emanuel em colaboração com a Cia. Cria do Beco que tem como ponto de partida a obra Pai Contra Mãe, de Machado de Assis, com inúmeras citações autorais que se confundem com a realidade do grupo. O espetáculo aborda, principalmente, os desafios de ser negro e favelado no Rio de Janeiro. As dramaturgias são também exercícios epistemológicos e agenciadoras de poder. Quando são produzidas para a manutenção da hegemonia, dificilmente darão conta dos interesses da sociedade periférica social, econômica, racial e geograficamente. Então, a disputa é também por narrativas que deem cada vez mais subsídios para a criação de cenas que abordem as questões de interesses da sociedade à margem dos privilégios sociais. Logo, a reincidente produção de textos originais de coletivos periféricos tem sido relevante para a formulação de mais cenas capazes de projetar outros corpos que apresentem outros registros de interpretação.
A defesa e a garantia do direito à cultura podem parecer redundantes, se a cultura é entendida como produção espontânea. No entanto, quando essa cultura se torna intencionalmente estética, por isso artística, a sua fomentação e difusão não está garantida para todos, todas e todes. A oportunidade de criação e fruição não é democrática como querem fazer parecer. A criação artística nesse país, a produção e fruição cultural são privilégios brancos. No entanto, muitos coletivos menos abastados da cidade vêm trabalhando criativa e insistentemente para diminuir as desigualdades. As relações que se estabeleceram com a cultura também foram assimiladas pelo mercado e, nesse sentido, o poder aquisitivo impera. Por essa razão, a Cia. Cria do Beco parece ter como perspectiva o trabalho incansável de formação do seu público para juntos alterarem a dinâmica de poder estabelecida. Essa companhia teatral é atravessada pela identidade como disparador de elaboração estética, na busca por ser representado, na ocupação de outros espaços de cultura da cidade e no desenvolvimento econômico para si e seus territórios.
O espetáculo elucida a questão do genocídio, tendo Maicon como personagem disparador dessa tônica, interpretado pelo ator Jefferson Melo, que apresenta o conflito de um jovem favelado ao acessar o curso de Direito da universidade pública por questionar a noção de justiça estabelecida no país que parece não levar em consideração as questões sociais e raciais de sua comunidade. É apresentada uma ficção crítica às recorrentes injustiças ocorridas na favela que dialogam com dados estatísticos informativos de que ao menos cinco pessoas negras são mortas pela polícia todos os dias[4]. Segundo a Rede Observatórios de Segurança, a cada quatro horas um negro é morto pela polícia no Brasil. Das mais de 2.600 mortes em ações policiais em 2020, 82,7% das pessoas eram negras. Só na capital fluminense, 90% dos mortos são negros. E onde estão os negros das grandes cidades? A meu ver, o espetáculo se vale dessas estatísticas sobre constantes violências aos quais os corpos negros e favelados estão submetidos no Rio de Janeiro para forjar a sua dramaturgia como delação. No entanto, tão importante quanto as inúmeras denúncias apresentadas é a possibilidade de reconhecer na favela o seu poder de criação.
A montagem da Cia. Cria do Beco, dirigida por Renata Tavares, foi vitoriosa nos prêmios APTR e Shell (Foto: Thiago Santos)
O enredo central do espetáculo apresenta um jovem favelado em conflito ético entre o que está sendo estudado e a realidade em que vive, evidenciando a distância das universidades da vida cotidiana da população. De alguma maneira, a ascensão social do jovem Maicon altera a dinâmica da universidade, espaço majoritariamente branco e elitista, ao mesmo tempo em que desestabiliza as suas relações na favela com os amigos interpretados pelos atores Anderson Oli, Camila Moura, Natália Brambila, Ramires Rodrigues e Zaratustra. O jovem se vê no conflito entre a oportunidade de melhores condições de vida, ao mesmo tempo em que se torna mais crítico ao amigo, traficante da favela. Há na trajetória de Maicon, ao adentrar a universidade, a primeira noção de deslocamento que será tão cara ao espetáculo. Esse deslocamento inicialmente territorial ao qual Maicon e muitos jovens periféricos estão submetidos ao ocupar outros espaços da cidade não habituais estabelecem desafios simbólicos e emocionais que vão se consolidando na dramaturgia. Mas é também outro movimento que está em jogo, a possível e tão desejada ascensão social. Essa é uma realidade que tem modificado com as políticas públicas afirmativas, mas que exige coragem das pessoas negras e periféricas para lidarem com as hostilidades mais recorrentes fora da sua comunidade. Nesse caso, há um dentro e fora da comunidade que vai se materializando no espetáculo.
No espetáculo Nem Todo Filho Vinga, para além da sua dramaturgia e do significado que os corpos negros e favelados têm em cena, a direção dá pistas importantes para os espectadores constituírem experiências de deslocamento análogas aos moradores de favela, no âmbito geográfico, mas também simbólico. Numa perspectiva da favela e do urbanismo, os deslocamentos nas grandes cidades têm sido recorrentemente discutidos no âmbito do direito à cidade. Esse deslocamento do espectador, induzido pela direção de Renata Tavares, provoca a experiência sensível da dinâmica da favela. E desse modo o espetáculo e seu público vão sendo constantemente transferidos de lugar pelos atores. Essa mobilidade é viabilizada pela concepção cenográfica de Flávio Vidaurre e a precisa iluminação cênica de João Gioia, Lucas da Silva e Raimundo Pedro. O espetáculo inicia com a configuração tradicional de palco e plateia, tendo no palco como cenário a laje, um dos mais importantes lugares das casas de favela por propiciar os encontros e festejos. Ao longo do espetáculo, a frontalidade vai sendo corrompida com as cenas entre a plateia de maneira a provocar o seu deslocamento para a formação de outras configurações espaciais semelhantes à geografia da favela. O deslocamento é também semântico, por meio da dramaturgia e da oferta de outros pontos de vista ao espectador. Além de sugerir um convite à plateia da mobilidade necessária para ver diferente a dinâmica da favela, também estabelece corporalmente uma ocupação dos espaços favelados. Desse modo, mantendo a laje como referência central da cena, propõem-se na plateia espaços cênicos, tais como becos, ruelas, pontos de encontro. Os nomes das ruas são evocados como uma cartografia da Maré. Cada lugar citado vai dando a dimensão afetiva dessa espacialidade não só para os personagens, mas para os atores que lá residem em sua maioria. Algumas outras referências culturais da favela vão dando materialidade ao trabalho por meio da trilha sonora de Renata Tavares e Zaratustra, do figurino de Tiago Ribeiro, da dramaturgia e dos próprios corpos dos atores numa grande ode à favela para dar conta do orgulho e pertencimento comunitário que superam as dificuldades encenadas dada a possibilidade de mobilidade, dinâmica e vibração experienciada por seus espectadores ao longo do espetáculo.
Com a ascensão de grupos de teatro periféricos na cena teatral do Rio de Janeiro, a noção de territorialidade dentro e fora de cena tem estado em voga, provocando inúmeras reflexões sobre a interseccionalidade de raça, classe e gênero. As produções das localidades que extrapolam o eixo central da capital têm raízes profundas nos seus territórios. Ao mesmo tempo que têm convocado o público morador da Zona Sul e Zona Central da cidade a acompanharem a produção das favelas, do subúrbio e da Baixada Fluminense in loco, esses grupos também têm demandado a ocupação dos espaços de cultura hegemônicos como direito. A produção da Cia. Cria do Beco, bem como as de outros grupos periféricos, são fundamentais para a ampliação das referências de produção cultural do Rio de Janeiro, para a desarticulação da noção hegemônica de arte e para a reformulação da ideia de quem tem direito à produção artística nessa cidade.
Depois de temporada no Museu da Maré, a Cia. Cria do Beco já se apresentouno Teatro Ipanema, no Teatro Café Pequeno, no Leblon, no Espaço Sergio Porto, no Humaitá, no Polo Educacional Sesc, em Jacarepaguá, integrou a programação do Festival Midrash[5] e conquistou a premiação de melhor direção teatral do 33º Prêmio Shell de Teatro e do 17º Prêmio APTR Nacional, além da indicação da Cria do Beco ao Prêmio Shell na nova categoria Energia que Vem da Gente, que visa reconhecer a criatividade dos artistas e seu impacto positivo na sociedade brasileira. O 33º Prêmio Shell de Teatro contemplou a primeira mulher negra indicada na categoria, Renata Tavares, que em seu discurso na cerimônia de premiação narrou o episódio de racismo sofrido por um integrante do grupo por estar em cartaz no Teatro Café Pequeno, localizado no bairro com o IPTU mais caro da cidade do Rio de Janeiro. Este prêmio de teatro, de grande importância para a classe artística, indicou esse ano um quantitativo expressivo de produções de artistas negros, periféricos e transsexuais em comparação às edições anteriores. Os jurados apontaram para uma cena teatral que vem sendo negligenciada há anos no teatro brasileiro, mas que ainda assim vinga. As premiações da diretora Renata Tavares e indicações da Cia. Cria do Beco apontam para as possíveis mudanças de lugar, a urgência de movimentos no campo das artes para efetivas desarticulações da hegemonia, tal como uma analogia às provocações artísticas estabelecidas no espetáculo Nem Todo Filho Vinga.
Edição e revisão do texto: Daniele Avila Small
[1] LOTIERZO, Tatiana H. P. e SCHWARCZ, Lilia K. M. Raça, gênero e projeto branqueador: “A redenção de Cam”, de Modesto Brocos. 2013. p. 02. Acesso em: 12 jul. 2020.
[2] Realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2011.
[3] Nomenclatura pejorativa utilizada pelo IBGE para moradias faveladas.
[4] http://observatorioseguranca.com.br/produtos/relatorios/ Acesso em: 01/04/23
[5] Sobre o Festival Midrash ler a leitura crítica escrita para a Revista Questão de Crítica http://www.questaodecritica.com.br/2022/08/negro-vida-em-oposicao-ao-negro-tema/ Acesso em: 01/04/23
Nem Todo Filho Vinga – Texto de Pedro Emanuel. Direção de Renata Tavares. Com Anderson Oli, Camila Moura, Edson Martins, Jefferson Melo, Natália Brambila, Ramires Rodrigues, Yuri Domingues e Zaratustra. Museu da Maré (Av. Guilherme Maxwell, 26). Quinta, sexta e sábado, às 20h. Entrada gratuita.