Desdobramento tropical do universo de Jarry
Ao longo dos anos, muitas companhias deixaram as cidades onde nasceram e migraram para o eixo Rio-São Paulo na busca por melhores condições de sobrevivência e na esperança de alcançar maior repercussão com seus espetáculos. Essa mudança geográfica, talvez norteada por uma dose de ilusão, vem gerando evidente esvaziamento cultural das cidades – e Londrina, polo de teatro e dança, é apenas um entre tantos exemplos. Mas não cabe depreciar os coletivos que decidem por essa transição, até porque envolve riscos consideráveis. E há companhias que não se afastaram de seus locais de origem. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é possivelmente o mais conhecido em meio a diversos outros que não aderiram à vinda para o Sudeste.
Com menos frequência que o desejável, algumas dessas companhias vêm desembarcando no Rio de Janeiro e permitindo ao espectador entrar em contato com suas propostas de linguagem, enriquecendo, desse modo, a temporada. Do Nordeste, particularmente, o público carioca teve a oportunidade de assistir, nas últimas décadas, a encenações de grupos como o Piollin, o Ser Tão Teatro (ambos de João Pessoa), o Magiluth (do Recife), o Bagaceira (de Fortaleza), o Olodum e a Cia. Baiana de Patifaria (os dois de Salvador). Agora, a plateia do Rio confere Ubu – O que é Bom tem que Continuar!, espetáculo concebido a partir da parceria entre três grupos de Natal: o renomado Clowns de Shakespeare, que celebra 30 anos de trajetória, o Facetas e o Asavessa.
Responsável pela dramaturgia, Fernando Yamamoto apresenta um desdobramento – com acento notadamente tropical (realçado pelo visual kitsch) – da peça do simbolista Alfred Jarry. Aproxima do espectador brasileiro os personagens ambientados, no texto original, na Polônia, referência, em todo caso, distante de qualquer contorno realista. Seja como for, Yamamoto não investe numa aclimatação direta ao contexto nacional. Não envereda por esse caminho fácil, que renderia citações tão numerosas quanto previsíveis a figuras da vida política, mas estimula o espectador a traçar articulações com o noticiário do país. As eventuais menções despontam como brincadeiras em relação a nomes contrastantes, de autoridades acadêmicas e personalidades midiáticas da contemporaneidade. Mas Yamamoto, que também assina a direção da montagem, não evita que a dramaturgia resulte algo reiterativa ao sublinhar constantemente os malefícios do casal Ubu em sua sede desmedida pelo poder, tal qual o casal Macbeth – só que em variação cômica. É como se o texto “andasse” mais em círculos do que em linha reta.
Em instantes isolados, o espetáculo estabelece conexão com a plateia pela via da teatralidade assumida e do tom de permanente deboche e escracho, ingredientes sintonizados com o espírito da obra de Jarry. Os momentos de graça simples e popular, que requisitam interação do público (sem expor individualmente os espectadores), são os mais eficientes, a julgar por aquele em que a plateia é convocada a fazer movimentos de louvação à campanha de Pai Ubu, registradas para exibição como programa eleitoreiro. Vale destacar mais uma cena em que o grupo atinge o pretendido efeito de humor: quando Ubu, consagrado como Rei, condena, de maneira sucessiva e arbitrária, os integrantes do povo, que verbalizam suas reivindicações.
Em outras passagens, a encenação persegue a comicidade sem realizá-la plenamente, limitação que deve ser creditada, em parte, à irregularidade do elenco, que aposta na vertente da representação expansiva e caricata sem, porém, demonstrar amplo domínio desse código. Ainda assim, Rodrigo Bico e Paula Queiroz, encarregados dos personagens centrais, revelam afinidade em cena. É preciso dizer que na noite do último sábado, por causa das condições meteorológicas, o espetáculo não pode ser apresentado ao ar livre, de acordo com o planejado, e se viu obrigado a trocar o Pátio das Tamarineiras por um local fechado dentro do Sesc Tijuca. A alteração não favoreceu a montagem, transferida para espaço menos caloroso. A nova configuração, contudo, não inviabilizou a comunicação com a plateia, disposta em roda e contagiada, em certo grau, pela musicalidade (dramaturgia musical a cargo de Marco França e Ernani Maletta, com músicas do primeiro e letras de Yamamoto).
Ubu – O que é Bom tem que Continuar!, mesmo sem concretizar inteiramente a sua ambição como comédia, valoriza uma teatralidade composta por elementos básicos, como tecidos estampados, característica que tende a suscitar simpatia. E proporciona ao espectador carioca se deparar com uma expressiva amostra da cena de Natal.
Ubu – O que é Bom tem que Continuar! – Direção e dramaturgia de Fernando Yamamoto. Com Caju Dantas, Deborah Custódio, Diogo Spinelli, Paula Queiroz e Rodrigo Bico. Pátio das Tamarineiras do Sesc Tijuca. (R. Barão de Mesquita, 539). De quinta a sábado às 19h, domingo às 18h. Ingressos: R$ 30,00, R$ 15,00 (meia-entrada), R$ 7,50 (credencial plena).